Evento literário para o sistema socioeducativo conclui etapa aberta ao público

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Abordando a conexão entre leitura, educação, cultura, cidadania e representatividade, a etapa aberta ao público da 2ª edição do evento Caminhos Literários do Socioeducativo foi concluída na última semana com mais de 3 mil visualizações no YouTube e exibição para centenas de adolescentes em unidades socioeducativas em todo o país. A partir desta quarta (6/12), o evento terá três datas de programação reservada a adolescentes em unidades socioeducativas – mais de 80 estão inscritas para essa fase.

O evento é realizado pelo programa Fazendo Justiça, coordenado pelo Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para acelerar transformações no campo da privação de liberdade. “A realização da segunda edição do evento é mais um desdobramento da política de leitura promovida pelo CNJ que abrange todo o campo da privação de liberdade, que incluiu ainda a realização de censos para que possamos desenhar políticas públicas mais efetivas com base em evidências. A ampla adesão a esses eventos e feedback positivo dos participantes comprovam que estamos no caminho certo”, avalia o coordenador do DMF/CNJ, Luís Lanfredi.

Na Unidade de Atendimento Socioeducativo 1 no Pará, o evento foi acompanhado pela equipe técnica, servidores, servidoras e adolescentes da unidade. “As falas estão muito tocantes, a equipe está reflexiva sobre as ações que podemos articular para o final do ano. É uma ação que está mobilizando toda a comunidade socioeducativa aqui. E está lindo de ver, os adolescentes muito interessados e empolgados”, avalia Érika Fares, professora de história da Secretaria de Educação e servidora na unidade que recebe adolescentes de 12 a 15 anos do sexo masculino. A professora conta que irão preparar atividades utilizando o material apresentado pelos autores convidados e que interessaram os adolescentes.

Leitura, Cidadania e Representatividade

Em sequência à abertura do evento que teve como destaque o primeiro Censo de Leitura no Socioeducativo, o segundo dia da etapa aberta ao público trouxe os temas cidadania e representatividade, com o primeiro grupo de rap indígena no Brasil, Bro MCs. “O rap indígena no Brasil é uma poderosa ferramenta da existência cultural, a gente dá a voz e a visibilidade das nossas comunidades indígenas, promove a valorização das nossas tradições e lutas. O rap indígena representa a resistência do nosso povo, mas também de todos os indígenas existentes no Brasil. A gente leva a voz dos nossos ancestrais através do rap e levamos a luta do nosso povo indígena para o palco”, disse Kelvin Barete.

A jornalista carioca Eliana Cruz refletiu sobre as diferentes formas de leitura, como a contação de histórias, e sobre a necessidade de mais diversidade negra na literatura brasileira. “Ainda somos muito poucas e poucos se a gente for olhar o conjunto da obra do último século da literatura no Brasil”. Ela destacou que, de acordo com a Universidade de Brasília, 60% dos livros publicados no Brasil foram por homens brancos do Sudeste e nível universitário. “Mais do que isso, os personagens também são brancos, em maioria. Nós, pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+ estamos quebrando os paradigmas ao contribuir para a literatura. Porque nós somos a maioria esmagadora do país e precisamos tomar os espaços, inclusive a literatura”.

A escritora paraense Márcia Kambeba partiu de sua própria trajetória, relembrando a aldeia onde nasceu, para falar sobre a literatura enquanto elemento de resgate de sua cultura. “A educação, o carinho, as territorialidades dos afetos e a arte são fundamentais para a formação da nossa identidade”. Márcia também falou sobre o trabalho de oficina de poesias em presídios, trabalho que transforma a partir da leitura. “A literatura transforma e reeduca quando a gente se propõe a conhecê-la”.

Em uma de suas últimas falas públicas antes de seu falecimento no último domingo (3/12), a quem o CNJ manifesta pesar e presta homenagens por seu legado ao pensamento social brasileiro, o pensador quilombola, filósofo, poeta, escritor, professor e ativista político piauiense Antônio Bispo dos Santos, conhecido como Nego Bispo, alegou que a literatura foi supervalorizada historicamente. “Chegamos ao momento de dizer que quem não sabe ler e escrever é atrasado, não tem conhecimento e não tem civilidade. Isso é tão forte que os contratos sociais só têm validade quando escriturados, ao passo que os contratos oralizados, feitos historicamente pelos indígenas e povos afros, foram violentados pelos contratos escritos”, ponderou. Ele contou ser um relator da trajetória quilombola e que os livros escritos são feitos para ajudar o povo a falar sobre a própria história. A mesa foi mediada pelo juiz do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), Pedro Toaiari de Mattos Esterce.

Vozes emergentes

Filmes e cinema foram abordados pelo roteirista e cineasta Gabriel Martins enquanto forma de reforço de laços comunitários. Diretor do filme Marte 1, escolhido para representar o Brasil no Oscar de 2023, Gabriel começou a própria produtora com mais dois amigos de bairros próximos e começou a fazer cinema nas comunidades em que viviam. “Quando a gente começou a contar histórias da região e envolver as pessoas do bairro, desenvolveu-se um sentimento de recompensa e começamos a nos entender diante da nossa história, o que nos diferenciava de quem fazia cinema no Brasil”.

