No mês em que a Constituição Federal completa 30 anos – e na antevéspera da comemoração do Dia da Criança –, é importante destacar o artigo 227 da Carta, que passou a garantir os direitos das crianças e dos adolescentes como absoluta prioridade. A novidade abriu caminho para a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e representou novo olhar sobre a infância ao romper com o modelo punitivista do Código de Menores que vigorava durante o Regime Militar.
“A Constituição estabeleceu a grave responsabilidade de atuar na defesa das crianças como cidadãs sujeitas de direito e assim o faremos. Elas são, antes de tudo, cidadãos que merecem toda a atenção porque ainda estão em formação, com necessidade de todo o carinho, todo o afeto, todo o amor”, disse o presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, em setembro último, durante seminário sobre o marco legal da primeira infância, que reuniu as principais autoridades do sistema de Justiça, em Brasília.
O artigo 227 é considerado por especialistas em direitos da criança um resumo da Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovado pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) e ratificado por 196 países em 1989, um ano após a recém promulgada Constituição brasileira. De acordo com Pedro Hartung, coordenador do programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana, os debates na Constituinte para inserção deste artigo se basearam nessas discussões internacionais. “É o artigo mais importante da nossa Constituição, responsável por uma mudança paradigmática. Em nenhum outro lugar há a junção tão forte dessas palavras que colocam a criança como prioridade e abriram caminho para a aprovação do Estatuto das Crianças e Adolescentes (ECA)”, diz Hartung.
ECA, novo olhar para a infância
Aprovado em julho de 1990, o ECA regulamentou o artigo 227 da Constituição Federal, instituindo nova doutrina de proteção à infância e garantia de direitos. O Estatuto revogou o Código de Menores, em vigor desde 1979, que se restringia aos menores em “situação irregular”. O antigo código dispensava o mesmo tratamento às crianças órfãs, abandonadas, fora da escola e aos adolescentes que haviam cometido atos infracionais. “O código tinha uma perspectiva de confinamento, chamada de sequestro social, e que foi superada pela doutrina da proteção integral, vista como revolucionária na época”, diz Mário Volpi, coordenador do programa Promoção de Políticas de Qualidade para a Infância do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) do Brasil, ligado à Organização das Nações Unidas (ONU).
O Estatuto definiu a criança e o adolescente como sujeito de direitos e reconheceu a condição peculiar de desenvolvimento em que se encontram, reiterando a necessidade de prioridade absoluta. Para Mário, o estatuto unificou o conceito de infância, acabando com a separação que baseava o antigo código entre os “menores”, que eram aqueles em situação irregular, das demais crianças e adolescentes.
Após 28 anos de vigência, a implementação dos direitos previstos no ECA ainda é desafiadora no país que possui 40% das crianças em situação de pobreza, conforme levantamento de abril deste ano feito pela Fundação Abrinq, e mais de 2 milhões de crianças e adolescentes fora da escola, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Quanto mais se investe na criança, mais retorno social se tem e mais a violência diminui”, diz Pedro Hartung, do Instituto Alana.
Os números em relação à violência são igualmente alarmantes e demonstram uma explosão de violência entre os adolescentes, tanto como vítimas, quanto como autores de atos infracionais. O Atlas da Violência 2018, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostra que o número de homicídios de jovens de 15 a 29 anos cresceu 23% de 2006 a 2016, período em que houve o assassinato de 324.967 pessoas nessa faixa etária. Além disso, mais de metade das vítimas de estupro são crianças até 13 anos.
Já o número de adolescentes em privação e restrição de liberdade aumentou 58,6% no Brasil entre 2009 a 2015 – são 26.868 jovens nesta situação, como mostrou, em fevereiro, levantamento feito pela Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos.
Para Mário Volpi, do Unicef, é preciso investir na prevenção para que os adolescentes não entrem para a criminalidade, oferecendo oportunidades em comunidades vulneráveis, como escolas em turno integral, cultura e esporte. “Precisamos enfrentar o ciclo de reprodução de pobreza gerado pela gravidez na adolescência, abandono escolar e ausência de formação para o trabalho”, diz Volpi. Na opinião dele, é vergonhoso que o Brasil não tenha adaptado as instituições socioeducativas para que ofereçam condições de recuperação aos jovens, e que algumas sejam centros de maus-tratos. “Quando são respeitados os direitos previstos no ECA como a frequência na escola e a realização do Plano de Atendimento Individual (PIA), o índice de ressocialização dos adolescentes é superior a 75%”.
O CNJ na defesa da criança e do adolescente
A preocupação com a defesa dos direitos de crianças e adolescentes faz parte das prioridades do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), desde sua criação. Um dos marcos da atuação do CNJ na área da infância e juventude foi a criação do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), coordenado pela Corregedoria do CNJ, que completou uma década de existência em 2018.
Com o cadastro, as varas de infância de todo o país passaram a se comunicar com facilidade, agilizando as adoções interestaduais. Até então, as adoções das crianças dependiam da busca manual realizada pelas varas de infância para conseguir uma família. Na última década, mais de 9 mil adoções foram realizadas. Só no período de janeiro a maio deste ano, 420 famílias foram formadas com o auxílio do CNA. Atualmente, 9.039 crianças e adolescentes e 44.601 pretendentes estão cadastrados no CNA. Este ano, nova versão do CNA começou a ser testada – o sistema passou por reformulação para se tornar mais ágil na busca de famílias para as crianças e adolescentes que aguardam nos abrigos.
Para o corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, ao ser criado, o CNA tinha como principal finalidade consolidar, em um Banco de Dados, único e nacional, as informações sobre crianças e adolescentes a serem adotados e de pretendentes à adoção de todo o Brasil. Segundo Martins, o fato, à época, já foi grande e importante passo. “Dez anos depois, a Corregedoria Nacional de Justiça, atenta às mudanças da sociedade brasileira e, em especial, às necessidades de maior transparência e celeridade, busca fazer as adaptações necessárias para possibilitar que os cadastros de adoção e de crianças e adolescentes acolhidos se transformem em um sistema, que possibilite a crianças e famílias se encontrarem mais rapidamente e de forma mais eficaz”, afirma o ministro Martins.
Depoimento que respeita crianças vítimas de violência
O depoimento especial, uma técnica humanizada para escuta judicial de menores, se tornou obrigatório em abril, pela Lei n. 13.431/2017. Mesmo antes da lei que o tornou obrigatório, juízes já adotavam o depoimento especial com base na Recomendação n. 33, de 2010, do CNJ.
A norma determinou, entre outras providências, a implantação de um sistema de depoimento de crianças e adolescentes em vídeo gravado, o qual deverá ser feito em ambiente separado da sala de audiências, com a participação de profissional especializado para atuar nessa prática. Com base na recomendação, ao menos 145 salas de depoimento especial foram instaladas no País.
Pai presente: a diferença na vida das crianças
O programa Pai Presente do CNJ foi implantado em 2010 e possibilitou, nos primeiros cinco anos de existência, mais de 40 mil reconhecimentos espontâneos de paternidades. O programa tem por base os Provimentos n. 12 e n. 16 da Corregedoria Nacional de Justiça, com base na Lei Federal n. 8.560, de 1992, e no artigo 226 da Constituição Federal, que assegura o direito à paternidade.
O Pai Presente possibilita os reconhecimentos espontâneos tardios, sem necessidade de advogado e sem custos para pai ou mãe. Os tribunais realizam mutirões, em locais como escolas e presídios, para atendimento de mães, pais e crianças que pleiteiam o reconhecimento da paternidade. Nesses locais são feitos, também, exames de DNA para comprovação de paternidade. Atualmente, o programa está sob a responsabilidade das Corregedorias Estaduais e com grande capilaridade nos municípios.
Luiza Fariello
Agência CNJ de Notícias