Greve de Perus: Queixadas com fome de justiça

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Imagem: TRT2
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Nesse momento de isolamento, de apreensão e processo de adaptação a uma nova rotina de (tele)trabalho, falar de resiliência e união é quase terapêutico. Por isso, tomei como um presente a tarefa dada pelos meus colegas do Centro de Memória do TRT2, de contar uma versão, um pouco panorâmica, da história da greve de Perus e dos queixadas.

Iniciei os trabalhos de pesquisa para esse texto poucas semanas após o início do isolamento, devido à pandemia do novo coronavírus. Consultei acervos digitais de jornais e revistas da época, li e fichei alguns dos livros e teses escritos sobre a greve, assisti documentários e analisei os processos do acervo histórico do TRT2 que decidiram sobre as reivindicações desses trabalhadores.

Pude, portanto, suspender-me um pouco dos problemas atuais e retornar dessa pesquisa com esperança e forças renovadas, com a lição que os queixadas nos deixam: resistir, permanecer e cuidar dos nossos!

Queixada é uma espécie de porco do mato, mais temido que onça pelos caçadores. Quando se sentem ameaçados, juntam-se em bando e avançam sobre o inimigo. Fracos sozinhos, quando se unem são capazes de enfrentar o mais voraz dos predadores.

Foi assim que ficaram conhecidos os trabalhadores que encabeçaram uma das greves mais duradouras e emblemáticas da história do nosso país: a greve da Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus S.A., que ficou para a história como a Grande Greve de Perus.

Iniciada em 14 de maio de 1962 (completa 58 anos, portanto, em 2020), mas com antecedentes em 1958, essa greve se estendeu até 1969 e deu origem a um movimento operário que ganhou as ruas da cidade de São Paulo e os corredores do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região.

Surgem os queixadas: panelas de cimento contra panelas de ferro

Em 1925, a empresa canadense Drysdale y Pease instalou a planta da Fábrica de Cimento Portland Perus. Foi a primeira fábrica a produzir cimento em larga escala no Brasil. Sua localização não foi por acaso. Em 1914, a estrada de ferro Perus-Pirapora já ligava a região da fábrica à cidade vizinha, Cajamar, onde estava localizada uma enorme jazida de calcário, ingrediente fundamental da receita do cimento tipo Portland.

À época, o distrito de Perus representava um dos extremos norte da cidade de São Paulo, que iniciava seu processo de verticalização. A fábrica foi a maior fornecedora de cimento para os novos empreendimentos imobiliários. Aliás, a maioria da matéria-prima para a construção de Brasília saiu de seus fornos.

A história do bairro, por sua vez, confunde-se com a expansão da malha ferroviária paulista. Em 1867 foi inaugurada a estação Perus, como extensão da São Paulo Railway, a ferrovia Santos-Jundiaí (hoje linha 7 Rubi da CPTM), o tronco irradiador do desenvolvimento do estado na época. Tanto essa estação quanto sua conexão com a já citada estrada de ferro Perus-Pirapora permitiram o adensamento populacional das redondezas e a instalação de fábricas e comércios na região.

Epicentro do distrito, a fábrica da Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus ditava o ritmo da rotina dos seus moradores. Na obra de Larissa Gould e Jéssica Moreira, “Queixadas: Por trás de 7 anos de greve”, as jornalistas apresentam relatos de sobreviventes e parentes do tempo da Grande Greve, que contam como o apito da fábrica – para a entrada, para o almoço e para o fim do expediente –  ditava o ritmo do bairro, que girava em torno da fabricação de cimento. O livro-reportagem é resultado do trabalho de conclusão de curso das jornalistas e pode ser conferido na íntegra aqui.

No horário do almoço, famílias inteiras iam se encontrar com seus pais, maridos ou filhos, levando a eles aquilo que alimentaria as mãos que fariam todo aquele cimento. Cimento este que ia direto para a construção de Brasília. “80% ou mais”, orgulha-se Aroldo. Se era em volta de um televisor que as crianças se juntavam, era em volta da mesa do refeitório da fábrica que as famílias se reuniam. Sendo muitas vezes, o único momento de convívio entre pais, filhos e esposas durante o dia

(GOULD, MOREIRA, 2013, p. 48)

Em 1951 o deputado federal José João Abdalla assume a gestão da Fábrica de Perus, integrando-a ao seu império. Além de deputado, Abdalla foi secretário do trabalho do governador Ademar de Barros, entre 1950 e 1951, e era proprietário de fazendas, bancos, pedreiras e ferrovias. Foi a partir desse momento que os conflitos entre patrão e empregados começaram a se acirrar. Abdalla tinha fama de não pagar em dia seus empregados e, na década de 1950, era tratado pelos jornais de grande circulação como um “mau patrão”.

As condições de trabalho dos operários envolvidos na fabricação de cimento eram difíceis e insalubres. Ficavam expostos às altas temperaturas dos fornos e sujeitos à grossa fuligem do cimento, que cobria telhados de casas e a vegetação dos entornos. Por isso, dependiam diretamente do bom relacionamento com os proprietários para amenizar tais dificuldades do trabalho diário.

É nesse contexto, de primeiros anos de uma nova gestão, que eclode a primeira greve na Fábrica de Perus. Em 1958 os operários paralisaram suas atividades por 46 dias, reivindicando aumento salarial proporcional à valorização do cimento.

Em acordo coletivo recém-firmado entre empresas do grupo Abdalla e a Federação dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do Mobiliário de São Paulo ficara acertado o percentual de reajuste salarial de 30% para o ano de 1958. Contudo, o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Cimento, Cal e Gesso de São Paulo, que representava grande parte dos empregados da Cia Brasileira de Cimento Portland Perus, tomou conhecimento que  Abdalla pretendia aumentar o preço do cimento em 40%, sem repassar os mesmos índices aos seus empregados. Diante disso, a fábrica parou.

Em julgamento de dissídio coletivo no TRT-2, 35 dias após o início da greve, os juízes decidiram pelo aumento de 30%, sendo apenas um voto a favor dos 40%. Esse único voto foi o suficiente para dar esperança aos trabalhadores, que decidiram manter as paralisações até o julgamento do recurso no TST, que naquela época ainda estava instalado no Rio de Janeiro (o órgão iria para Brasília apenas em 1971).

Foi nesse contexto da greve de 1958 que o apelido “queixadas” foi criado, para designar o ímpeto de união e justiça existente entre os trabalhadores da Fábrica de Cimento Portland Perus. Mario de Carvalho de Jesus, advogado sindical, e um dos grandes líderes desse movimento, relembra com detalhes a ocasião em que o termo queixada foi utilizado pela primeira vez:

A fibra dos trabalhadores aumentou, Nelson Coutinho, advogado amigo, velho caçador, sentindo a inquebrantável resistência dos grevistas, exclamou numa Assembleia:

– Vocês parecem “queixadas”.

Alguém aparteou:

– Que é queixada?

– É o único bicho que, quando se sente em perigo, se une em grupo, em manada, bate o queixo – daí o nome queixada -, enfrenta a onça ou o caçador; este tem de se esconder numa árvore, porque corre o risco de ser estraçalhado. Vocês estão dando um exemplo de unidade semelhante ao queixada. “Queixada que enfrenta tubarão”.

(JESUS, Mario de Carvalho. Cimento Perus: 40 anos de ação sindical… São Paulo: 1992, p. 31)

Outra passagem importante da história dessa greve foi sua repercussão positiva na mídia paulistana e a simpatia por parte de Jânio Quadros, governador de São Paulo na época. O mesmo Mário Jesus relembra um encontro entre o comando de greve e Jânio, durante as tratativas de um acordo:

(…)Forçava um acordo nosso com o Grupo Adballa. A proposta nos parecia baixa, Jânio nos advertiu:

– Numa luta entre panela de ferro e panela de barro, sempre quebra a panela de barro.

– A nossa é de cimento, governador.

Diante da nossa firmeza, Jânio voltou à posição anterior.

(Idem, p. 32)

Quarenta e seis dias depois do início da greve, os queixadas, recém-batizados, conquistaram sua primeira vitória. Firmou-se um acordo que cedeu 40% de reajuste salarial, o direito de retorno dos grevistas ao trabalho e o pagamento dos dias de paralisação.

Estoura a Grande Greve

Após a paralisação de 1958, o relacionamento entre patrão e empregados do Grupo Adballa foi se agravando. Notícias de pagamentos atrasados e demissões de funcionários prestes a adquirir estabilidade (ainda vigia naquela época a estabilidade decenal) circulavam entre os trabalhadores e o sindicato. Ao mesmo tempo, a imagem de J. J. Abdalla como “mau-patrão” ganhava mais apelo nos jornais.

Na obra já citada de Gould e Moreira, um dos interlocutores das autoras afirma que Abdalla não era um patrão exemplar, mas foi usado como “boi de piranha” pelos demais empresários. Como ele já possuía uma fama não muito favorável na mídia da época, em muitos casos justificável, sua imagem era usada como contraponto para aqueles que se definiam como “bons patrões”. Alguns se beneficiavam da má fama do outro.

Diante de problemas existentes, sindicatos representantes dos trabalhadores empregados das fábricas do Grupo Abdalla enviaram um ofício ao empregador solicitando uma posição sobre os problemas relatados. Sem nenhum resposta, surgiu a ameaça de greve.

No dia 14 de maio de 1962, diante da presença da polícia nas dependências de fábricas do grupo Abdalla, cerca de 3.500 trabalhadores paralisaram suas atividades. Não só a Cia Brasileira de Cimento Portland Perus, mas também funcionários da Usina Miranda em Pirajuí-SP, da Copase (Companhia Paulista de Celulose), em Cajamar-SP, da Tecelagem Japy  e da Fábrica de Papel Carioca, em Jundiaí-SP, aderiram à greve.

Entre as reivindicações estavam: o ressarcimento dos 5% pagos pelos funcionários ao fundo da casa própria, que não tinha saído do papel; o pagamento do prêmio de produção; o registro de 70 operários que trabalhavam no horto da fábrica de Perus e o recebimento de horas extras não pagas.

Iniciou-se um imbróglio jurídico envolvendo acordos e dissídios coletivos diversos, que passaram a tramitar no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Infelizmente alguns desses processos não puderam ser resgatados no acervo histórico do TRT2, mas existem informações importantes sobre o andamento deles em publicações da época e em obras acadêmicas.

Do primeiro dissídio coletivo (processo 92/1962), instaurado em razão do início da greve, o TRT não tomou conhecimento, tendo em vista que já existia acordo coletivo vigente. Porém, o mérito da greve não foi julgado, o que levou a crer que a paralisação era legítima, ou ao menos não tinha sido julgada como ilegal até então.

Por outro lado, ficou determinado que os trabalhadores voltassem ao trabalho, sem prejuízos de seus vencimentos, o que se estendeu aos trabalhadores estáveis (com mais de 10 anos de contrato) e não aos trabalhadores mais novos. Enquanto isso, a greve permanecia e recursos esperavam julgamento no TST.

É nesse contexto que ilustres juristas da época passaram a se manifestar sobre os aspectos jurídicos dessa greve. Nos autos do processo 61 de 1963 (que pertence ao acervo histórico do TRT2 e pode ser acessado na íntegra), distribuído em 4 de fevereiro de 1963 ao TRT2 (ou seja, quase nove meses após o início da greve), o sindicato representante dos empregados juntou aos autos um parecer do renomado professor Cesarino Junior. Nele, Cesarino afirma que o dissídio coletivo anterior não havia determinado a cessação da greve, e por isso,  implicitamente, reconhecia o direito dos grevistas nela prosseguirem. Também analisa as reivindicações dos trabalhadores e as define como procedentes e legítimas.

Ora bem, a exposição precedente à consulta se infere que o sindicato da categoria ora em greve: a) tentou diretamente, sem consegui-la, a conciliação com o próprio empregador; b) em seguida, requereu a intervenção da Delegacia Regional do Trabalho, não tendo o empregador atendido à convocação desta última; c) não ajuizou ele próprio o dissídio respectivo, porque o empregador o fez antes da remessa do processo administrativo para o Tribunal Regional do Trabalho.

(…) Nestas condições, parece-nos que todas as tentativas para uma solução amigável ou judicial da pendência forma realizadas por aquêle sindicato, nada havendo, portanto, a objetar à licitude da greve por êle liderada.

(Dissídio Coletivo 61/1963, fls 19)

É curioso notar como os advogados de defesa, no processo supracitado, não ousam confrontar diretamente o grande professor Cesarino, alegando, ao invés disso, que ele teria sido enganado pelos grevistas, que teriam fornecido informações mentirosas sobre o andamento das paralisações, que o teriam levado a tais conclusões. Provavelmente eram ex-alunos (direta ou indiretamente) do admirado professor de Direito Social do Largo de São Francisco.

Uma nova tática de resistência

Nesse ínterim, entre o início da greve e o julgamento do processo no TRT2, os queixadas decidiram por adotar uma nova tática de resistência. Mário Carvalho de Jesus, advogado do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Cimento, Cal e Gesso, propôs aos grevistas a adoção de práticas inspiradas naquelas de Mahatma Gandhi, um dos líderes do movimento que conquistou a independência da Índia, em 1947. Gandhi defendia a “firmeza permanente”, uma tática não violenta de enfrentar o inimigo em situações nas quais seu opositor possui muito mais força.

No curta-metragem “Queixadas”, de Rogério Corrêa, o próprio Mario de Jesus, acompanhado de João Breno Pinto, presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Cimento, Cal e Gesso de São Paulo e mais alguns trabalhadores queixadas, reencenam a reunião na qual ficou decidido que os grevistas adotariam práticas não violentas de resistência, entre elas a greve de fome:

Mário: Cristo disse em certa ocasião a seus apóstolos que certos tipos de demônio a gente só expulsa com jejum e oração. E Abdala é um demônio! Então a gente tem que buscar um jeito de utilizar esse recurso, jejum e oração.

Queixada: Mas jejum nossas famílias já estão passando. Estamos passando fome.

Mário: Uma coisa é passarmos fome revoltados, outra é fazer uma greve de fome consciente para chamar a atenção da opinião pública sobre o que passamos aqui em Perus.

A greve de fome surtiu efeito e passa a angariar apoio da população em geral e dos jornais, mas logo sofreu com a represália da polícia e foi desmantelada. Importante dizer que os queixadas e suas famílias já realizavam greve de fome involuntária desde o início das paralisações, tendo em vista que se encontravam sem salários e diante de um boicote dos comerciantes da região.

Seu Machado, dono de um pequeno armazém, foi um deles.

“Ele apoiava muito, mas depois, sem receber, não dava mais. Ele precisava comprar e não recebia, tinha uma boa parte de queixada que dizia: ‘É, quando nós ganharmos a greve, eu pago!’ Mas não é assim, né? Os caras tinham que se virar. A maioria, era tudo na caderneta na época”, fala Aroldo, sem ressentimentos. (GOULD, MOREIRA, 2013, p.125).

No documentário “Porcos e Perus: uma história em extinção”(TCC de Jornalismo defendido por Rodrigo Vinagre, na Faculdade Cásper líbero em 2009,  disponível aqui), podemos assistir aos relatos de operários que não conseguiam comprar remédio nas farmácias da região para tratar seus familiares. Muitos grevistas passaram a ser pressionados pelas suas esposas para voltarem a trabalhar, diante da falta de dinheiro e de acesso à caderneta nas mercearias. A famosa “venda fiado” era a prática mais comum nos comércios de bairro e não poder “botar na conta” as compras da semana desestruturava toda a economia das famílias. A pressão era muito grande e a necessidade falou mais alto para muitos deles.

A realidade concreta de uma luta

Com o decorrer do tempo, diante das dificuldades de se entrar em acordo com os patrões, e dos impasses jurídicos na Justiça do Trabalho, muitos trabalhadores resolveram furar a greve e voltar ao trabalho. A situação das famílias se tornou precária. O movimento também se enfraquecia porque aqueles que não voltaram para a fábrica tinham que arrumar bicos ou empregos em outros lugares. Restava às mulheres que trabalhavam em casa realizar passeatas.

As mulheres tiveram participação direta nas práticas de protesto pacíficas e no suporte às famílias. Sempre presentes nas assembleias, acampamentos, manifestações e piquetes. Durante a greve, com a falta de sustento, muitas foram em busca de emprego fora de casa, para prover suas famílias diante da paralisação dos maridos.

Nesse contexto de enfraquecimento do movimento grevista, os que voltaram a trabalhar na fábrica receberam a alcunha de pelegos, e os que resistiram continuaram como queixadas. Cindido o movimento, surgiram rusgas entre os próprios trabalhadores. No final, todos queriam e precisavam trabalhar.

Em 1965, 501 trabalhadores estáveis da Cia Brasileira de Cimento Portland Perus entram com um novo processo no TRT2. Inicialmente com julgamentos desfavoráveis aos queixadas, o processo seguiu para a segunda instância. Posteriormente tem seu julgamento anulado. O imbróglio perdurou até 1969. Nesse momento houve uma mobilização massiva do sindicato, que, por intermédio de Mário de Carvalho de Jesus e João Breno Pinto, distribuiu mil exemplares de uma relatório de 164 páginas intitulado “A greve de Perus nos tribunais”.

Após muita pressão e resistência, e depois da questão ter sido apreciada 11 vezes no TST (segundo relato de Mario de Carvalho de Jesus), a direção da fábrica foi obrigada a reintegrar os 501 queixadas estáveis, indenizando-os pelo tempo da paralisação. Contudo, no decorrer desses anos os trabalhadores não estáveis (cerca de 300) não tiveram a mesma sorte. Oficialmente a greve acabava, mas deixava em seu caminho um rastro de muito sofrimento para os envolvidos.

Os direitos tinham sido reconhecidos pela Justiça do Trabalho, só que ainda faltava receber as indenizações. Abdalla, porém, não tinha somente fama de mau patrão, mas também de mau pagador aos cofres públicos.

Abdalla era investigado pelo governo, pela gestão fraudulenta da Usina Miranda – empresa do grupo que teve falência decretada em 4 de abril de 1967 – e era mantido vigiado pelo governo, como é possível ver nos prontuários do DOPS 52Z-0-1758, 52Z-9-6265 e 52Z-9-6266.

(…) As fraudes da família Abdalla prejudicavam não só os queixadas, mas a própria União, tanto que em maio de 1973 o Ministério Público Federal apresentou denúncia contra todos os responsáveis pelo Grupo, por crimes previstos nos artigos 1998 e 2039 do Código Penal. Em julho de 1973, o Governo Médici confisca os bens da Companhia. Com todos os processos e confiscos, a empresa decreta falência no mesmo ano.

(GOULD, MOREIRA, 2013, p. 147-148)

Diante dos confiscos e da falência, a Companhia Nacional de Cimento Portland Perus passa a sofrer a intervenção do Governo Federal. Nas palavras de Mário de Carvalho de Jesus, a Justiça do Trabalho agiu no sentido de realizar o confisco total dos bens do Grupo Abdalla, mas, mesmo devedor, o réu ainda possuía muita influência política. Demorou para que todo o patrimônio dos administradores fosse arrolado na execução do processo.

Somente em 1975 é que os trabalhadores da Perus recebem suas indenizações, quase 13 anos após o início da greve e seis anos após seu término. Mário de Jesus se recusou a receber seus merecidos honorários, e parte dos trabalhadores que não ganharam a ação (os não estáveis) receberam um valor simbólico.

Legados de uma longa luta

O fim da greve, o reconhecimento dos direitos e a volta ao trabalho depois de longos anos de luta serviram para consolidar todo um movimento operário em torno da marca dos queixadas. Contudo, as condições da fábrica iam de mal a pior.

Em 1981 a gestão da Companhia Brasileira de Cimento voltou para a responsabilidade do Grupo Abdalla (segunda geração de administradores), mas não conseguiu manter a mesma lucratividade e produtividade, e em 1986 fechou definitivamente suas portas.

Em 1991, na gestão da prefeita Luiza Erundina, as dependências da fábrica foram tombadas como patrimônio histórico da cidade de São Paulo. Resiste nos dias de hoje um movimento formado por sindicalistas, familiares de trabalhadores da antiga fábrica, líderes comunitários e acadêmicos, que reivindicam a criação de um centro cultural nas antigas edificações da Perus (o movimento possui um site, que pode ser acessado aqui).

Ainda que os alicerces da fábrica estejam em ruínas nos dias de hoje, existe uma memória muito sólida da importância dos queixadas para o movimento operário nos anos de 1960. O espaço desse texto é restrito para contar todos os pormenores dessa luta intensa e extensa por direitos, e muito ficou de fora. Para os interessados, vale uma leitura pormenorizada dos trabalhos do pesquisador/historiador Elcio Siqueira, que analisou com muito cuidado o período das greves de Perus (obras podem ser acessadas aqui).

Seria possível escrever páginas e páginas sobre João Breno Pinto, por exemplo. O presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Cimento, Cal e Gesso de São Paulo. Histórias são contadas sobre a sua obstinação em defender os direitos dos seus colegas, sua incorruptibilidade e força de vontade. Dizem que no final da carreira, João Breno mal conseguia andar, de tanto ter apanhado em piquetes e manifestações, muitas delas pacíficas. Mesmo quando foi perseguido pelas autoridades políticas durante o Regime Militar, não desistiu. Ponto importante é que a Grande Greve de Perus atravessou os primeiros anos da Ditadura e sofreu com a repressão do governo. Seus líderes sindicais foram presos e destituídos de seus cargos, mas logo retornaram, pois eram os únicos reconhecidos como representantes dos queixadas.

Mário Carvalho de Jesus foi outro que dedicou boa parte de sua carreira como advogado a defender os queixadas, mesmo quando a vitória nos tribunais parecia muito distante. Além deles, as muitas mulheres, que frequentemente são esquecidas nas grandes narrativas da História, manifestaram-se, defenderam suas famílias e mantiveram-se firmes. Foram a base de todo o movimento grevista e o esteio das famílias.

Ainda há muito o que se falar dos queixadas e da Grande Greve. Aos poucos o Centro de Memória do TRT2 tem resgatado processos, investigado fontes e encontrado informações, que permitirão realizar, no futuro, uma homenagem mais digna do que o texto que vos apresento aqui. Como disse no início, mais do que prestar homenagem, escrever sobre os queixadas foi uma busca por inspiração para me manter firme durante um contexto adverso, de isolamento e incertezas. Espero que também sirva para vocês, leitores e leitoras que acompanham o trabalho do CM. Que fique o ensinamento dos queixadas e suas famílias: quando nos unimos por uma causa justa, nenhuma onça é tão grande!

Fonte: TRT2