Presidente da Frente Nacional de Mulheres de Hip Hop (SP), Lunna Rabetti apresentou trabalhos na área de literatura como o livro “Perifeminas”, artes feitas por grafiteiras e personagens importantes para o movimento ,assim como trabalhos desenvolvidos pelo hip hop na Fundação Casa (SP). Apresentou ainda o livro “Um salve de Mudança” com poesias feitas por internos, que se desdobrou em outros produtos culturais. “Nós no artístico da cultura acabamos sendo porta-vozes de pessoas internas, por isso, quis encerrar essa apresentação com as vozes de internos”.

A escritora Tais de Sant’anna Machado partiu da análise de imagens da verdadeira Tia Anastácia que inspirou a personagem de Monteiro Lobato – um dos temas discutidos em seu livro Um pé na Cozinha – para falar sobre a linguagem que cria estereótipos de maioria que foram menorizadas. “Eu gostaria que vocês pensassem como a personagem [de Monteiro Lobato] não tem absolutamente nada a ver com a real pessoa, que é alta, esguia e magra; e pensar no poder de como a linguagem é capaz de violentar, estereotipar e aprisionar pessoas em personagens que são úteis para quem escreve”.

O direito à leitura

O direito à leitura foi discutido por representates do Poder Público. “Não basta dizer que leitura é um direito. A gente precisa de políticas públicas que realmente concretizem o fato de que ler transforma”, resumiu o mediador da mesa, juiz da vara da Infância e Juventude de Toledo (PR), Rodrigo Rodrigues Dias.

O coordenador-geral de Leitura e Bibliotecas do Ministério da Cultura, Marcus Rocha, disse que os dados do Censo de Leitura do Socioeducativo vão auxiliar na revisão do Plano Nacional do Livro e da Leitura que está sendo debatido na pasta da Cultura. “O acesso à leitura liberta e garante cidadania e dignidade, a exemplo do que acontece com os assistidos do sistema socioeducativo”. Coordenadora do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) no Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), Mayara Silva de Souza destacou o caráter complementar de diversos órgãos para o funcionamento do sistema socioeducativo e que o processo de debates para a revisão do Plano Nacional de Atendimento do Sinase pode ser usado no futuro para reforçar a pauta do acesso à leitura nas unidades e programas do Socioeducativo.

Representando o Ministério da Educação, a coordenadora-geral de Educação de Jovens e Adultos Mariangela Graciano comentou sobre os planos da pasta para a formação continuada de profissionais de educação. “O que chamamos de formação inicial dos professores, que acontece nas faculdades, é muito centrada na criança e adolescente nas escolas. Por isso estamos, junto com a Capes, preparando um programa de educação continuada e um dos módulos será para o trabalho em unidades do Socioeducativo”.

Juiz assessor da Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) para assuntos da Infância e da Juventude, Iberê de Castro Dias avalia que é preciso despersonalizar os planos e programas de incentivo à leitura no socioeducativo para que aconteçam não por iniciativas individuais, mas de forma sistemática.

Direito à participação

“Eu não acreditava que a literatura salvava até ser salva pela literatura”, disse UNV do programa Fazendo Justiça Iasmim Baima, que durante dois anos e meio cumpriu medidas socioeducativas em Brasília. Ela contou que começou a ler para passar o tempo, mas foi se encantando com o processo. “Um livro para quem está confinado não é só um objeto, é um item de saúde”, comentou.

Professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais que coordena projetos em comunidades periféricas e com adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, Andreia Campos Guerra disse que diversos estudos apontam que os adolescentes de países chamados em desenvolvimento passam por um processo de travessia bem diferente dos relatos europeus. “E essa diferença é ainda maior quando se fala de adolescência periférica, negra e de classes sociais mais baixas”.

Integrante da Agenda Nacional Pelo Desencarceramento de Sergipe, Iza Negratcha contou que durante os seus três anos no cárcere trabalhou biblioteca, e ali se sentia útil por ajudar outras mulheres a aprender a ler. Foi no mesmo local em que viu pela primeira vez Código Civil. “Li três vezes do começo ao fim e aí decidi que queria estudar Direito”. Ela deixou um conselho para os e as adolescentes que estavam assistindo: “Quando estiverem tristes, escrevam. Escrevam quando estiverem com raiva. Escrevam quando estiverem apaixonados. Depois, comecem a ler o que vocês escreveram para se compreender. E para entender o que se precisa ser”.

Sobre o evento

A programação continua nos dias 6 e 7 de dezembro, com duas sessões fechadas direcionadas aos adolescentes em unidades de internação e profissionais envolvidos no acompanhamento de medidas socioeducativas. No dia 13 de dezembro, o encerramento será marcado pela primeira Conferência Livre de Cultura no Sistema Socioeducativo, parceria entre o CNJ e o Ministério da Cultura.

Texto: Isis Capistrando e Pedro MalavoltaEdição: Débora ZampierAgência CNJ de Notícias

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