Entre 2008 e 2017, o número de demandas judiciais relativas à saúde registrou um aumento de 130%, conforme revela a pesquisa “Judicialização da Saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de solução”. O estudo, elaborado pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostra que, no mesmo período, o número total de processos judiciais cresceu 50%. O levantamento foi divulgado nesta segunda-feira (18/3) durante a III Jornada de Direito da Saúde, em São Paulo.
Além de investigar a evolução das ações judiciais motivadas por questionamentos no segmento de saúde, a pesquisa tem o objetivo de contribuir para a compreensão da judicialização do tema e oferecer elementos que orientem a adoção de políticas judiciais que aprimorem a solução de conflitos na área. O evento contou com a participação do conselheiro Arnaldo Hossepian e da diretora-executiva do Departamento de Pesquisa Judiciária do CNJ (DPJ/CNJ), Gabriela Soares, e dos professores do Insper Paulo Furquim e Fernando Aith. “Fizemos a pesquisa pela relevância do tema e porque ainda não existem dados nacionais que permitam identificar informações mais específicas das ações, como valores, motivos e decisões. O CNJ está trabalhando no desenvolvimento do projeto da Replicação Nacional, por meio do qual será possível obter informações dos processos em trâmite, e assim produzir diagnósticos e conhecer padrões das ações sobre saúde e de outras demandas judiciais”, disse Gabriela Soares.
A pesquisa identificou que o setor de saúde foi responsável por 498.715 processos de primeira instância distribuídos em 17 tribunais de justiça estaduais, e 277.411 processos de segunda instância, distribuídos entre 15 tribunais de justiça estaduais. Os números refletem no orçamento do Ministério da Saúde, que registrou um crescimento, em sete anos, de aproximadamente 13 vezes nos gastos com demandas judiciais, alcançando R$ 1,6 bilhão em 2016. “Utilizamos uma variedade de dados de gestão processual, no período de 2008 a 2017, registrando o aumento da judicialização do período em 130%. Verificamos também que apenas um pequeno número de decisões citam os órgãos que qualificariam as decisões, como os NATs e o Conitec. Esse resultado reforça a atuação do CNJ na consolidação e organização dos NATs em uma plataforma e fortalecê-los, como tem sido feito com o e-NAT Jus”, afirmou o professor Paulo Furquim durante apresentação da pesquisa.
O estudo também aponta que, considerando a escala alcançada, a judicialização da saúde tornou-se relevante não apenas para o sistema de assistência à saúde, mas para o próprio Judiciário, que tem que lidar com centenas de milhares de processos, vários dos quais sobre temas recorrentes e quase sempre contendo pedidos de antecipação de tutela ou liminares. Paulo Furquim disse ainda que pretende continuar aprofundando alguns temas da pesquisa, que não puderam ser analisados com mais acuidade, como os efeitos dos NATs. “Precisamos verificar em que momento surgiram e em que locais, para verificar seus efeitos nas ações. Também vale a pena buscar dados que diferenciam a judicialização benéfica, que é eficaz e contribui com o paciente; e a má judicialização, que é fruto dos interesses de mercado.”
O gráfico a seguir mostra a evolução do número de processos de saúde distribuídos por ano na Justiça de 1ª Instância. Em vermelho, os dados apurados no sistema Justiça em Números. Em azul, números obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI):
O conselheiro Hossepian ressaltou que a pesquisa foi feita em um período anterior ao funcionamento dos NATs e, por isso, pode traçar uma linha de base, que poderá ser utilizada para avaliações posteriores a este período. “O e-NAT Jus foi inaugurado em novembro de 2017, com todas as dificuldades tecnológicas para operação. Por isso, a pesquisa não capturou os dados em todos os lugares e nem os impactos da Resolução CNJ nº 238/2016, que determinou a criação dos NAT-Jus. Após este período, teremos mudanças neste cenário, que poderá ser verificado nos próximos levantamentos.”
Saúde suplementar
De acordo com levantamento, os principais assuntos discutidos nos processos em primeira instância são: “Plano de Saúde” (34,05%), “Seguro” (23,77%), “Saúde” (13,23%) e “Tratamento Médico-Hospitalar e/ou Fornecimento de Medicamentos” (8,76%). A incidência elevada de assuntos como “Plano de Saúde” e “Seguro” mostra a relevância das ações judiciais na esfera da saúde suplementar.
Segundo a pesquisa, na esfera privada, a judicialização afeta direta ou indiretamente as relações contratuais entre cerca de 50 milhões de beneficiários de planos de saúde, operadoras e prestadores de serviços de assistência à saúde. O recorte do levantamento, considerando as expressões regulares no conteúdo das decisões de antecipação de tutela, permite identificar que temas como fornecimento de medicamentos são mais frequentes no sistema público. Na saúde suplementar, a incidência maior envolve questões como dietas, insumos ou materiais, leitos e procedimentos.
Porém, o caso de maior relevo é o que envolve órteses e próteses, citados em mais de 108 mil decisões de tutela antecipada em uma amostra de 188 mil. O tema é mais frequente em decisões liminares do que em decisões finais, como se observa na comparação desses dados com as análises precedentes. Segundo a pesquisa, o valor unitário de órteses e próteses e o caráter de urgência muitas vezes associado à sua utilização é uma provável explicação para a elevada participação nas decisões de tutela antecipada.
Ações coletivas
A pesquisa CNJ/Insper fornece elementos para desfazer o mito, comum na literatura sobre judicialização da saúde, sobre a diferença de tratamento e sucesso de ações individuais em relação às coletivas. Os dados contrariam a crença que aponta que tribunais e juízes estariam mais dispostos a decidir casos individuais de forma favorável do que realizar reformas estruturais na política pública de saúde via ações coletivas. De acordo com o levantamento, o fato de uma ação ser coletiva está associado a uma maior probabilidade de decisão favorável ao demandante – um acréscimo de aproximadamente 7% de chance de sucesso.
Os casos que são representados pela Defensoria Pública, em que a parte é enquadrada como hipossuficiente e que versem sobre o tema de saúde pública também estão associados a uma maior perspectiva de sucesso por parte do demandante. Porém, a pesquisa constata que é baixo o número de ações coletivas se comparadas às individuais. Isso revela que a judicialização da saúde se dá muito mais pela via individual do que pela coletiva.
Boas práticas
O estudo “Judicialização da Saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de solução” também ressalta boas práticas adotadas em diferentes tribunais e enfatiza que elas podem ser replicadas em outros estados. Entre os exemplos destacados estão os adotados na Bahia, São Paulo, Pará e Rio Grande do Sul.
A Câmara de Conciliação da Saúde da Bahia, – que reúne o Tribunal de Justiça, Secretaria de Estado da Saúde (SES), prefeitura, Procuradoria Geral do Estado, MPE, DPE e DPU – estabeleceu um sistema de mediação que se configurou como um instrumento importante para diminuição da “judicialização desnecessária”, levando ao Judiciário apenas casos que os órgãos envolvidos não conseguem resolver extrajudicialmente. A SES estima que, graças à iniciativa, conseguiu evitar cerca de 80% dos processos judiciais.
Em São Paulo, vigora parceria entre a Secretaria de Estado da Saúde e a Procuradoria Geral do Estado (8ª SubProcuradoria), o sistema S-Codes, que realiza acompanhamento informatizado do processo, o Grupo de Coordenação de Demandas Estratégicas do SUS-SP (G-Codes), que coordena os pedidos relativos a medicamentos e insumos e os registra no S-Codes, além do Acessa SUS, um programa de integração interinstitucional que realiza triagem administrativa das solicitações com potencial para se tornar ações judiciais e também orienta o magistrado com assessoria técnica.
No Pará, a Secretaria de Saúde possui um Núcleo de Ações Judiciais e um Diretoria Administrativa Financeira que adquire medicamentos, maior gerador de demandas no Estado. A Procuradoria Geral do Estado tem promovido o diálogo entre Judiciário e Secretaria da Saúde. Uma forma de atender demandas por medicamentos e evitar bloqueios orçamentários é a manutenção de um contrato A-Z com um fornecedor que adquire medicamentos – em um período médio de dez dias e com aplicação de desconto – a partir de preços tabelados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Já no Rio Grande do Sul é realizada uma triagem administrativa de pedidos em parceria com a Defensoria Pública por meio de acesso ao sistema informatizado da Secretaria de Saúde sobre disponibilidade de medicamentos. De acordo com o levantamento, somente 15% das demandas em saúde na capital se tornam pedidos judiciais.
Diálogo
Também presente ao evento, o corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, destacou que a questão da judicialização da saúde tem que ser enfrentada com diálogo e uma intermediação junto às instituições de saúde. Para tanto, citou trechos de um pronunciamento feito pelo ministro Dias Toffoli no sentido de que essas demandas desestabilizam o planejamento orçamentário dos executivos e gerencial dos entes responsáveis pela gestão do SUS.
“São temas sensíveis e que refletem complexos debates jurídicos em nossas cortes de Justiça. Por isso mesmo, essa iniciativa do CNJ, que conta com o apoio do Hospital Sírio-Libanês, do SUS e do Ministério da Saúde, faz parte das ações do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde, e materializará, ao final, a edição de novos enunciados como também proporcionará aos magistrados, servidores, profissionais e acadêmicos interessados uma visão atualizada dentro dos temas sob enfoque”, afirmou o ministro Martins.
Jeferson Melo
Lenir Camimura Herculano
Agência CNJ de Notícias