Mal raia o dia, eles em fila tomam a condução rumo ao trabalho. No serviço, cada um bate o ponto, veste o uniforme e assume a tarefa do dia. Ao fim da jornada, o destino de volta são os presídios de Campo Grande/MS. Nos últimos seis anos, ao menos 18,5 mil contratos de reeducandos foram firmados com o setor público e empresas privadas.
Sete escolas estaduais, duas delegacias e uma operação tapa-buracos de rodovias contaram com a mão de obra de presos. Nesta sexta-feira (7/4), o projeto entrega o sétimo colégio reformado — outros dois serão atendidos até o fim do ano. Como o material usado na reforma das escolas foi adquirido com recursos de uma taxa sobre os vencimentos dos apenados, o governo local estima ter poupado R$ 2 milhões nas obras.
Com o início das reformas, ao fim de 2013, o juiz Albino Coimbra Neto baixou portaria, no ano seguinte, que aplica taxa de 10% aos salários dos reeducandos para pagar o material. O desconto tem base na previsão da Lei de Execução Penal (LEP) de que parte do pagamento do preso cubra o Estado pelo custo com a manutenção dele.
Todo reeducando, por lei, deve ganhar o equivalente a 75% do salário mínimo pelo serviço prestado. Antes de criar a taxa, conta Albino, foi definido que as empresas pagariam a íntegra do mínimo. Assim, mesmo com o desconto, o apenado recebe acima do previsto em lei. Para o preso, a labuta rende também remição de pena: três dias de serviço abatem um de punição.
Contratar mão de obra de presos traz vantagens para empresas públicas e privadas. Dado que a Consolidação das Lei do Trabalho (CLT) não se aplica ao apenado, o empregador livra-se de obrigações com férias, 13º salário e Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Para desligar o funcionário, basta um e-mail para o conselho da comunidade.
“Está em linha com o Começar de Novo, do CNJ”, define o juiz. Criado em 2009, com a Resolução n. 96, o programa do Conselho Nacional de Justiça incentiva órgãos e empresas a contratar presos e egressos, a fim de baixar a reincidência. Na mesma norma, o CNJ atribuiu funções aos conselhos da comunidade, que agenciam os contratos.
Mato Grosso do Sul foi um dos dez estados a priorizarem penas alternativas à prisão em 2015, segundo a mais recente edição do Justiça em Números. Das 3111 execuções iniciadas no ano, 69,6% não implicaram detenção.
Ao menos 70% dos presos no semiaberto trabalham no estado. O regime permite estudar e trabalhar fora da prisão, durante o dia, após o interno cumprir um sexto da pena. O próprio detento pode apresentar carta com a proposta de emprego e muitos declaram ser empregados de parentes. “É óbvio que vários não trabalhavam de fato,” diz Albino.
Nos contratos do projeto local, o reeducando bate ponto diariamente. “É a grande vantagem. A empresa ou órgão também deve pôr um gestor para fiscalizar”, conta Albino. Aplicar o previsto em lei eleva a confiança no sistema penal, ao ver do juiz. “A base é o regular funcionamento do semiaberto. Brasil afora, o regime é tratado de modo muito informal.”
Cabe ao conselho da comunidade fiscalizar a frequência e o local de trabalho dos apenados. Vinculado à vara de execução penal, o órgão recebe os salários e, então, repassa aos presos em situação regular. Previstos na LEP, os conselhos reúnem voluntários — como advogados, comerciantes e parentes de detentos — e ajudam na reinclusão.
“Recolhemos as folhas do reeducando e somamos os dias trabalhados, uma espécie de serviço de recursos humanos. Muitas empresas dizem que nossos funcionários são melhores que os deles”, relata Nereu Rios, secretário executivo do conselho da comunidade da capital. “A ideia é que, ao fim da pena, ele seja absorvido pela empresa”, diz.
Em regra, o histórico criminal não afeta a seleção para o trabalho. Psicólogos e assistentes sociais avaliam o perfil do apenado — do regime aberto ou semiaberto — antes do envio ao serviço. O primeiro contrato, de experiência, dura 30 dias. Além das empresas, o conselho possui convênios com 15 órgãos públicos, entre entes locais e federais.
“Hoje, a procura é maior que a oferta, por causa da morosidade do sistema em nos encaminhar os presos”, afirma Rios. “As pessoas não acreditam na ressocialização do preso. Aqui na ponta, percebemos que muitos deles precisam de oportunidade. Vêm de famílias humildes, têm baixa escolaridade e 95% não tem profissão definida”, indica.
Renato Veiga, 26 anos, espera completar um ano de carteira assinada em junho. O contrato veio ao mudar do regime semiaberto para o condicional. Hoje estoquista, ele trabalhou na empresa, exportadora de sementes, como reeducando. “As vagas são disputadas no programa. Se você perde, espera de dois a três meses”, explica.
Ainda no regime semiaberto, ele soube da contratação. “Peguei o primeiro serviço e fiquei até o fim. Estava focado em terminar minha pena e arrumar logo um trabalho”, conta Renato, condenado a cinco anos por tráfico de drogas. “Todo mundo sabe como é complicado. Me deram oportunidade porque fiz por merecer. Você precisa dar o melhor de si”, diz ele.
Em dez anos, Lazara Martins passou de funcionária a contratante do projeto. Em condicional desde 2013, por pena de tráfico, ela comanda a própria firma, onde quatro dos cinco empregados são apenadas ou egressas. Com 16 máquinas de costura, a equipe produz uniformes usados por reeducandos nos presídios e em empresas.
Ela pagou os primeiros aparelhos com salário de copeira, no semiaberto. “É pouco, mas dava para fazer algo, como deu. Tive a ideia de empreender, coloquei foco e fiz”, conta, aos 45 anos. “O projeto abre uma porta, me ajudou a ter vida própria. O melhor é a conscientização do reeducando. Ele vê que existem outros rumos”, disse Lazara Martins.
Isaías Monteiro
Agência CNJ de Notícias