Para debater e aprimorar diretrizes de atendimento a pessoas com questões de saúde mental que passam pelas audiências de custódia, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realizou capacitação on-line com quase 200 profissionais dos Serviços de Atendimento à Pessoa Custodiada (APEC) e das Equipes de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis às Pessoas com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (EAP). O evento foi o fechamento de um ciclo de 12 encontros com as equipes APEC de todo país e discutiu estratégias para melhorar os fluxos de trabalho entre esses profissionais e as equipes EAPs da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
Com ênfase na implementação da Resolução CNJ n. 487/2023, que instituiu a Política Antimanicomial do Poder Judiciário, o objetivo do encontro foi contribuir para a qualificação das ações de proteção social nas audiências de custódia, integrando as políticas de alternativas penais e os serviços de atenção à saúde, promovendo o acesso das pessoas custodiadas às redes de serviço que cuidam de cidadania e inclusão social.
“Ao garantir que os profissionais que lidam com a porta de entrada do sistema prisional estejam devidamente capacitados, estamos investindo não apenas na eficiência do processo, mas na garantia dos direitos fundamentais dos indivíduos envolvidos e na segurança de toda uma população. Esse tipo de condução adequada do atendimento nos serviços penais, e a interlocução com os serviços de saúde e proteção social, nos ajudam a construir o caminho da superação do estado de coisas inconstitucional, como já determinou o Supremo Tribunal Federal” destacou Luís Lanfredi, coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF/CNJ).
Em outubro de 2023, o STF ordenou a elaboração de um plano nacional de enfrentamento ao estado de coisas inconstitucional nas prisões brasileiras, oriunda do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 em outubro de 2023. Coordenado pelo CNJ e pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, em diálogo com instituições, órgãos competentes e entidades da sociedade civil, o Plano Pena Justa está sendo elaborado a partir de quatro eixos: 1) Controle da Entrada e das Vagas do Sistema Penal; 2) Qualidade da Ambiência, dos Serviços Prestados e da Estrutura; 3) Processos de Saída da Prisão e da Inserção Social e 4) Políticas de não Repetição do Estado de Coisas Inconstitucional no Sistema Prisional. A formação se insere tanto no Eixo 1, pela promoção das medidas alternativas ao encarceramento e fortalecimento dos serviços APEC, quanto no eixo 2 do plano, com previsão de ações para garantia de estruturas de atendimento na rede de saúde e criação de espaços de governança e diálogo interinstitucional.
“Nosso objetivo com essa formação é fortalecer nossa capacidade de atender às necessidades subjetivas e sociais das pessoas custodiadas, garantindo que as medidas tomadas promovam a liberdade e a reintegração social de forma eficaz”, disse, na abertura do evento, o juiz auxiliar da Presidência do CNJ com atuação no DMF Jônatas Andrade.
O processo formativo das equipes multidisciplinares, a promoção das políticas de alternativas penais e as ações com foco em saúde mental fazem parte do escopo do programa Fazendo Justiça, coordenado pelo DMF/CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Fortalecendo a proteção social
Atualmente, o serviço APEC está presente em 25 estados brasileiros, com a expectativa de expansão para todas as capitais neste ano. O principal objetivo dessas equipes é fornecer atendimento direcionado à proteção social durante as audiências de custódia, em consonância com a Resolução CNJ n. 213/2015, que determina a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas, e a Resolução n. 288/2019, que define a política institucional do Poder Judiciário para a aplicação de alternativas penais com enfoque restaurativo.
Foi para orientar a aplicação das diretrizes dessas resoluções que o CNJ, por meio do Fazendo Justiça, lançou, em 2020, o Manual de Proteção Social na Audiência de Custódia, estabelecendo parâmetros nacionais para a atuação das equipes multiprofissionais no serviço de Atendimento à Pessoa Custodiada (APEC). E, a partir desse material, o CNJ tem promovido a constante atualização e capacitação das equipes em todo o país.
Em momento prévio à realização das audiências de custódia, as equipes do serviço APEC têm como atribuição identificar situações de crise em saúde mental, uso abusivo de álcool e outras drogas, entre outras necessidades psicossociais. Identificados esses indícios, as equipes devem registrar essas informações em relatório para o juiz ou juíza, que deve decidir pela suspensão da audiência e acionamento da equipe da Rede de Atenção Psicossocial (EAP/RAPS) que tem como atribuição fazer o manejo adequado da crise em saúde mental e o referenciamento da pessoa no serviço de saúde. As equipes EAP, atuando desde a fase inicial do processo judicial, garantem que as necessidades de saúde mental das pessoas custodiadas sejam identificadas e atendidas. Por isso a importância do trabalho integrado entre APEC e EAP, que também contribui para o fortalecimento do instituto das audiências de custódia em todo país.
Política antimanicomial: avanços e desafios
A política antimanicomial no Brasil, instituída pela Resolução CNJ nº 487/2023, passa por um processo ativo de desenvolvimento e implementação, com foco especial na colaboração entre os poderes Judiciário e Executivo. Esta abordagem multidisciplinar envolve diversos ministérios, visando garantir uma implementação eficaz e abrangente que vá além da desinstitucionalização local e com foco em saúde. “O trabalho em equipe e as articulações com diversos órgãos é fundamental para fomentar uma mudança cultural. A troca de experiências hoje não só enriquece nosso entendimento coletivo, mas também reafirma nosso compromisso com o aperfeiçoamento contínuo das práticas judiciais em relação à saúde mental na justiça criminal”, disse Melina Miranda, supervisora no DMF/CNJ.
Dados da Senappen do segundo semestre de 2023 indicam que, embora existam 25 Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs) no Brasil, há 2.542 pessoas em medida de segurança distribuídas em 96 unidades prisionais, com 2.330 delas em regime de internação e 212 em tratamento ambulatorial. Esses números representam apenas 0,30% das 846.021 pessoas em privação de liberdade no país, destacando que, apesar de significativo, esse desafio constitui uma pequena fração do contexto mais amplo da privação de liberdade nacional.
Pollyanna Alves, coordenadora do eixo cidadania do programa Fazendo Justiça, destacou que o perfil predominante das pessoas em sofrimento mental em conflito com a lei — majoritariamente jovens, homens e membros da população negra, muitos dos quais afetados pelo uso abusivo de substâncias — requer uma abordagem judicial que garanta direitos e seja explicitamente antirracista.
Um desafio crucial é garantir que o fechamento de hospitais ocorra com o planejamento adequado, resultando em soluções organizadas que satisfaçam as necessidades dos pacientes de forma suficiente. Para monitorar e assegurar a eficácia desta política, os Comitês Estadual e Nacional Interinstitucionais de Monitoramento da Política Antimanicomial (CEIMPA e Conimpa) desempenham papéis vitais. Atualmente, iniciativas de implantação e monitoramento estão em andamento em 26 estados, e 21 equipes EAP em 15 estados estão dedicadas à avaliação e acompanhamento de pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei. A estratégia de monitoramento é apontada como essencial para prevenir novas formas de institucionalização indesejada, garantindo que o fechamento de hospitais seja conduzido de maneira responsável e eficaz.
Integração com a saúde
Davi dos Anjos Diniz, referência técnica da equipe de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas (EAP) no Ceará, compartilhou experiências sobre a integração dos serviços de saúde mental com o sistema de justiça. Ele destacou a importância da presença contínua de profissionais de saúde nas audiências de custódia e o desenvolvimento de fluxos específicos para casos de crise. Davi ressaltou a necessidade de sensibilização contínua de juízes, juízas e outros operadores do direito sobre as nuances da saúde mental, enfatizando: “É fundamental que os decisores judiciais estejam bem informados sobre as questões de saúde mental para garantir decisões mais humanas e eficazes”.
Um dos destaques do encontro foi a apresentação do caso de Expedito dos Santos, também conhecido como Seu Dito, um ex-paciente psiquiátrico forense que conseguiu reestabelecer laços familiares após mais de uma década de institucionalização. Esse sucesso foi possível graças aos esforços colaborativos do Tribunal de Justiça de Rondônia e da equipe multidisciplinar de EAP.
Texto: Natasha Cruz
Edição: Nataly Costa
Agência CNJ de Notícias