Dar visibilidade a uma população “invisível” é o objetivo do trabalho desenvolvido pelos comitês interinstitucionais voltados à população em situação de rua. As dificuldades em relação às formas de garantir benefícios e direitos desse público foram discutidas durante a 3ª edição do “Ciclo de Debates da Comissão Permanente de Políticas Sociais e de Desenvolvimento do Cidadão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)“, realizado pelo CNJ nessa quinta-feira (29/9).
Segundo o conselheiro Mario Goulart Maia, presidente da Comissão, o CNJ está incentivando a implantação efetiva da Resolução CNJ n. 425/2021, que trata da Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades. Para tanto, estão sendo realizadas visitas interinstitucionais, a fim de apresentar a Política e incentivar a formalização dos comitês PopRuaJud em diversas localidades. “Precisamos demonstrar empatia a essa população hipervulnerável, promovendo ações conjuntas que frutifiquem em outras ações que possam atender às necessidades dessa população.”
Para a juíza auxiliar da Presidência Lívia Marques Peres, é preciso buscar, nas políticas inclusivas, a efetivação das ações, com dados concretos e empíricos. Durante o evento, que tinha como tema “O direito de ter direitos: cidadania e acesso à justiça a pessoas em situação de rua”, a magistrada enfatizou a dificuldade de dar visibilidade a essa população por meio das políticas públicas existentes, como o Cadastro Único para Programas Sociais do governo federal (CadÚnico). “Para responder ao questionário do CadÚnico, cada indivíduo leva, pelo menos uma hora, o que exige uma estrutura dos serviços de assistência social, que nem sempre têm esse preparo para esse atendimento. Seriam mesmos imprescindíveis todas essas questões?”, disse.
Já a juíza auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça Priscilla Corrêa pontuou que é preciso repensar as políticas judiciárias, de forma a atender as pessoas em situação de rua sem impeditivos baseados no preconceito, no estigma, mas levando em consideração a realidade do indivíduo que tem direito ao acesso à Justiça. “Precisamos mapear as necessidades dessa população para que seus direitos sejam garantidos de fato e os resultados dessas políticas alcancem seu público final”, observou.
“Os PopRuaJud é onde diversas vozes da sociedade civil encontram esse eco no exercício da cidadania e do acesso à justiça’, afirmou a juíza federal Luciana Ortiz Zanoni, do Tribunal de Justiça Federal da 3ª Região (TRF3) e integrante do Comitê Nacional PopRuaJud, do CNJ. Ela lembrou que o Brasil ainda figura no segundo lugar do ranking mundial de desigualdade e que este é um problema da sociedade civil e dos poderes públicos. “Temos de nos envolver com todas essas questões ligadas às políticas sociais para a diminuição da desigualdade.”
O aumento do número de pessoas em situação de rua após a pandemia de covid-19, que também ampliou a crise financeira, levou famílias inteiras para a situação de rua. Segundo os debatedores do evento, há uma dificuldade também de mapear essa população – que será contabilizada pela primeira vez pelo Censo do IBGE este ano – e direcionar as políticas públicas. “Os números mostram que as políticas não estão chegando às pessoas e mostram que, de alguma forma, elas não estão tendo acesso à justiça. Nós temos, dentro do Judiciário, a legitimidade de trabalhar na perspectiva da desjudicialização. Toda essa exclusão social tem uma potencialidade de judicialização e, portanto, dentro de uma visão moderna do Poder Judiciário, de atuação interinstitucional para enfrentamento das questões e dos obstáculos do exercício de direitos de forma resolver os conflitos numa fase que chamamos de pré-processual, precisamos agir com autoconhecimento e reconhecermos que, apesar da Resolução CNJ n. 425/2021, temos dificuldade das pessoas em situação de rua até de adentrarem aos nossos prédios”, destacou a juíza Luciana Ortiz.
Dados do Observatório Brasileiro da Política Pública com a População em Situação de rua revelam que o CadÚnico tinha pouco mais de 12 mil registros em 2012, mas, em 2019, o número saltou para mais de 190 mil pessoas registradas. Durante a pandemia, outras 49 mil pessoas ficaram fora desse registro e não tiveram acesso aos benefícios do governo. Nesse sentido, a preocupação é com a cobertura e acesso dessa política pública, a taxa de atualização dos cadastros já efetivados e o futuro do CadÚnico, de acordo com o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMFG) e representante do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua André Luiz Freitas Dias.
Para Roseli Kraemer Esquillaro, do Movimento Nacional de Luta e Defesa da População em Situação de Rua; e Samuel Rodrigues, do Movimento População de Rua de Minas Gerais, o trabalho dos PopRuaJud tem dado visibilidade para essas pessoas. “Sobrevivemos à pandemia porque tinha pessoas interessadas em nossa vida. Mas temos muitas dificuldades para acesso aos benefícios sociais e direitos, como trabalho, moradia, transporte e alimentação. Viver na rua não é fácil. É difícil conseguir oportunidades e é disso que precisamos”, afirmou Roseli, que é artista plástica e tem 60 anos. “Estou na rua com minha filha porque não dá para comer e pagar o aluguel. Conheci gente que vive dentro de um buraco, que não tem sequer uma Certidão de Nascimento. E todos os dias tem mais pessoas aparecendo na rua.”
Samuel Rodrigues também destacou que os operadores precisam dar efetividade à Resolução CNJ n. 425/2021 e à Resolução n. 40 do Conselho Nacional de Direitos Humanos. “Essas questões despertam o interesse da população de rua. Temos o desafio também de proteger e dar segurança a essa população contra o cerco do tráfico de drogas. É papel do Judiciário defendê-las”.
Mutirão PopRuaJud Mara
No Maranhão, o primeiro Mutirão PopRuaJud aconteceu em setembro, com a participação de 190 voluntários e diversas entidades. O Judiciário uniu forças ao Movimento Nacional da População de Rua, que já atuava em São Luís, e atendeu cerca de 500 pessoas, com o oferecimento de serviços como emissão de documentos – como identidade e certidão de nascimento –, vacinação, benefícios do INSS, CadÚnico, Auxílio Brasil, corte de cabelo e entrega de kits de higiene.
Segundo dados do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), há 1.071 pessoas em situação de rua cadastradas pelo Consultório na Rua em São Luís. Desses, 23,5% são mulheres e 76,5% são homens. Do total, 93,3% se declaram pretos/pardos, 4% brancos e 1,7% amarelos. Os dados também demonstram que 32,1% dessas pessoas estão entre um e cinco anos das ruas e 11,5% vivem na rua há mais de cinco anos. Na capital maranhense, 93% das pessoas em situação de rua têm problemas com o uso de psicotrópicos: 48,8% são dependentes de bebidas alcóolicas e 44,1% são usuários de outras drogas.
“O Judiciário tem que ter empatia, sensibilidade e compreensão de que nos cabe assegurar a cidadania e o acesso à justiça a toda a nossa população. Os mutirões vêm nos mostrar que, sozinhos, não é possível atender todas as necessidades das pessoas em situação de rua”, ressaltou a juíza Luciana Ortiz. Afirmou também que a condição de rua não tira o direito da pessoa de tomar decisões. “Esse olhar precisa estar presente em todos os nossos serviços, para que condição de rua não seja motivo para causar exclusão de direitos.”
Também participaram do evento o juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça Wellington Medeiros; o desembargador Thenisson Dória; a promotora de Justiça Anna Trotta Yaryd; o defensor Público da União Renan Vinicius Sotto Mayor de Oliveira; o juiz Renato Câmara Nigro (TRF3); o juiz Márcio Barbosa Maia (TRF1); o juiz Douglas de Melo Martins (TJMA); e o juiz Rafael Lima da Costa (TRF1).
Reveja o evento no canal do CNJ no YouTube
Texto: Lenir Camimura
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias