A incursão pelos municípios de Soure e Salvaterra durante a Ação para Meninas e Mulheres em Marajó expôs alguns dos enormes desafios a serem enfrentados pelo Judiciário no combate à violência no arquipélago localizado no estado do Pará. Com 16 municípios espalhados nos 49 mil km², Marajó padece com o isolamento provocado por sua geografia.
O território marajoara tem dimensão superior à de países como Bélgica e Suíça. Com aproximadamente três mil ilhas e ilhotas, a região é o maior arquipélago fluviomarítimo do planeta. Com isso, algumas cidades têm acesso exclusivo por meio de rios, em trajetos que podem variar de 3 a 30 horas.
Outra consequência dessa dificuldade de acesso são as vulnerabilidades sociais dessa parte do Pará. Dados do IBGE de 2020 e 2021 colocam três municípios de Marajó entre os dez piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, consideradas as cidades com menos de 200 mil habitantes. Melgaço, com pouco mais de 23 mil habitantes, tem o pior índice do Brasil nesse recorte. Os municípios de Chaves e Bagre ocupam a 6.ª e a 8.ª posição, respectivamente.
Essas peculiaridades geográficas de Marajó influenciam diretamente no acesso da população aos serviços de segurança pública e de justiça. Somente Soure e Salvaterra possuem Delegacias Especializadas no Atendimento à Crianças e Adolescentes (DEACA) e no Atendimento à Mulher (DEAM). A logística dos procedimentos policiais também varia de acordo com o município. Quando há necessidade de realizar uma perícia em Soure, a prefeitura arca com os custos e disponibiliza um assistente social para acompanhar a vítima até a capital, Belém. Em Salvaterra, a prefeitura paga os custos do deslocamento, mas a vítima não conta com acompanhamento profissional.
Até mesmo as diligências são dificultadas por conta das condições geográficas e climáticas. Fernanda Cunha é a delegada da mulher em Soure e aponta as distâncias como um fator complicador significativo para atuação policial. “Dependendo de onde a pessoa está localizada no Marajó, é mais fácil ir em Belém para chegar a este local do que partir de Soure, por exemplo. Em outros casos, como Afuá, é melhor ir por Macapá (AP)”, explica. Soure e Salvaterra estão a duas horas distância de Belém.
Há dificuldade também para a fixação dos profissionais do sistema de justiça na localidade, resultando em alta rotatividade nas lotações. Além disso, os riscos à integridade física são potencializados o que leva juízes e juízas ameaçados na região a se obrigarem a atuar em regime de teletrabalho.
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Prostituição e aliciamento
Nos municípios visitados pela comitiva do CNJ com o Tribunal de Justiça do Pará (TJPA) entre os dias 19 e 23 de agosto, as violências mais comuns são abuso sexual, violência doméstica e assassinatos cometidos no ambiente familiar ou religioso. Em nenhum dos dois municípios alcançado pela Ação para Meninas e Mulheres de Marajó foram encontrados casos oficialmente informados sobre redes de exploração sexual ou aliciamentos para prostituição e o motivo também estaria relacionado a aspectos geográficos. “Essa região de Salvaterra e Soure tem muitas vulnerabilidades, mas não é tão isolada”, explicou a delegada de Salvaterra, Caroline Abdon.
A titular da DEAM em Soure, Fernanda Cunha, avalia que a dinâmica de chegadas e partidas de barcos e balsas pode influenciar na instalação de redes de prostituição ou de aliciamento. Por sua localização na extremidade nordeste de Marajó, Soure estaria fora da rota dessas embarcações. “Em outras cidades do Marajó pode ter alguma ocorrência desse tipo. A população em Soure não tem balsas levando caminhoneiros”, pontua.
Ela também destaca que cerca de 90% da comunidade de Soure está na zona urbana. “Em outras cidades, existem fazendas mais afastadas e, na época de chuva, só existe acesso por meio de lanchas e voadeiras. Temos uma população muito ribeirinha em outras comunidades, que não está aglomerada tanto no centro urbano. Essa circunstância gera até mesmo a subnotificação de muitos crimes, porque está mais distante da região, e outros tipos de crime que não vemos com muita frequência por aqui”, completa.
A delegada remete ao filme Manas, que conta a história fictícia de Marcielle, uma jovem de 13 anos de idade que vive em Marajó com a família. A localização seria Melgaço, onde o vai e vem das balsas facilita situações de exploração sexual. A produção apresenta os dilemas de uma vida com limitações, marcada pela violência e a ausência da irmã mais velha, que partiu para “arrumar nas balsas um homem bom para cuidar”. Ainda sem data para estrear comercialmente, o longa foi um dos selecionados para o 81.º Festival de Veneza, que teve início na quarta-feira (28/8).
A Ação para Meninas e Mulheres do Marajó foi desenvolvida pelo TJPA a pedido do CNJ e conta ainda com a atuação do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e do governo do Pará, que assinaram acordo em junho de 2024. O objetivo é promover ações integradas para prevenção e enfrentamento da violência contra mulheres e meninas nas ilhas de Marajó, a partir do fortalecimento do acesso à Justiça e esclarecimento da população marajoara sobre as diversas formas de violência e suas consequências.
Texto: Ana Moura
Edição: Sarah Barros
Agência CNJ de Notícias