Cada criança é única e para garantir seu desenvolvimento adequado é preciso investir em processos contínuos, intencionais e integrados, que reforcem a sua aprendizagem. Essa é a base do projeto Novo Olhar, conduzido pela Fundação FEAC, de Campinas (SP), e que conquistou o segundo lugar, na categoria Sociedade Civil Organizada, na premiação de boas práticas voltadas para crianças na primeira infância realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A iniciativa estimula as instituições parceiras, que atendem crianças de 0 a 3 anos, a monitorar o desenvolvimento infantil para garantir que todas se desenvolvam adequadamente de acordo com sua faixa etária, considerando peculiaridades e limites.
Esse acompanhamento é feito por meio do preenchimento de fichas que permitem a análise do desenvolvimento individual da criança. A partir da verificação de lacunas, professores e familiares podem buscar e encontrar soluções que agreguem benefícios para a criança. Mudanças simples, como o ajuste do horário da alimentação ou a aproximação entre a criança e a professora, por exemplo, podem ser suficientes para suprir uma carência no desenvolvimento.
O conteúdo das fichas é reavaliado com periodicidade. O último modelo, por exemplo, foi resultado do trabalho conjunto entre os técnicos da FEAC e pedagogos das entidades parceiras, que identificaram novas características para observação. “As fichas não são utilizadas como um fim. Não é um processo avaliativo, mas de acompanhamento das crianças. Identificar o lócus do atraso permite que se estimule a correção, contribuindo para o direito de ensino da criança e para a melhoria contínua do processo de aprendizagem”, explicou Cláudia Chebabi Andrade, gerente de Programas da FEAC.
Desenvolvendo parcerias
Criado em 2017, o projeto foi inspirado na política pública Primeira Infância Melhor (PIM), da Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, que concebe a educação a partir de um olhar ampliado sobre a própria constituição do sujeito, suas necessidades e direitos. Outra referência é a abordagem Pikler, que defende o vínculo, a autonomia e o conhecimento como bases do desenvolvimento infantil. Com um ciclo de dois anos, o programa reuniu cinco entidades parceiras, em 2017, atendendo 451 crianças. No ano seguinte, foram 1.500 crianças atendidas e 21 entidades parceiras da FEAC. Em 2019, 24 entidades participaram.
De acordo com a fundação, as instituições parceiras são orientadas a, por meio de uma observação fundamentada, atuarem de maneira individualizada e em parceria com as famílias, reconhecendo pontos fortes ou abordando fatores de risco que impeçam o pleno desenvolvimento da criança. “Convidamos nossas parceiras a terem um novo olhar em relação à criança. As educadoras utilizam as fichas, que contêm os marcos de desenvolvimento, e, por meio de observação e registro, conseguem acompanhar de perto vários aspectos que fazem parte deste processo de mudanças pelo qual a criança passa”, disse o superintendente da FEAC, Leandro Pinheiro.
O programa começa a partir da identificação da entidade, que recebe a visita dos técnicos da FEAC. O segundo passo é a sensibilização da escola para o projeto, apresentando o desenvolvimento infantil, os parâmetros da Base Nacional Curricular e o porquê de acompanhar o desenvolvimento das crianças. Depois, a instituição começa a fase de acompanhamento, com o conhecimento da organização; a apresentação das fichas de acompanhamento, sua importância, a maneira de preenchê-la e fazer o diagnóstico; e o foco no plano de aula. Por fim, a FEAC faz um assessoramento remoto, chamado de “fase out”, quando a escola dá continuidade ao programa.
Adaptação ao contexto de ensino
O Instituto Dona Carminha, também em Campinas, participa do projeto desde 2018 e contribuiu para a última atualização das fichas. O Instituto trabalha com 520 crianças, das quais 99 são bebês entre zero e três anos de idade. “Somos uma escola inclusiva e temos vários alunos deficientes. Por meio do programa, estudamos como melhorar o desenvolvimento deles, com base em ritmo, horário e outras condições. Observamos o que estava alterado e levantamos as soluções, como a alimentação enquanto componente pedagógico, beneficiando o desenvolvimento infantil”, explica a diretora da escola e pedagoga, Patrícia Torres.
A escola também desenvolveu, por conta própria, diversos protocolos para receber as crianças, para a hora do sono, da alimentação, do banho e a conduta em relação às crianças e aos pais, entre outros. “Nosso anseio é acertar e fazer o melhor para as crianças”, diz Patrícia. Ela destaca, ainda, que o programa se adapta ao contexto da escola, independente da abordagem pedagógica.
Além disso, há um impacto no processo individual dos professores. “Nossa intenção é que o educador se enxergue como o responsável pela mudança, removendo as barreiras estruturais, adaptando o plano de aula às necessidades individuais dos alunos, centrado no desenvolvimento da criança. Há uma indissociabilidade entre cuidar e educar, a partir da intencionalidade da ação pedagógica”, afirmou Cláudia Chebabi, da FEAC.
No programa desde 2017, a Casa da Criança Meimei atende 282 crianças, sendo 6 delas deficientes. Para aplicar a prática proposta pelo projeto Novo Olhar e atender às lacunas de aprendizagem identificadas, a escola passou por mudanças inclusive estruturais. Por se tratar de uma construção menor, as crianças passavam muito tempo confinadas nas salas.
Segundo a orientadora pedagógica Jeane Madureira, a prática proposta por meio do projeto precisa ser aplicada de forma intencional. “Nosso olhar mudou em relação à individualidade da criança e isso nos fez olhar para nossas práticas pedagógicas de forma diferenciada. Fizemos mudanças estruturais físicas no prédio para melhorar a mobilidade das crianças, para terem mais acesso.”
Entre as alterações, a escola trocou as paredes por acrílico transparente, permitindo a entrada de luz natural nas salas. Criaram um solário, com plantas naturais, e adotaram pisos diferenciados para proporcionar mais sensibilidade para os bebês. “Hoje, os bebês circulam por todos os espaços da creche. E conseguimos identificar o desenvolvimento das crianças por meio das fichas de acompanhamento”, explicou.
Social e humano
A Fundação FEAC é uma instituição independente formada há 55 anos e autossustentável. Ela oferece projetos à sociedade com foco na promoção humana e no bem-estar social, especialmente no período da infância e da juventude, sem exigir contrapartida de seus parceiros. Além do Novo Olhar, a Fundação desenvolve outros programas sociais. “Quisemos registrar o Novo Olhar na premiação do CNJ por ser o novo, o diferencial e por conter o cerne de todos os programas que fazemos. É isso o que queremos divulgar”, afirmou a gerente da Fundação Claudia Chebabi.
De 2017 a 2019, a FEAC já investiu cerca de R$ 850 mil em ações no projeto. Entre as atividades de assessoramento oferecidas, está a análise dos dados das fichas de acompanhamento, de forma a ensinar as instituições a chegarem a um diagnóstico. As fichas, no entanto, não ficam com a Fundação e não são utilizadas, em nenhuma hipótese, como material de comparação entre as instituições.
Para o futuro, os desafios incluem a implantação de um sistema que automatize a resposta às escolas e acelere o feedback e as adaptações, incentivando a integração dos ciclos educativos. Além disso, a Fundação quer apresentar o projeto a outras organizações sociais civis e buscar uma parceria com a prefeitura. “A melhor forma de fazer incidência em política pública é por meio do exemplo”, afirma Leandro Pinheiro, o superintendente da FEAC.
As parcerias, inclusive, são bem-vindas para a disseminação da prática. “Nossa preocupação é manter os valores e princípios do projeto. Temos materiais disponíveis em nosso site para quem se interessar em aplicar a inciativa. A ideia não é ser uma burocracia, mas uma ferramenta para identificação de desenvolvimento humano”, completa Pinheiro.
Da seleção à disseminação
Promovido pelo CNJ como parte do Pacto Nacional pela Primeira Infância, a chamada pública de seleção, premiação e disseminação de boas práticas na primeira infância entregou certificados a entidades responsáveis por iniciativas em quatro categorias – Sistema de Justiça, Governo, Empresas e Sociedade Civil Organizada. Nesta última categoria, além de troféu e certificado, os vencedores receberam valores monetários de R$ 20 mil, R$ 15 mil e R$ 10 mil, para os três primeiros lugares, como incentivo à disseminação das boas iniciativas.
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Em 22 de junho de 2020, o CNJ também iniciou um fórum online para disseminação das 12 práticas vencedoras e outras três selecionadas. O espaço virtual é voltado aos profissionais do Sistema de Justiça, de órgãos públicos e da sociedade civil que atuam com a primeira infância e pessoas interessadas no tema. Para acessá-lo, é necessário se inscrever aqui.
Lenir Camimura Herculano
Agência CNJ de Notícias