Conselheiro do CNJ avalia, em artigo, luta dos EUA contra recessão

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O conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Joaquim Falcão, destacou no último domingo (18/01), em artigo de sua autoria publicado no jornal Folha de São Paulo, que a atual luta dos Estados Unidos contra a crise financeira e a recessão econômica é, em última instância, a defesa da retomada da “audácia” do país. Um traço, conforme avaliou, do caráter norte-americano que vinha sendo desacreditada em virtude da especulação financeira e devido à perda da competitividade industrial global.

Falcão, diretor da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, enfatizou ainda que, ao contrário do que alguns teimam em afirmar por aqui, os Estados Unidos e seu sistema jurídico não defendem o credor. Nem o devedor. “Defendem, antes, a ‘temeridade comercial’, a capacidade de correr riscos para produzir riqueza, liderança e futuro. Podem defender o devedor mais que o credor, ou vice-versa, se tanto for necessário”, frisou.

Motivos pelos quais, na opinião do conselheiro, o novo presidente norte-americano Barack Obama – a ser empossado  nesta terça-feira ( 20/01 )  tem caracterizado sua mensagem de mudança como algo além de simplesmente consertar um sistema financeiro autofágico. “Trata-se de retomar a audácia para fazer o capitalismo sobreviver. Parte do pressuposto de que, para sair da crise, é preciso trilhar múltiplos, flexíveis e experimentais caminhos”, destacou Joaquim Falcão.

Leia, abaixo, a íntegra do artigo do conselheiro:

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Folha de São Paulo

 A Crise e o caráter americano

 Ao contrário do que alguns ainda teimam em afirmar, os EUA e seu sistema jurídico não defendem o credor. Nem o devedor

 * Joaquim Falcão

ESTES PARÁGRAFOS foram escritos há quase 200 anos: “Nos Estados Unidos, as fortunas se destroem e crescem sem dificuldade. O país não tem limites e é cheio de recursos inesgotáveis. O povo tem todas as necessidades e todos os apetites de um ser que cresce e, não obstante os esforços que faça, está sempre rodeado de mais bens do que pode fazer seus. O que é de temer num povo assim não é a ruína de alguns indivíduos, logo reparada, mas a inatividade e a languidez de todos.

A audácia nos empreendimentos industriais é a primeira causa de seus progressos rápidos, de sua força, de sua grandeza. A indústria é, para ele, como que uma vasta loteria em que um pequeno número de homens perde a cada dia, mas em que o Estado ganha sem cessar; um povo como esse deve, pois, ver com bons olhos e honrar a audácia em matéria de indústria.

Ora, todo empreendimento audacioso compromete a fortuna do que a ele se dedica e a fortuna de todos os que confiam neste. Os americanos, que fazem da temeridade comercial uma espécie de virtude, em hipótese alguma condenariam os temerários.

É por isso que, nos Estados Unidos, as pessoas mostram uma indulgência tão singular para com o comerciante que vai à falência: a honra deste não sofre com tal acidente”.

Quem os escreveu foi um aristocrata francês, Alexis de Tocqueville, em 1835, no clássico “A Democracia na América”. Clássico porque ninguém, antes ou depois, captou tanto a essência da alma, o caráter da sociedade americana, que fez de seu capitalismo singular experiência vitoriosa.

A atual luta contra a crise financeira e a recessão econômica é, em última instância, a defesa desse traço de seu caráter: a retomada da audácia, desacreditada pela especulação financeira e pela perda da competitividade industrial global.

Ao contrário do que alguns ainda teimam em afirmar por aqui, os Estados Unidos e seu sistema jurídico não defendem o credor. Nem o devedor.

Defendem, antes, a “temeridade comercial”, a capacidade de correr riscos para produzir riqueza, liderança e futuro. Podem defender o devedor mais que o credor, ou vice-versa, se tanto for necessário.

Sua tarefa prioritária e urgente não é pagar credores ou punir devedores -mesmo os de má-fé. É fazer com que acionistas, executivos, trabalhadores e consumidores -não somente os audazes, mas também os que confiam neles- voltem a se arriscar. Ainda que, para tanto, punam-se os responsáveis, extingam-se as empresas e abandone-se o modelo de capitalismo até então aparentemente vitorioso.

Não importa discutir o sexo de anjos ou demônios. Se o modelo foi distorcido ou não. O fato é: ele é distorcível. Em vez de levar os EUA ao progresso, os levou à recessão. Em vez de pleno emprego, desemprego.

Para Tocqueville, a loteria do mercado só se justifica quando fortalece o Estado sem cessar e, assim, faz a grandeza da nação. Inexiste o elogio da audácia como virtude exclusiva do mercado livre. É virtude instrumental.

A dicotomia “Estado versus mercado” tem sido mais dicotomia de exportação. Necessária à expansão global americana. Há uma histórica insinceridade nela. O combate à crise é, sobretudo, o desafio de, diz Mangabeira Unger, recombinar e reexperimentar as permanentes, nem sempre visíveis, relações não separatistas entre mercado e Estado.

Não é por menos que a administração George W. Bush, e, provavelmente, a futura administração Barack Obama, ao socorrer empresas financeiras e industriais, além de regular, empresta, intervém, se associa, compra, doa impostos pagos, estimula fusões, subsidia, fecha, enfim, desconhece, com tranquilidade e despudor, os limites da autonomia privada. Inclusive os limites jurídicos da propriedade privada, da liberdade contratual, do não-protecionismo e da livre concorrência.

Barack Obama, que, com certeza, leu Tocqueville, tem caracterizado sua mensagem de mudança como algo além de simplesmente consertar um sistema financeiro autofágico.

Trata-se de retomar a audácia para fazer o capitalismo sobreviver. Parte do pressuposto de que, para sair da crise, é preciso trilhar múltiplos, flexíveis e experimentais caminhos. Capazes de recombinar liberdade e futuro. E não de um só.

É este o divisor de águas. Diante da crise globalizada, elites de alguns países tentam reinventar as relações entre Estado e mercado. E, dentro do mercado, entre finanças, produção e emprego. Outras, não. Insistem na nostalgia de consertar um futuro que não ocorreu. E outras, pior: esperam o dia em que a mudança do futuro de lá vai desembarcar aqui. Vã e mimética esperança.

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 * Conselheiro do CNJ, mestre em direito pela Universidade Harvard (EUA) e doutor em educação.