Desastre em Brumadinho (MG): Diálogo viabilizou acordo entre Vale e estado

Você está visualizando atualmente Desastre em Brumadinho (MG): Diálogo viabilizou acordo entre Vale e estado
Foto: Robert Leal/TJMG
Compartilhe

O juiz auxiliar da 3ª vice-presidência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), José Ricardo Véras, foi um dos mediadores do maior acordo judicial homologado na América Latina, semana passada, entre a empresa Vale S.A. e o governo do estado de Minas Gerais, no valor de R$ 37,7 bilhões, decorrente da tragédia de Brumadinho, em janeiro de 2019.

Nessa entrevista, o magistrado explica que as negociações no Cejusc de 2º Grau se iniciaram em outubro de 2020, e apresentaram momentos de grandes dificuldades que poderiam comprometer o acordo. Somente após todas as partes sentarem à mesa e definirem as premissas para que o acordo fosse selado é que as negociações evoluíram.

Como e quando as negociações se iniciaram?

José Ricardo Véras – As negociações, perante o Cejusc de 2º Grau, se iniciaram em 20 outubro de 2020. Anteriormente, alguns acordos parciais foram firmados perante o juízo de 1º grau, mas ali as negociações não conseguiram evoluir. Nesse momento, o magistrado que conduzia os processos fez a remessa dos autos para o Cejusc de 2º Grau e, em 22/10/2020, foi realizada a primeira audiência de conciliação.

Quando percebeu que o acordo poderia ser feito?

JRV – Houve momentos de extrema dificuldade, mas a esperança real de acordo surgiu após todos os interessados conseguirem definir, na mesa de negociação, as premissas sobre as quais as cláusulas do acordo poderiam ser firmadas. Desde então, iniciou-se a construção, cláusula a cláusula, do termo de acordo e seus 11 anexos, que resultaram em um documento de 130 páginas.

Quais foram as entidades que iniciaram o acordo?

JRV – Especialmente aquelas que foram as autoras das ações coletivas, quais sejam, o estado de Minas Gerais, por meio da Advocacia Geral do estado, autor da primeira ação coletiva, e o Ministério Público Estadual, além da Defensoria Pública Estadual.

O senhor sempre acreditou no acordo ou em alguns momentos percebeu que não poderia ser feito?

JRV – Em nenhum momento, da nossa parte, isto ocorreu. As portas sempre estiveram abertas para recebermos quaisquer dos interessados, a qualquer momento. Todos mantiveram, permanentemente, acessas as chamas pelo interesse no acordo.

Quais foram as maiores dificuldades?

JRV – Cada fase do acordo teve sua dificuldade de momento. Inicialmente, a dificuldade foi a de se definir as premissas do acordo, que foram colocadas primeiramente pela Vale, a qual pretendia, por exemplo, a integral extinção das ações judiciais. Num segundo momento, passou-se à efetiva redação das cláusulas do acordo, que foi a fase mais demorada e gerou grandes discussões e consumiu dezenas de horas de negociações, devido à necessidade de ajuste redacional, a qual deveria ser clara e perfeitamente adequada aos direitos e obrigações que seriam assumidos pelas partes. Finalmente, depois de definidas todas as obrigações da Vale, restou o acerto de valores. Este último acabou sendo o mais sensível, inclusive com discussão pública entre os representantes das partes. No final, prevaleceu o bom senso e o acordo chegou a termo. Momentos de tensão também ocorreram com os vários requerimentos de participação nas audiências de outros interessados, supostamente representantes diretos dos atingidos, que não faziam parte dos processos e cuja presença poderia inviabilizar as discussões e o próprio acordo. Cabe salientar que o acordo tinha seu próprio histórico de debates e conceitos, não escritos, mas da ciência de todas as partes e seus representantes legais, de modo que o ingresso de terceiros em momentos distintos não contribuiria para o debate.

Fale um pouco dos bastidores do acordo.

JRV – Embora os termos do acordo sejam hoje inteiramente públicos, estamos vinculados ao dever de confidencialidade das discussões, que é previsto em lei. Mas podemos dizer que várias sessões individuais também foram necessárias para que as resistências fossem superadas, o que nem sempre era possível fazer nas sessões conjuntas. Houve alguns momentos de descontração, especialmente quando se interrompiam as reuniões para as refeições, solicitadas por delivery, várias delas realizadas nas dependências do TJMG, com todos sentados à mesma mesa. Também foi interessante observar a mudança de comportamento dos representantes legais das partes – cerca de trinta pessoas no total –, que passou da grande desconfiança inicial à total transparência e à confiança mútua nas intenções manifestadas nas negociações. Esse amadurecimento das discussões permitiu que, na compreensão das intenções, várias cláusulas difíceis fossem construídas de forma assertiva, sem dubiedades e sempre em prol do interesse dos atingidos, foco no qual se pautaram todas as reuniões.

Como fica o TJMG após este acordo, perante a sociedade?

JRV – Acredito que a confiança no Tribunal deve subir e incentivar que novos acordos sejam construídos. Mesmo no meio jurídico, ainda há desinformação quanto à atuação do Tribunal na área da autocomposição, seja em primeira, seja em segunda instância, que é sempre eficaz e inteiramente aberta às demandas que lhe são trazidas.

O acordo pode mudar a cara do judiciário nacional e incentivar que o judiciário tenha cada vez mais o perfil de mediador?

JRV – De fato, o papel do Judiciário como mediador ainda é incipiente, na comparação com o número de demandas ajuizadas e sentenças proferidas. Acordos dessa espécie contribuem para ampliar o conhecimento da população e dos profissionais do Direito sobre o tema. Nesse particular, avalio que os Cejuscs desempenham papel fundamental na mudança do conceito do Judiciário julgador para o de Judiciário conciliador, pois essas unidades é que estão próximos do dia-a-dia do cidadão e ao seu alcance, a qualquer momento. Somente a continuidade da atuação mediadora é que poderá realmente mudar a cara do judiciário nacional.

Outros processos que ainda estão tramitando no judiciário há anos podem ser submetidos a novos acordos no Cejusc?

JRV – Quaisquer demandas ou conflitos, em qualquer fase processual, podem ser resolvidos por meio de acordo, o que é previsto e incentivado pela lei. Mas não podemos nos esquecer do princípio da voluntariedade, ou seja, somente se chega a uma sessão de conciliação ou mediação por vontade expressa das partes. Por isso, acordos como o do caso da tragédia da barragem de Brumadinho são importantes para ampliar o conhecimento da população e dos demandantes sobre essa possibilidade de encerramento consensual dos conflitos, o que poderá, sim, trazer antigas ações ainda em tramitação para os Cejuscs. Estaremos sempre de portas abertas.

Qual foi a repercussão de um acordo tão bem conduzido perante outros tribunais de justiça?

JRV – Esperamos que não apenas os Tribunais do país, mas todo o meio jurídico, reconheça a importância dos Cejuscs, visto que muitos ainda não contam com o apoio das administrações que os conduzem. O investimento é grande, especialmente na capacitação de pessoal e na melhoria da estrutura de trabalho. Os resultados desse investimento serão sentidos na diminuição do acervo processual e, especialmente, na consolidação da cultura da paz. A sociedade merece isso.

Fonte: TJMG