A desigualdade brasileira é histórica e sistêmica e tem na população negra sua maior vítima. Ainda que correspondam a pouco mais da metade da população (56%), são a maioria das pessoas assassinadas (78%), das vítimas de latrocínio (64%) e de feminicídio (61,8%), segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. De igual modo, estão sobrerrepresentadas no sistema penitenciário, dado que 66% das pessoas encarceradas são negras, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) – número que pode ser ainda maior, pois não há dados sobre raça e cor de mais de 20% desta população.
“O racismo estrutural e as desigualdades exigem respostas em todas as esferas da sociedade, o que inclui a justiça criminal. O Judiciário tem, portanto, um papel fundamental na promoção da equidade e no enfrentamento destas questões, assegurando a plena aplicação das diretivas constitucionais”, aponta o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Luís Lanfredi.
Na obra Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil, a filósofa Sueli Carneiro pontua que a naturalização da desigualdade de direitos está ligada ao período de escravização no Brasil e à abolição inconclusa. Em sequência a esse processo, políticas de exclusão criaram obstáculos para o acesso da população negra à educação formal, ao mercado de trabalho e à participação política.
Atento a esse contexto de forma a aprimorar a prestação de justiça criminal e de execução penal, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), vem trabalhando o enfrentamento à desigualdade racial de forma transversal às ações do Programa Fazendo Justiça. Desde 2019, o programa trabalha soluções para superação de problemas estruturais no campo da privação de liberdade, com o apoio do Depen.
Uma das ações é justamente para a qualificação de dados a partir do aperfeiçoamento de campos cadastrais relacionados a raça e etnia nos sistemas eletrônicos geridos pelo DMF/CNJ. O objetivo é fomentar a visibilidade deste e de outros temas relacionados a populações específicas e em vulnerabilidade.
Porta de entrada
Previsto para ser lançado no primeiro semestre de 2022, o Guia de Promoção da Igualdade Racial nos serviços da porta de entrada da Justiça criminal trará uma série de conteúdos direcionados a profissionais da audiência de custódia, centrais de alternativas penais e varas de execução criminal. A partir da publicação do Manual de Proteção Social na Audiência de Custódia em 2020, que tem um tópico dedicado às questões raciais, percebeu-se a necessidade de um material mais robusto sobre o tema. “O guia vem para ampliar e aprofundar esse debate, que foi também uma demanda levantada pelas equipes durante os ciclos formativos que ministramos”, explica o assessor de coordenação do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) Igo Ribeiro.
Partindo de processos históricos, a publicação trará conteúdos técnicos sobre a promoção da igualdade racial nas alternativas à prisão e nas audiências de custódia, promovendo a igualdade racial nas atividades de atendimento e de acompanhamento dessas pessoas. Haverá, ainda, discussão sobre autopercepção e reprodução do racismo nas relações interpessoais, especialmente no que diz respeito a estigmas e estereótipos, aos impactos psicossociais para quem passa pelo sistema e também para quem executa o serviço, e à proteção social para vítimas de racismo. Por fim, um capítulo será dedicado ao compartilhamento de incidência exitosa do poder público nesse contexto.
Pessoas egressas
No campo de atenção a pessoas egressas, o Fazendo Justiça está trabalhando uma metodologia de abordagem dos marcadores de raça e gênero nos Escritórios Sociais, de forma a alinhada à Resolução CNJ n. 307/2019. Além disso, estão sendo desenvolvidas atividades formativas para profissionais envolvidos na atenção a pessoas egressas – incluindo gestores e técnicos dos Escritórios Sociais; equipes psicossociais das Varas de Execução Penal e integrantes de instituições parceiras -, com um módulo dedicado aos marcadores sociais da diferença e seus múltiplos impactos. Em 2021, mais de 720 pessoas passaram por essas formações.
A fim de ampliar o alcance dessa estratégia, foi constituído um curso de formação que resultou na capacitação de 30 pessoas de Redes de Atenção às Pessoas Egressas do Sistema Prisional, Varas de Execução, organizações da sociedade civil e de Escritórios Sociais das cinco regiões do país. “A nossa preocupação central é disseminar conceitos éticos, teóricos e metodológicos dos Escritórios Sociais a partir de uma abordagem interseccional que chame a atenção para as múltiplas violências estruturais que o ambiente prisional intensifica, especialmente em razão de desigualdades econômicas, de raça e de gênero”, explica o coordenador da área de cidadania do programa Fazendo Justiça, Felipe Athayde.
Socioeducativo
Lançados em 2021, os manuais sobre a Central de Vagas do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo e sobre Audiências Concentradas para Reavaliação das Medidas Socioeducativas de Semiliberdade e Internação apontam que o perfil de jovens atendidos na socioeducação é indicativo tanto da seletividade do sistema quanto da maior exposição desse segmento da população à violência e à criminalidade – 56% dos adolescentes de privação ou restrição de liberdade, em 2017, eram negros e negras. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 81% das vítimas de violência letal, entre 15 e 19 anos, em 2021 eram negras.
“Uma vez que o racismo está presente de maneira exponencial no sistema socioeducativo, todas as nossas ações abordam esse tema e trazem a temática racial para o contexto de atuação das equipes, buscando criar ferramentas para o enfrentamento desta situação”, explica Fernanda Givisiez, coordenadora do eixo do socioeducativo do Programa Fazendo Justiça.
Renata Assumpção
Agência CNJ de Notícias