As prisões em flagrante no Brasil não estão associadas aos locais das ocorrências e alcançam tanto indivíduos oriundos de áreas socialmente vulneráveis, quanto provenientes de áreas de menor vulnerabilidade social. Concomitantemente, a disponibilidade de serviços que contribuem para amenizar tal vulnerabilidade não garante que eles sejam efetivos, uma vez que são inúmeras as barreiras para acessá-los.
As conclusões, obtidas pela pesquisa “Encarceramento, políticas públicas e atuação da Justiça em territórios de vulnerabilidade social”, foram apresentadas no “Seminário de Pesquisas Empíricas aplicadas a Políticas Judiciárias”, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na quinta-feira (24/6). O estudo integra a 4ª edição da Série Justiça Pesquisa e foi desenvolvido pela Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto.
O debate, coordenado pela juíza auxiliar da Presidência e coordenadora do Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ) do CNJ, Ana Lúcia Andrade Aguiar, teve a participação do secretário especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica do Conselho, Marcus Lívio Gomes, e da diretora-executiva do DPJ, Gabriela Soares. O levantamento foi apresentado pelos coordenadores da pesquisa, professores doutores da USP/Ribeirão Preto, Carla Ventura e Leonardo Naves dos Reis.
O levantamento foi realizado nas regiões metropolitanas de Manaus (AM), Natal (RN), Fortaleza (CE), Campinas (SP), Cuiabá (MT), Goiânia (GO) e Porto Alegre (RS) com o objetivo de compreender em que medida as condições de vulnerabilidade socioeconômicas de algumas pessoas podem elevar as chances de envolvimento em condutas ilegais ou de ser alvo da atuação das agências de persecução penal. De acordo com Carla Arena, o estudo buscou a complementariedade dos dados quantitativos e qualitativos para apresentar, com maior clareza, as diferentes perspectivas para abordagem do tema. “O desafio maior foi trabalhar com o conceito de vulnerabilidade social e analisar os dados a partir dessa perspectiva. Nosso objetivo foi efetuar a escuta ativa de todos os participantes do processo.”
A pesquisa apurou a frequência de prisões em flagrante de adultos segundo local de residência, índices de vulnerabilidade social, tipo de crime cometido e características sociodemográficas das pessoas autuadas. O levantamento mostra que cidades como Manaus, Natal e Fortaleza registram mais prisões em flagrante de pessoas adultas de áreas socialmente vulneráveis, enquanto que em Campinas e Cuiabá são, na maioria, de áreas de menor vulnerabilidade social. “Os dados refletem a realidade hostil vivenciada pelos egressos e pelas pessoas em conflito com a lei e as forte privações a que essas pessoas são submetidas.”
População carcerária
O último relatório do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), de dezembro de 2019, mostra que o Brasil possui 748.009 pessoas privadas de liberdade. O elevado índice de encarceramento insere o país como o terceiro no mundo com maior população carcerária, sendo superado apenas pelos Estados Unidos, com 2.145.100 presos e pela China, com 1.649.804 presos.
O índice é reforçado por uma dinâmica que se repete no sistema de justiça criminal brasileiro: o encarceramento atinge majoritariamente jovens de até 29 anos de idade (55%), negros (64%), com baixo grau de escolaridade, sendo que 75% sequer acessaram o ensino médio. Esse perfil é confirmado pela análise sociodemográfica realizada na pesquisa “Encarceramento, políticas públicas e atuação da Justiça em territórios de vulnerabilidade social”. Nesse estudo, o perfil das pessoas autuadas é, em geral, homem jovem, com pouca ou nenhuma escolaridade, de baixa renda, sem filhos e oriundos de áreas de média a muito alta vulnerabilidade.
Sistema de Justiça
O estudo revela que 39,6% dos casos submetidos a audiências de custódia têm a prisão preventiva decretada e que 56,7% das pessoas autuadas haviam cometido crime punível com mais de quatro anos de reclusão. Entre as variáveis possivelmente associadas ao tipo de crime, conforme a pesquisa, estão capital humano, renda e trabalho, que são subdimensões do Índice de Vulnerabilidade Social (IVS).
Ao buscar identificar como a exposição do indivíduo processado à vulnerabilidade afeta a tomada de decisões dos agentes sociais envolvidos com a persecução criminal, o levantamento conclui, com base em dados qualitativos, que os profissionais da justiça criminal têm consciência da existência de vulnerabilidade social e dos contextos que a permeiam. “O estudo qualitativo vem para desconstruir generalizações e entrar naquilo que é específico e não permitir que informações sejam usadas de forma distorcidas”, observa o pesquisador Leonardo Naves.
O estudo revela que juízes, juízas e integrantes do Ministério Público e das polícias militares e civis consideram que a lei precisa ser aplicada, independentemente dos contextos sociais de vulnerabilidade. De acordo com a pesquisa, as pessoas autuadas por crimes mais graves tendem a ter a prisão preventiva decretada mais do que aquelas que cometem crimes de menor potencial ofensivo. Foi possível descrever os índices de decretação de prisão preventiva, conforme a UDH de residência; UDH com maiores índices de vulnerabilidade tendem a apresentar uma taxa maior de prisões preventivas como resultado de audiência de custódia.
Magistrados e magistradas, membro da promotoria e da Defensoria relataram que se sentem solitários e distantes das realidades sociais, enquanto que profissionais da Psicologia e da Assistência Social avaliam que suas atuações não são compreendidas. Por outro lado, policiais, no âmbito de suas atuações, tentam contribuir para a redução da vulnerabilidade social, apesar de integrantes da categoria demonstrarem postura mais distante em relação à população socialmente vulnerável. O levantamento conclui que falta articulação entre os órgãos envolvidos na persecução criminal.
Já os depoimentos das pessoas autuadas sobre suas condições de vulnerabilidade social apontaram a ausência de serviços públicos, tais como acesso à escola, unidades de saúde, suas limitações e dificuldades. Porém, os relatos contrariam as informações levantadas a respeito da presença de serviços públicos nas comunidades por meio da análise dos mapas das regiões. Mesmo disponibilizados, diversos fatores impedem que pessoas vulneráveis acessem tais serviços.
Debates
A apresentação teve no debate o defensor público do Rio Grande do Sul, Andrey Regis de Melo, o professor associado de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP/Ribeirão Preto, Victor Gabriel de Oliveira Rodrigues, e a supervisora do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF/CNJ), Melina Machado Miranda.
Para o defensor público, os dados mostram a necessidade de ajustes no sistema criminal. “O Brasil teve o maior regime escravocrata das Américas e essa herança estrutura a sociedade brasileira. E o território onde a pessoa vive é fundamental para definir se ela é ou não criminosa e a vulnerabilidade social é indício para caracterização de crimes mais graves.”
Já o professor Victor Gabriel destacou a importância de se ouvir as pessoas, sendo um passo fundamental para compreensão do que ocorre. “Existe um quadro de potencial violação de direitos humanos e que exige maior atenção.”
Na visão das pessoas em conflito com a lei, familiares e moradores de bairros com elevado IVS, os órgãos de persecução criminal são distantes e inacessíveis. Na avaliação da supervisora do DMF/CNJ, Melina Machado, a pesquisa revela com clareza o distanciamento do Sistema de Justiça, que é um sistema hierárquico, dessas pessoas. A exceção, conforme o levantamento, é a Polícia Militar, cuja presença é ostensiva, inclusive com relatos de emprego de violência durante abordagens e flagrantes. Essas pessoas também demonstraram desconhecer direitos e deveres e como o Sistema de Justiça funciona.
Jeferson Melo
Agência CNJ de Notícias
Reveja a apresentação da pesquisa no canal do CNJ no YouTube