Família acolhedora: serviço traz benefícios para crianças, municípios e sociedade

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Foto: Luiz Silveira/Agência CNJ
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A falta de informação, conhecimento e mobilização ainda são os maiores entraves para que serviços de acolhimento familiar sejam implantados nos municípios brasileiros. A modalidade é definida como preferencial no acolhimento de crianças e adolescentes no Brasil pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e reforçada pelo Pacto Nacional da Primeira Infância, coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Os dados, no entanto, mostram que apenas 5% dos meninos e meninas acolhidos estão em lares com famílias acolhedoras.

Tanto o acolhimento institucional quanto o familiar são temporários. Trata-se de medida excepcional e protetiva para crianças e adolescentes que por alguma razão precisam ser afastados temporariamente do convívio com a família de origem por determinação judicial. Para o presidente do Fórum Nacional da Infância e Juventude (Foninj), conselheiro Richard Pae Kim, o serviço de acolhimento familiar atende a toda a legislação em vigor que exige o funcionamento deste serviço público. “A família acolhedora garante o atendimento especializado e individualizado, com afeto, da criança e do adolescente, enquanto a situação da família de origem está sendo reorganizada”, informou.

De acordo com os dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), das mais de 32 mil crianças acolhidas no país, apenas 1.680 estão em famílias acolhedoras, o que representa apenas 5,3% dos acolhidos. Pae Kim ressalta que o CNJ tem incentivado a criação dos serviços de acolhimento familiar, já que a medida traz benefícios para os acolhidos, para os municípios e, consequentemente, para toda a sociedade. “A ideia é que o acolhimento familiar seja o prioritário, principalmente na primeira infância, ao invés do institucional, como estabelece a sistemática do Marco Legal da Primeira Infância”.

Nesse sentido, o CNJ realizou, na terça-feira (15/8) o 2º Encontro do Sistema de Justiça: a prioridade do acolhimento familiar, com o objetivo de sensibilizar os atores envolvidos para a preferência pela aplicação da medida protetiva de acolhimento em família acolhedora. O evento, voltado para magistradas e magistrados, promotoras e promotores de justiça, defensoras e defensores públicos e equipes técnicas está disponível no canal do CNJ no YouTube.

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Ampliação de vagas

A iniciativa do CNJ vai ao encontro do objetivo da sociedade civil organizada que lida com acolhimento em diversos lugares do país. Para a Coalizão pelo Acolhimento em Família Acolhedora, a ideia é aumentar o percentual de crianças em acolhimento na modalidade familiar dos atuais 5% para 20% até 2025. A Coalizão é composta por um grupo de gestores, pesquisadores e lideranças, atores governamentais e não governamentais imbuídos do intuito de promover a ampliação do acolhimento familiar no Brasil.

De acordo com a coordenadora de Advocacy do Instituto Fazendo História (IFH), Débora Vigevani, muitos serviços que já estão implantados estão aumentando o número de vagas para habilitar novas famílias e oferecer mais oportunidades às crianças acolhidas. Integrante da Coalizão e com atuação na cidade de São Paulo, o IFH tem 30 vagas disponíveis para receber crianças atualmente. Conveniado ao município desde 2020, o Instituto passou a contar com recursos públicos para manter o programa. Antes disso, o IFH contava com 10 vagas em família acolhedora, as quais subsidiava com recursos próprios.

O IFH é uma das cinco organizações que executam o serviço de família acolhedora no município de São Paulo, o qual dispõe, no total, de 150 vagas em famílias acolhedora – até 2022, apenas 39 delas estavam preenchidas. “Temos o desafio de mobilizar famílias para participarem, mas também enfrentamos resistência do próprio sistema de garantia de direitos”, destacou Débora.

Para ela, o serviço ainda é desconhecido e enfrenta mitos: a precarização do serviço de assistência social, por ser executado por voluntários; o risco de burla à fila de adoção; e maior sofrimento para as crianças ao voltar para a família biológica ou serem adotadas, entre outros. “É preciso desmistificar essas questões. A família acolhedora recebe capacitação prévia e acompanhamento constante da equipe de assistência social durante o acolhimento, os que se habilitam como família acolhedora não podem estar sequer inscritos no SNA e as crianças também são preparadas de maneira adequada para entender que aquela é uma situação temporária”, explica.

O serviço de acolhimento familiar deve ser instituído por lei municipal, que pode ser construída de forma articulada, com a participação da rede de proteção e mediação do Poder Judiciário. “A política pública garante o acolhimento de forma mais qualificada, a um custo menor para os municípios que, apesar de ofertarem um subsídio para as famílias – em São Paulo, é de um salário mínimo, para custear as despesas com as crianças – não tem o peso de manter uma instituição”, explica a coordenadora do IFH.

Débora Vigevani ressalta ainda que a atuação do Judiciário é importante na mobilização. “Essa atuação pode sensibilizar a rede de proteção sobre os benefícios do serviço”. Dessa forma, é possível incentivar o acolhimento familiar e mudar a proporção em relação ao abrigo institucional.

No Amapá, a juíza Larissa Antunes, da Vara de Infância da Comarca de Santana, conta que participou do processo de construção da lei municipal para criar o serviço de acolhimento familiar. “Recebemos o pedido do Ministério Público para que o programa Família Acolhedora fosse implantado na cidade. Fizemos uma audiência com todos os participantes, com o auxílio do Tribunal de Justiça (TJAP), o Ministério Público e a Secretaria Municipal de Assistência Social. Construímos a lei a várias mãos”.

Em Santana, o desafio é sensibilizar as famílias a participarem do serviço. Por enquanto, três famílias já estão habilitadas. No município, o subsídio oferecido é de 30% do salário mínimo por criança. “Ainda precisamos formar uma equipe consistente para fazermos uma campanha de sensibilização. Muitas famílias querem ajudar, mas não sabem como. Assim, o papel do Judiciário é fortalecer as iniciativas e articular com o Executivo”, explica.

Vínculo e afeto

Já em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, a juíza Lisiane Sasso, da Vara de Infância e Juventude, afirma que o acolhimento familiar oferece vínculo e afeto às crianças. “Há benefícios psicológicos e emocionais para as crianças acolhidas nessa modalidade. A forma que eles saem é muito melhor do que em uma instituição. Isso porque, por melhor que seja o abrigo, não há personalização e cuidado individualizado como no seio familiar”.

O município oferece atualmente um salário mínimo para custear as despesas da família acolhedora, podendo chegar a dois salários, em caso de criança com necessidades especiais. Em Passo Fundo, o serviço funciona especialmente para atender crianças na primeira infância – de zero a seis anos de idade.

Para alcançar as famílias, o Judiciário está investindo em propaganda e cuidados mais próximos, participando de reuniões de grupos religiosos e organizações sociais, além do trabalho de atualização da lei municipal, em vigor desde 2011. “Temos histórias de famílias que estavam receosas, a princípio, mas que, ao cuidarem de uma criança, acabaram tornando-se padrinhos da bebezinha, que foi adotada por outra família. Esse é um vínculo que não se desfaz com a adoção”, afirma.

O mesmo é reforçado por Karina de Melo Garcia, pedagoga e coordenadora da Missão Sal da Terra, que executa o serviço de Família Acolhedora em Uberlândia, Minas Gerais. Atualmente, o município, que tem 60 vagas para a modalidade, conta com 35 crianças em acolhimento familiar e 18 em acolhimento institucional, dos quais três são crianças acamadas e oito adolescentes. Além do cadastro e acompanhamento, a Missão também capacita as famílias que serão inseridas no serviço. Para isso, são realizados cinco encontros – com três horas cada – em família.

A cada três meses são realizadas audiências concentradas, com a participação de toda a rede de proteção. A Missão também trabalha com a família de origem, para possibilitar a reintegração das crianças. Se não for possível, o juiz destitui o poder familiar e coloca a criança como apta para a adoção. “Muitos se preocupam com o vínculo com as crianças, mas conscientizamos que formar vínculo não é algo negativo. Você não deixa de fazer amigos na escola porque pode mudar de instituição no ano seguinte”, ressalta Karina Melo.

A maior dificuldade ainda é a mobilização das famílias. Apesar de investirem em divulgação pela mídia, a coordenadora acredita que o “boca a boca” ainda é a melhor estratégia. “Quando temos bons resultados, uma família conta para a outra e, assim, conquistamos novos voluntários. Para o município isso também é vantajoso, pois cumpre a lei, oferece um acolhimento mais saudável e ainda é um serviço menos custoso”. A Missão está articulando com o município a possibilidade de oferecer um subsídio diferenciado para quem acolhe adolescente, já que essa fase da vida apresenta outras necessidades.

Ela conta que tiveram casos como a de três crianças que ficaram com um casal de idosos e que elas os tratavam como avós. Quando foram adotados, a família, que era de São Paulo, voltava a Uberlândia para visitar os “vovôs”. Em outra situação, uma bebezinha de 11 meses que sequer conseguia sentar, depois de uma semana de incentivo na Família Acolhedora, já estava engatinhando. “O custo-benefício vale a pena de ser feito”, afirma.

A coordenadora diz ainda que o engajamento do juiz local é muito importante para o fortalecimento do serviço e da rede de proteção. Em Uberlândia, o magistrado responsável participa dos cursos de formação, fala sobre a realidade do serviço, da adoção e da vulnerabilidade das crianças, além de dar um contexto histórico sobre a institucionalização das crianças no Brasil, com os orfanatos e o Código de Menores. “Uma juíza federal participou de um de nossos cursos e tornou-se uma família acolhedora. Ela abrigou duas meninas por mais de um ano. Depois, quando ela se casou, as meninas foram suas daminhas de honra”.

A aposentada Vânia Darc Borges Campos atua como família acolhedora desde 2019, em Brasília. Para ela, o serviço oferece um tratamento diferenciado, “por que a criança não perde o sentido de família e isso é muito importante para o futuro dela”. Ressalta que o cuidado e atenção na infância é muito importante para o futuro de um ser humano. “Por isso, eu faço com muito carinho esse trabalho”.

Já Verânia Brito Leal Amaral e seu marido Arnaldo Alves Costa, também de Brasília, mobilizam a rotina da casa para atender as crianças que recebem como prioridade, assim como fazem com sua filha biológica. “Acho que falta uma divulgação mais intensa”, ressalta Verânia. Ela enfatiza que é comum encontrar pessoas que nunca ouviram falar da possibilidade de acolher as crianças. “Mobilizamos os nossos amigos para que pudessem divulgar o serviço em suas redes e ampliar a visibilidade do Família Acolhedora. Também ampliamos os laços com outras famílias acolhedoras para trocarmos experiências, arrecadarmos doações e nos fortalecermos enquanto rede”, afirmou.

Texto: Lenir Camimura
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias

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