Cotas raciais: comissões de heteroidentificação avançam no Judiciário e garantem direitos

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O Tribunal Regional do Trabalho gaúcho promoveu curso de formação para magistrados e servidores - Foto: SECOM TRT4
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“Eu sei que a vida não é fácil para ninguém, mas para gente que é preto é ainda mais difícil. O preto é rejeitado em muitos empregos só por ser preto. As pessoas desconfiam da gente. E quanto mais escurinho, mais difícil. Até o salário parece que é menor. Eu entendo que as cotas servem para os nossos netos terem oportunidade de chegar mais longe, onde não nos era permitido ir”. A frase de Joseana, mulher preta de 75 anos, dona de uma banca de lanches em frente a um prédio público de Brasília, explica, de forma simples, a razão e a importância da política de cotas no Brasil: ajudar os cidadãos afrodescendentes a escalarem o muro criado pelo racismo estrutural brasileiro ao longo dos séculos.

Para desconstruir o preconceito naturalizado em relação a pessoas negras em um país com diversidade racial e com pouco letramento racial, são necessárias ações contundentes. Nesse contexto, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) definiu como obrigatória a criação de comissões de heteroidentificação nos concursos de ingresso na magistratura. As bancas passaram a ser obrigatórias após a aprovação da Resolução n. 457/2022. A medida se fez necessária para não haver dúvida em relação a quem tem direito à ação afirmativa.

O sistema de cotas para pessoas negras foi criado em 2015. A norma estendeu ao Poder Judiciário as previsões da Lei Federal nº 12.990/2014, que determinava a mesma garantia a pessoas negras aos concursos públicos do país. No entanto, à época, o CNJ não chegou a especificar como os tribunais faria para garantir o direito nos processos de seleção. Desde então, vários concursos para a magistratura registraram casos de candidatos brancos concorrendo às vagas reservadas aos cotistas. Como foi o caso de candidato ao concurso para ingresso na carreira da magistratura do Tribunal do Rio de Janeiro (TJRJ), ocorrido em 2022.

A pedido da Associação Nacional de Advocacia Negra (Anan), o caso foi analisado pelo CNJ, que determinou a exclusão do candidato no concurso. Ao TJRJ, o encaminhamento do Plenário do Conselho foi determinar, o quanto antes, a criação de uma comissão de heteroidentificação quando houver concurso para o provimento de vagas no tribunal.

“Em algumas situações, observamos que candidatos que não são lidos socialmente como pessoas negras, reivindicam o direito às cotas raciais baseando-se em caraterísticas fenotipicas de seus ascendentes (pais, avós, tios). No entanto, é importante destacar que o fato de ser filho ou neto de pessoas negras não transforma alguém em alvo-potencial do racismo, fenômeno que as ações Afirmativas, e as cotas raciais em particular, visa combater. Enfim, as cotas raciais não se destinam a filhos e netos de pessoas negras, mas se destinam às pessoas negras”, afirmou Rodrigo Ednilson de Jesus, sociólogo, pós-doutor e professor de cursos de pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

O sociólogo e professor Rodrigo Ednilson de Jesus já trabalhou na formação de mais de 800 pessoas – Foto: Arquivo pessoal

O especialista explica que os procedimentos de heteroidentiicação têm como base as características fenotípicas das pessoas, ou seja, aquelas características físicas que podem ser observadas, como cabelo, tom de pele, nariz e boca. As comissões não analisam os concorrentes pelo genótipo, ou seja, a análise não é feita tendo em vista o parentesco com pretos e pardos, e sim com a leitura racial.

A Resolução CNJ n. 203/2015, que reservou às pessoas negras 20% das vagas em concursos públicos para ingresso na magistratura, foi um importante passo em direção a equidade racial no Poder Judiciário. O juiz auxiliar da Presidência do CNJ Edinaldo César Santos Junior destaca que a medida ajudou o Sistema de Justiça a olhar de frente para o racismo institucional.

“Em 2005, por exemplo, quando tomei posse na magistratura, as discussões sobre questões raciais na instituição eram praticamente inexistentes. Agora, em 2023, outros avanços são necessários”, disse. Ele destacou pesquisa realizada pelo próprio CNJ que, em 2021, estimou que, com os números atuais, a equivalência dos juízes e juízas negros (22,2%) será atingida somente entre os anos de 2056 e 2059. “Avançamos? Sim. Mas não podemos perder tempo em prol das necessárias mudanças estruturais que ainda precisamos fazer”, disse.

Funcionamento

As comissões de heteroidentificação devem atuar já no ato da inscrição preliminar ou da inscrição definitiva, de acordo com os critérios de conveniência e oportunidade de cada tribunal. Não possuem número determinado de membros, mas em geral esse quantitativo varia entre três e cinco membros, e também não precisam estar necessariamente ligadas às cortes (podem ser formadas, por exemplo, pela banca do concurso).

Segundo a assistente social do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Afrobrasilidade, Gênero e Família da Universidade Estadual do Ceará (Uece) Daiane Daine, durante palestra promovida pela Defensoria Pública Geral do Ceará (DPCE) sobre o papel das bancas de heteroidentificação, não há uma fórmula matemática que ao ser aplicada definimos se o candidato tem direito ou não. “A banca olha o fenótipo dessa pessoa porque é pelo fenótipo que o racismo se manifesta. Então, é preciso letramento racial para compreender o funcionamento de uma comissão de heteroidentificação. Porque raça é uma construção social”, diz a especialista.

Vale ressaltar que, como as avaliações são subjetivas, apenas nos casos de comprovada má-fé, discutida em procedimento com garantia da ampla defesa e do contraditório, o candidato poderá ser excluído do certame. Não comprovada eventual má-fé na autodeclaração, os candidatos não reconhecidos como pretos ou pardos poderão participar da lista de ampla concorrência. A resolução foi aprovada pelo Plenário a partir do voto do relator do processo, conselheiro Vieira de Mello Filho, presidente do Fórum Nacional do Poder Judiciário para a Equidade Racial (Fonaer),

O Fonaer foi instalado pela Resolução CNJ n. 490/2023 com objetivo de combater a discriminação racial na Justiça e representa um marco na concepção do Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial. Entre suas atribuições está a de elaborar estudos e propor medidas concretas de aperfeiçoamento do Sistema de Justiça quanto à equidade racial.

Exemplos

Consultor e professor na formação das bancas de heteroidentificação, Rodrigo Ednilson já trabalhou na formação de mais de 800 pessoas, que passaram por seus cursos, em que aborda temas como políticas afirmativas, questões raciais e história. Os tribunais têm aberto as capacitações para seus servidores e, em alguns casos, para membros da comunidade civil envolvidos nessa questão. O curso dura aproximadamente oito horas e aborda também os textos normativos elaborados pelo CNJ nessa temática.

No Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), a partir de 2018, os concursos passaram a contar com uma Comissão de Averiguação para atestar a veracidade da informação que cada candidato presta a respeito de sua raça. Em 2021, sete candidatos chegaram à fase oral pela via das cotas raciais, quando a comissão de avaliação foi chamada a atuar. Desses, seis foram confirmados pela colegiado. O sétimo decidiu por concorrer na lista da chamada ampla concorrência. No fim do concurso, quatro candidatos negros foram aprovados.

Em 2022, a justiça trabalhista gaúcha e a Fundação Carlos Chagas (FCC) decidiram trabalhar em conjunto para habilitar as provas dos candidatos autodeclarados negros nas provas do concurso de servidores para analista e técnico judiciário, que também prevê 20% de vagas a candidatos negros. Foram compostas duas comissões de heteroidentificação, com indicados do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (RS) e da FCC.

Cada grupo contou com cinco membros titulares e cinco suplentes. No total, participaram das atividades quatro desembargadores, oito servidores, e oito especialistas no tema indicados pela Fundação. Os integrantes das comissões receberam previamente um curso de capacitação com aportes teóricos, conceituais e técnicos sobre o tema. A formação foi oferecida pela FCC em parceria com a Escola Judicial do TRT-4 ao longo de cinco dias, com exercícios e leitura de materiais de apoio.

Outras cortes, como o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), também já se movimentaram e passaram a ter comissões de heteroidentificação.

Texto: Regina Bandeira
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias