e-Revista CNJ: direito ao silêncio como princípio da não autoincriminação

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O posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) na interpretação do direito ao silêncio é tema de artigo publicado na mais recente edição da Revista Eletrônica do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). De autoria de Graziella Maria Deprá Bittencourt Gadelha, Laura Carrera Arrabal Klein e Daury César Fabriz, o artigo “Limites constitucionais do direito ao silêncio: interpretação do Supremo Tribunal Federal com aproximações à doutrina do direito como integridade de Ronald Dworkin” aborda o direito ao silêncio reconhecido como direito fundamental que alcança qualquer pessoa na qualidade de investigado, indiciado, réu ou testemunha à não produção de prova contra si mesmo.

Acesse a íntegra da e-Revista CNJ

Os autores lembram que esse direito “assegura que o silêncio do imputado não poderá ser interpretado em prejuízo de sua defesa”. No artigo é exposto que esse é um paradigma do Estado Democrático de Direito tanto pelo ordenamento jurídico brasileiro, de acordo com a Constituição Federal de 1988 e pelo Código do Processo Penal, quanto internacionalmente conforme a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Pacto de São José da Costa Rica.

“Seja o acusado solto ou preso, indiciado ou réu, ou mesmo pessoa chamada a depor na condição de testemunha, fato é que o atual paradigma reverbera uma proteção ampla ao silêncio de qualquer pessoa, em qualquer processo ou procedimento”, destacam. O artigo aborda o assunto a partir do princípio da presunção da inocência (ou da não culpabilidade) cujas origens históricas remontam à Idade Média, com o registro em 1296 da regra que proibia alguém à autoincriminação. Esse princípio foi acolhido e repetido em manuais de processo penal europeus dos séculos XVI e XVII.

O Renascimento, informam os autores, rompeu essa tradição medieval, conferindo as bases filosóficas “para a conformação crítica embrionária do sistema inquisitório e toda a gama de barbárie inerente a esse sistema, como a tortura, a confissão como rainha das provas, a figura do julgador-inquisidor, entre tantas outras formas de desigualdade entre as partes”. Com o avançar da burguesia, no século XVIII, sedimenta-se a necessidade de proteção dos diretos de primeira dimensão seguida por uma virada paradigmática do sistema penal com a Revolução Francesa de 1789, inaugurando a universalização dos direitos sociais e as liberdades individuais.

Casos

Num salto no tempo, o texto lembra que no Brasil o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 estabelece que “o preso será informado de seus direitos, dentre os quais o de permanecer calado”. A questão está contemplada, também, no artigo 186 do Código do Processo Penal de 1941.

São citados alguns casos relacionados ao tema julgados pela Suprema Corte brasileira como o Habeas Corpus nº 82.463, analisado em novembro de 2002, que, sob a relatoria da ministra Helen Grace, reconheceu que o direito ao silêncio não é indispensável na audiência preliminar de Juizado Especial Criminal.

Na sequência, o artigo aborda o direito ao silêncio por testemunhas ou investigados em Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs). “Há muito o Supremo Tribunal Federal entende que nela os parlamentares detêm poder instrutório equiparado às autoridades judiciais, razão pela qual se submetem aos mesmos limites formais e substanciais oponíveis aos juízes como o dever de informar ao investigado (ou quem lhes façam as vezes) o direito ao silêncio.”

Em outro caso, o Habeas Corpus nº 171.438, a Segunda Turma do STF, sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, trouxe os termos da abrangência do princípio da não autoincriminação, e por consequência o direito ao silêncio, de pacientes convocados na condição de investigados na CPI que tratou do rompimento de barragem da companhia Vale em Brumadinho.

“Referenciando o direito ao silêncio como ‘[…] pedra angular do sistema de proteção dos direitos individuais e materializa uma das expressõe0s do princípio da dignidade da pessoa humana’, a Segunda Turma do STF reconheceu, a partir de um julgamento acirrado, em que se vislumbrou empate de votação, o direito de o investigado recusar-se ao comparecimento ao órgão competente (Câmara dos Deputados) para prestar depoimento.” A partir disso, o entendimento firmado com o Habeas Corpus nº 171.438 conferiu um espectro mais amplo ao direito ao silêncio dos investigados e testemunhas convocadas em CPIs.

O artigo relembra, no entanto, um caso em que o posicionamento da Suprema Corte seguiu um caminho oposto. Trata-se do Habeas Corpus nº 204.422 de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso publicado em julho de 2021 no contexto da CPI da Covid-19. Inicialmente assegurou-se à diretora técnica da empresa Precisa Medicamentos o direito de permanecer em silêncio em seu depoimento na comissão, condição na qual a testemunha deixou de responder questionamentos a ela dirigidos pelos senadores durante a sessão. Incomodado com essa postura, o presidente da CPI da Covid-19, senador Omar Aziz, consultou a presidência do STF sobre como proceder em relação ao caso.

“Em sede de embargos de declaração e em resposta, o ministro Luiz Fux reconheceu à CPI o poder jurisdicional de decidir o caso e conduzir a sessão com ampla autonomia, a quem, segundo seu alvedrio, caberia avaliar se nos questionamentos endereçados à testemunha, orientada pela defesa constituída, atuava a interpelada nos limites constitucionais ou em excesso ao direito ao silêncio. Por conseguinte, assegurado, neste julgado, que o direito ao silêncio não é absoluto.”

Ao citar o caso, os autores comentam que com esse procedimento o presidente e ministro do STF deu novos contornos à decisão antes aclamada pelo relator originário, ao enaltecer a autonomia da CPI na condução do caso. O artigo prossegue na análise crítica à interpretação neopragmática do direito ao silêncio sob o enfoque da doutrina do direito como integridade de Ronald Dworkin.

Na conclusão, os autores consideram que é perceptível, a partir da evolução histórica de suas decisões, que o STF não tem se contentado com o discurso único de integridade do Direito com um fim em si, abrangendo, por vezes, outras áreas e discursos para alicerçar de aplicabilidade as decisões colegiadas. “O confronto de direitos postos no texto constituinte é comum nos hard cases, o que não se desalinha a dogmática dworkiniana e, neste bálsamo interpretativo, cumpre os julgadores a árdua missão de conformar os direitos e garantias assegurados na ordem jurídica, sem excluí-los do ordenamento.”

e-Revista

Publicada semestralmente, a e-Revista CNJ veicula trabalhos acadêmicos com foco no Poder Judiciário e na prestação de serviços jurisdicionais no Brasil. A publicação segue requisitos exigidos pelo sistema Qualis-Periódicos, que é gerenciado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

A produção do periódico é coordenada pela Secretaria Especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica do CNJ e a organização é de responsabilidade do Departamento de Pesquisas Judiciárias. Todos os artigos enviados para apreciação são analisados tecnicamente por pareceristas anônimos, com doutorado na área e indicados pelo Conselho Editorial da e-Revista do CNJ.

Texto: Luciana Otoni
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias

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