Assumir uma nova postura diante das pessoas em situação de rua e de seus direitos fundamentais é uma tarefa que o Poder Judiciário assumiu com a instituição da Política Nacional Judicial voltada a esse grupo, instituída pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com a edição da Resolução CNJ n. 425/2021, aprovada em outubro. De acordo com palestrantes do Webinário Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades, realizado pelo CNJ nesta quinta-feira (11/11), a invisibilidade histórica e a vulnerabilidade social desse contingente populacional, em meio a uma crise social e econômica causada pela pandemia da Covid-19, justificam a urgência da mudança de atuação do Judiciário.
“Essa é a grande ruptura e inovação fundamental da Resolução CNJ n. 425, que faz com que o Poder Judiciário possa observar as diversas vulnerabilidades e perceber as pessoas em situação de rua como titulares de direitos, e não apenas aquela categoria de sujeitos perigosos”, afirmou o defensor público federal Renan Sotto Mayor. O respeito e a dignidade da pessoa humana e a não-criminalização dessas pessoas são os dois primeiros princípios listados na Resolução como orientadores da política do Judiciário para essa população.
A norma determina, por exemplo, que juízes criminais evitem a prisão preventiva dos autores dos crimes “em razão da situação de rua”, sempre que o Código de Processo Penal preveja medida cautelar, e não detenção, como punição para o crime. Muitas justificativas para prisões preventivas usam o fato de o preso não possuir residência fixa.
Invisibilidade
“A invisibilidade da população em situação de rua para gozar de direitos fundamentais sempre existiu, mas não para acessar a justiça criminal. Nessas situações, não faz falta um documento de identificação ou um comprovante de residência”, afirmou. Sotto Mayor foi coautor de uma ação civil pública ajuizada na Justiça Federal em 2017 para exigir a contagem da população em situação de rua pelo censo demográfico. Atualmente, a Defensoria Pública da União (DPU) está recorrendo da decisão contrária, em segunda instância, ao pedido.
“Partimos de um princípio jurídico bem simples: se são pessoas, devem ser computadas. Se o IBGE não sabe fazer isso, cria-se metodologia. Sabemos quantas cabeças de gado temos no Brasil, mas não sabemos quantos brasileiros estão em situação de rua”, afirmou o defensor público federal, que criticou a naturalização da desigualdade social e do racismo estrutural no país.
Identificação
A invisibilidade das pessoas em situação de rua para o Estado passa também pela falta de documentação de identificação individual. Não ter documentos inviabiliza o exercício integral da cidadania, de acordo com o juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça Daniel Marchionatti, pois acessar qualquer serviço público exige a identificação do cidadão. Não ter uma casa onde guardar seus papéis, no entanto, não é a única causa do sub-registro civil desse segmento populacional estimado em 220 mil brasileiros. Segundo o magistrado, obter um documento identificador pode envolver um processo muito burocrático, de acordo com a unidade da Federação onde se faz a solicitação.
Para Marchionatti, o problema começa no próprio ordenamento jurídico brasileiro, que confere essa obrigação de identificar o cidadão não ao Estado, mas a particulares. O Provimento 104 da Corregedoria Nacional de Justiça começou a mudar essa realidade em junho de 2020 ao obrigar cartórios de registro civil a enviar – sem cobrar pelo serviço – aos institutos estaduais de identificação os registros necessários (certidões de nascimento) para a emissão de registro geral de identidade de pessoas em vulnerabilidade socioeconômica.
De acordo com a supervisora do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema Socioeducativo (DMF/CNJ), Melina Machado Miranda, a Justiça está em processo de mudança de papel em relação aos demais órgãos do poder público na abordagem da população em situação de rua. De acordo com a especialista em assistência social, a Resolução CNJ n. 425 assume uma posição ativa para o Poder Judiciário de não-criminalização da população de rua e de articulação com outras políticas judiciárias para a justiça criminal.
A Resolução CNJ n. 307/2019 instituiu a política de atenção à pessoa egressa, com a previsão de se preparar a saída do cidadão preso seis meses antes do fim do regime fechado, de forma a evitar a volta às ruas e a perpetuação do ciclo vicioso da criminalidade. A Resolução CNJ n. 412/2021, por exemplo, determina que juízes evitem decretar, como medida cautelar em resposta a um crime, o monitoramento eletrônico de pessoas que morem na rua. “Se a bateria descarrega, essa pessoa vai ser apreendida como se tivesse uma conduta falha, quando, na verdade, sofre da falta de estrutura para carregar o equipamento. No momento de se atribuir medidas cautelares, a situação de rua tem de estar evidente. É importante pensar no percurso, trajetória, local de vivência dessa pessoa”, afirmou a mestra em Serviço Social.
Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias