A falta de controle sobre a população prisional de Pernambuco vai pautar a atuação da missão que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Corregedoria Nacional de Justiça enviaram ao estado esta semana para ajudar a solucionar os graves problemas do sistema carcerário do estado. O diagnóstico de crise foi confirmado após uma rodada de reuniões realizadas segunda (15/8) e terça-feira (16/8), no Recife, entre o CNJ, Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), outras autoridades do Sistema da Justiça criminal, governo estadual, além de entidades ligadas à causa carcerária.
O juiz coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do CNJ, Luís Geraldo Lanfredi, disse que é importante que o Conselho dedique especial atenção à situação da superlotação em Pernambuco e às condições do Sistema de Justiça. “Estamos aqui com vocês e com o Tribunal de Justiça e, se efetivamente temos um sistema prisional que agoniza, precisamos atuar para o fortalecimento do Sistema de Justiça, permitindo-lhe uma atuação eficiente e que possa fazer frente a situações que coloquem em risco a dignidade, os direitos, a vida e a integridade daqueles que estão submetidos ao cárcere.”
Na visão do coordenador do DMF, o problema passa pela desestruturação do funcionamento da justiça criminal e que, diante disso, é preciso apoiar e fortalecer a atuação dos magistrados. “Não vejo a situação como cômoda, nem mesmo satisfatória, para os juízes e juízas e para o Judiciário nacional. É necessário um olhar especial para enfrentar atrasos sistemáticos de processos, excessivo contingente de presos provisórios e a própria precarização do sistema prisional local. Essas não são situações normais, nem se admite possam ser naturalizadas. Necessário repensarmos a capacidade do poder judiciário pernambucano de enfrentar esses desafios, dotando as unidades judiciais de estrutura melhor, o que representará uma uma contribuição efetiva para a solução desse problema.”
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Necessidade de investimentos
A coordenadora do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Wilma Melo, deu a dimensão do problema informando que a superpopulação carcerária é o principal eixo da engrenagem para o descumprimento de direitos humanos. A causa do problema, aponta ela, tem sido a falta de investimento nas defensorias públicas, no Tribunal de Justiça de Pernambuco, além da falta de contratação de agentes penitenciários com boa formação, inclusive com capacitação para o atendimento especializados, como aqueles que demandam a população LGBTQIA+. Dados previamente coletados pela missão dão conta que, em 15/08/2022, a população carcerária total do Estado de Pernambuco representava 34.590 pessoas, para apenas 13.842 vagas, de modo que a superlotação atual é da ordem de 20.748 vagas ou um excedente de aproximadamente 250%.
Além da superlotação e das condições subumanas das unidades prisionais, é grave também a situação de familiares que enfrentam vistorias vexatórias e passam noites dormindo nas portas desses estabelecimentos para levar alimentos e itens de higiene pessoal aos presos. “A população carcerária é, basicamente, formada por pretos, pobres e periféricos. É como se todos já estivem acostumados com isso, como se o Estado não fosse o garantidor da volta com dignidade dessas pessoas para a sociedade”, lamenta.
Ao expor a situação crítica, Wilma Melo disse que o programa “Fazendo Justiça” tem ajudado a comunidade prisional. A iniciativa é resultado de parceria coordenada pelo CNJ junto ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento desde 2019, com adesão de tribunais e parceiros em todo o país, para incidir em desafios históricos no campo da privação de liberdade, a exemplo das situações encontradas em Pernambuco. O portfólio de atividades do programa, coordenadas pelos tribunais com o apoio de equipes locais do projeto, acompanham todo o ciclo penal, desde a porta de entrada até a saída da pessoa do sistema.
O supervisor do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, desembargador Mauro Alencar, reconheceu que os problemas de infraestrutura das prisões demandam soluções urgentes. Por outro lado, destacou melhorias realizadas nos últimos anos, como as audiências de custódia, cuja qualificação também é fomentada junto aos tribunais com o programa Fazendo Justiça. O procedimento instituído pelo CNJ com as cortes a partir de 2015 impediu o ingresso de presos em flagrante no sistema penal sem que fossem ouvidos em juízo. “Antes, a pessoa era presa era enviada diretamente à unidade prisional. Gradualmente, levamos as audiências de custódia a todo o estado e hoje nenhuma pessoa vai para a prisão sem uma decisão judicial.”
Racionamento
As contribuições de quem pesquisa e frequenta as prisões mostraram detalhes da situação crítica. Durante a conversa com as entidades civis de apoio à área prisional, a professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisadora do Grupo Asa Branca Marília Montenegro expôs a situação de racionamento de água nas unidades prisionais pernambucanas. A questão começou a atrair a atenção do grupo em 2020, antes mesmo do início da pandemia da Covid-19, durante uma pesquisa nacional que estava em campo em entrevistas com presos, familiares e atores do Sistema. A professora conta que sempre surgiam, nas abordagens, referências à falta de água, a tal ponto que a questão impôs sua relevância científica.
Desse momento em diante, os pesquisadores notaram que os presos não têm acesso regular a água, que em alguns estabelecimentos esse acesso é de apenas 30 minutos e há registro de inúmeros casos de diarreia. Diante disso, a água começou a fazer parte da lista de principais itens que os familiares passaram a levar para seus parentes na prisão. “Encontramos um racionamento rigoroso dentro do sistema.”
Higiene
A necessidade mínima de higiene pessoal em unidades superlotadas foi o ponto destacado pelo integrante da Pastoral Carcerária Severino Queiroz. Ele citou casos como o do Presídio Igarassu que, com 810 vagas, abriga 4.100 pessoas privadas de liberdade.
“Teve o caso de um preso que pediu para a pastoral levar pasta de dente. Ele nos disse que estava há sete ou oito meses sem escovar os dentes e que só passava o dedo com água na boca”, disse. Em outro exemplo, Severino contou o caso das mulheres presas na Colônia Penal Feminina Bom Pastor. “Assisti lá a uma situação muito crítica e difícil de senhoras menstruadas, dormindo no chão naquela situação”, relatou. A ajuda veio de uma campanha na Igreja Nossa Senhora das Graças que arrecadou 200 pacotes de absorvente e que foram levados na última semana ao presídio.
Além desses, houve também relatos de entidades da sociedade civil organizada ligadas área prisional e de prevenção e combate à tortura, citando maus-tratos, homofobia, machismo extremo e revista vexatória de familiares em visitas. E, ainda, problemas com infraestrutura em geral como risco de incêndio, fios desencapados, comida estragada, “milícia dos chuveiros” e “lugares apavorantes de isolamento”.
Desde o primeiro dia da missão conjunta, o CNJ enviou a campo 12 equipes formadas por magistrados e servidores da justiça criminal para inspecionarem presencialmente 16 unidades prisionais do estado. O principal complexo prisional de Pernambuco, o Complexo do Curado, onde cerca de 6,5 mil homens cumprem pena ou aguardam julgamento, também será objeto de visitas por parte da corregedora nacional de Justiça, ministra Maria Thereza de Assis Moura, pelo supervisor do DMF, conselheiro Mauro Martins, e pelos conselheiros do CNJ Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Mário Maia e Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho.
Além dessas equipes, há um grupo composto por oito magistrados/as e assessorias destacado para realizar inspeções nas varas judiciais e nos sistemas informatizados do Poder Judiciário, com o objetivo de diagnosticar os gargalos nas rotinas processuais que contribuem para o quadro verificado no sistema prisional.
Guias provisórias
A ausência de guias provisórias nos casos de pessoas que ingressam em uma prisão do estado enquanto não são julgadas foi alvo de críticas por parte dos representantes dos profissionais que fazem a defesa técnica de acusados, a Defensoria Pública de Pernambuco (DPPE) e a seccional pernambucana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PE). Estima-se que de cada 10 presos no estado, entre três e quatro ainda não receberam sentença e não sabem se serão considerados inocentes ou culpados pela Justiça.
A guia provisória é uma exigência da lei penal para toda pessoa presa que entra no sistema antes do seu julgamento. No documento, são registradas as informações relativas à permanência do acusado, como motivo da prisão em flagrante, data do ingresso, incidentes ocorridos na cadeia, entre outras. Um dos defensores públicos ouvidos pela comitiva do CNJ, Michel Nakamura, afirmou que as guias são muitas vezes desconhecidas por parte de diretores dos presídios pernambucanos. A representante da OAB-PE reclamou da demora em inserir os documentos no sistema responsável pela tramitação automatizada dos processos de presos no Sistema Eletrônico de Execução Unificado (SEEU).
Intervenção
Em uma primeira ação destinada a reverter o monitoramento deficiente das prisões provisórias sem julgamento, o CNJ começou na segunda-feira (15/8) a capacitar os magistrados e servidores responsáveis pela execução das penas em oficinas e palestras que serão realizadas até sexta-feira (19/8), último dia dos trabalhos da comitiva no estado. A gestão das sentenças condenatórias e da população carcerária é feita por sistemas informatizados, como o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP 2.0), o Cadastro Nacional de Inspeções em Estabelecimentos Prisionais (CNIEP) e o Sistema Eletrônico de Execução Unificado (SEEU) e o pleno domínio dessas plataformas é essencial para o aprimoramento dos serviços relacionados à execução penal.
Um dos benefícios proporcionados pelo pleno funcionamento desses sistemas é a análise sistemática e criteriosa de quem tem o direito de deixar a prisão. Os sistemas permitem às varas de execução penal que encaminhem os casos aos órgãos responsáveis por se manifestarem sobre a liberdade de cada sentenciado, como o Ministério Público, e à administração prisional, para realização de exames criminológicos, por exemplo. Quando o sistema não automatiza esses procedimentos administrativos, as tarefas são realizadas manualmente por servidores sobrecarregados e a tendência é que os presos se acumulem em um sistema superlotado, sem que a situação individual de cada um seja analisada. Mesmo com ressalvas, o Sisdepen aponta que a população nas prisões de Pernambuco cresceu 92% desde 2011.
Imprecisão estatística
A superlotação do sistema prisional pernambucano foi um denominador comum de todas as manifestações colhidas pela Missão Conjunta do CNJ durante a rodada de reuniões institucionais ocorrida no início da semana. No entanto, até a informação de quantos homens e mulheres estão sob custódia do estado pernambucano é alvo de controvérsia. Em Pernambuco, o sistema prisional é formado por 23 unidades prisionais sob gestão da SJDH, além do Centro de Reeducação Dr. Juarez Vieira da Cunha (CREED), que concentram 34.590 pessoas privadas de liberdade, de acordo com os dados informados pela Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado de Pernambuco ao CNJ, no dia 15 de agosto de 2022. Se contabilizados também os presos em monitoramento eletrônico, prisão domiciliar e patronato, a população prisional total passa para a cifra de 49.662 pessoas, o que representa também um alto custo financeiro para o Estado.
O Complexo do Curado é um exemplo da falta de controle da população carcerária do estado. Em 2011, a população se aproximava de 5 mil pessoas. Em uma década, apesar de a Corte Interamericana de Direitos Humanos ter proibido a entrada de novas pessoas, a população carcerária do Complexo do Curado continuou a crescer, sem que haja estrutura para acomodar essas pessoas, nem mesmo policiais penais e servidores públicos em quantitativo suficiente para garantir a segurança e as assistências legais obrigatórias no interior da unidade.
A taxa de ocupação do Presídio Marcelo Francisco de Araújo (PAMFA) é de 430,4%, com 2.066 pessoas custodiadas na unidade para 480 vagas e uma razão de 30 presos por cada agente penitenciário. No caso do Presídio Juiz Antônio Luiz Lins de Barros – PJALLB, a taxa de ocupação é de 288,7%, com 2.604 pessoas para 902 vagas e 32 presos por cada agente penitenciário. Por sua vez, no Presídio Frei Damião de Bozzano – PFDB, a superlotação é de 445,5%, havendo 2.027 pessoas para apenas 455 vagas, também com uma proporção de 30 presos por agente penitenciário.
Esse quantitativo está também em desacordo com a Resolução nº 9 de 13/11/2009 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) que determina que a proporção mínima deveria ser de 5 presos por cada agente.
A situação de superlotação e insalubridade do Complexo do Curado levou a integrante do Conselho da Comunidade da 3ª Vara de Execuções Penais da Capital e coordenadora do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Wilma de Melo, a denunciar o Estado brasileiro à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Por meio de reiteradas decisões, o Tribunal instou o Brasil a resolver a situação do Curado. No entanto, como desde 2011, quando foi editada a primeira medida cautelar, o Estado brasileiro não melhorou as condições do estabelecimento, o país foi condenado pela Corte IDH e o monitoramento do cumprimento dessas sentenças, realizado pelo CNJ desde 2021, é um dos motivos da missão a Pernambuco.
Entre as entidades e órgãos públicos ouvidos nas reuniões pela força-tarefa também estavam a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco, representantes do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), da Escola de Ciências Jurídicas da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), da Defensoria Pública da União (DPU) e do estado (DPPE) e do Ministério Público Federal (MPF) e do estado (MPPE), seccional pernambucana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PE), Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), Conselho Penitenciário de Pernambuco (Copen), Frente Estadual pelo Desencarceramento, GTP+, Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões (SEMPRI), Conselho Regional de Psicologia.
A comitiva da Corregedoria Nacional de Justiça e do DMF do CNJ prossegue até sexta-feira em vários encontros e visitas ao Complexo de Curado, que receberá inspeções. A missão também realizará capacitações presenciais e remotas e inspeções às varas criminais e de execução penal da capital e do interior do estado. A missão vem sendo acompanhada por técnicos do programa Fazendo Justiça (CNJ/PNUD), uma vez que diversas questões identificadas estão previstas no campo de incidências do programa para melhorias sustentadas no longo prazo, a exemplo do que já ocorreu em inspeções recentes do CNJ no Ceará e no Amazonas.
Essas ações incluem a expansão e qualificação de preenchimento de sistemas informatizados, a qualificação e método de apoio à magistratura para realização de inspeções, incidências anti-tortura e pró saúde mental de pessoas sob tutela do Estado, fomento a serviços penais que não colocam a prisão como única resposta do Estado no campo da responsabilização – incluindo monitoração eletrônica e alternativas penais – e fomento a ações de cidadania dentro e fora do cárcere.
Texto: Luciana Otoni, Manuel Carlos Montenegro e Renata Assumpção
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias