O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é uma grande conquista democrática da sociedade brasileira e tem sido importante instrumento para a garantia dos direitos fundamentais, previstos no artigo 5º da Constituição Federal. Essa é a avaliação de advogados e magistrados que lidam diariamente na defesa dos direitos humanos, ao analisar a relevância do órgão criado pela Emenda Constitucional (EC) n. 45/2004 para melhorar a atuação administrativa e financeira do Judiciário brasileiro e que completa, este mês, 15 anos de existência.
“Existe uma Justiça antes e depois da criação do Conselho Nacional de Justiça. Ele transformou para melhor o acesso aos direitos de pessoas vulneráveis e de minorias”, afirmou o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Hélio Leitão. Ele se refere à atuação direta do CNJ na formulação de normas administrativas que dão acesso à Justiça de grupos como idosos, indígenas, afrodescendentes e transgêneros.
Para esse último grupo, o Provimento n. 73/2018 da Corregedoria Nacional da Justiça tornou menos burocráticas as regras para a mudança do nome e do gênero em suas certidões de nascimento ou casamento, sendo passo importante na afirmação da dignidade e honra da pessoa trans. Desde então, mais de 2 mil pessoas conseguiram, diretamente nos cartórios, mudar o nome para adequá-lo à sua identidade autopercebida. O dado é da Associação Nacional de Registradores de Pessoas Naturais (Arpen Brasil).
“Antes dessas decisões do CNJ, era preciso entrar com um processo judicial e torcer por uma decisão favorável da Justiça. Não havia uma orientação em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo. Os entendimentos eram muito diversificados e, em algumas cortes, havia mesmo proibição”, lembra o desembargador federal Guilherme Calmon, conselheiro do CNJ entre 2013 e 2015. Ele relatou ato normativo que culminou na Resolução 175/2013, que passou a impedir os cartórios a se negar a celebrar casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo.
A orientação impactou mais de 60 mil pessoas, desde então, segundo balanço recente elaborado pela Arpen Brasil. Somente no primeiro ano da norma em vigor, foram quase 5 mil casamentos realizados em todo o país. Até 2018, o número chegou a 32 mil uniões homoafetivas.
“Sob o prisma jurídico, a determinação foi fundamental para o combate à discriminação. O direito não pode amparar uma visão preconceituosa, e o CNJ deu um passo importante, seguro, contra o preconceito ao tomar aquela decisão”, diz Calmon, para quem as mudanças ocorridas dali para frente facilitaram o acesso aos direitos dessa parcela da população.
Desigualdade racial
Entre orientações, normas, programas, parcerias e capacitações que contribuíram para avançar no acesso à Justiça dos brasileiros, o CNJ regulamentou, nacionalmente, a adoção das cotas raciais em concursos para magistrados, por meio da Resolução n. 203 , de 2015. A iniciativa cumpre o Estatuto da Igualde Racial (Lei n. 12.288/2010) na busca pela redução da desigualdade de oportunidades profissionais para população negra brasileira.
Em 2013, o Censo do Judiciário elaborado pelo CNJ revelou que a população negra representava cerca de 15% do total de juízes no Brasil, apesar de serem mais de 50% da população brasileira, de acordo com o IBGE. Em 2018, outro levantamento do CNJ – o Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros – revelou o aumento na participação dos afrodescendentes: 18% dos magistrados entrevistados se declararam pretos ou pardos.
“Não se trata de um favor ou privilégio”, afirma o presidente da Associação dos Magistrados do Distrito Federal (Amagis-DF), Fábio Francisco Esteves, que atua no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT). Negro, ele não chegou a ser beneficiado pela norma (seu concurso foi anterior). Para Esteves, as cotas representam uma conquista de um grupo que, durante séculos, foi marginalizado e não concorre em situação de igualdade de oportunidade a uma vaga na magistratura.
Tráfico Humano
Outro tema levantado pelo CNJ junto aos tribunais brasileiros foi o tratamento dado aos processos que apuram crimes de tráfico de pessoas e trabalho análogo ao escravo, que atinge milhões de pessoas em todo o mundo. “Mal se falava, no âmbito do Judiciário, sobre isso. Era como, diante de tantos crimes, como homicídio, latrocínio, essa questão não fosse tão urgente. E muitos casos estavam acontecendo debaixo do nosso nariz e não conseguíamos ver por falta de expertise, de conhecimento técnico”, diz juiz Rinaldo Barros (TJGO), membro do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, criado pelo CNJ, em 2011.
Promovidos pelo CNJ em parceria com órgãos públicos de fiscalização, prevenção e repressão a esses crimes, entre 2012 e 2015, ocorreram cinco seminários que ajudaram autoridades brasileiras a se capacitar no tema. Em 2015, o órgão criou o Fórum Nacional do Poder Judiciário para Monitoramento e Efetividade das Demandas Relacionadas à Exploração do Trabalho em Condições Análogas à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas (Fontet) que, ainda hoje, monitora questões relativas ao tema, como o trabalho escravo de imigrantes venezuelanos no Brasil.
“O CNJ fez um trabalho importantíssimo ao trazer o tema ao Judiciário. O órgão, com sua liderança, ajudou a construir uma política de combate e prevenção a esses crimes que continuam acontecendo. E agora, mais do que nunca, precisamos estar atentos. Os traficantes se aproveitam da vulnerabilidade social. O desespero é a porta de entrada”, diz Rinaldo, membro do Fontet em seu primeiro ano e coordenador científico dos seminários promovidos naquele período.
O CNJ também atuou na esfera política para que houvesse mudança legislativa em relação ao tamanho das penas aplicadas a réus condenados por esses crimes. Em 2016, foi aprovada a Lei n. 13.344/2016, com ações de prevenção, repressão e assistência à vítima, além de aumentar a penalidade nesses casos.
Idosos
Em outra frente de atuação, o CNJ voltou seus olhos nesses 15 anos aos direitos dos idosos. Em 2007, os conselheiros aprovaram a Recomendação n. 14, para que os tribunais de todo o país passassem a adotar como prioridade os processos e procedimentos em que pessoas idosas eram parte, em qualquer instância da Justiça. A norma recomendava ainda que os tribunais promovessem seminários e estudassem medidas para o efetivo cumprimento do Estatuto do Idoso, especialmente quanto à celeridade dos processos.
Entre 2015 e 2017, ingressaram no Poder Judiciário 28.965 processos de crimes enquadrados nos artigos 96 a 108 do Estatuto do Idoso. São casos de abandono de idosos em hospitais, discriminação de pessoa idosa e apropriação ou desvio de bens, proventos, pensão ou qualquer outro rendimento do idoso.
Para o representante da OAB, no balanço desses 15 anos de medidas afirmativas aos direitos humanos, “o CNJ tem um saldo extremamente positivo. Foram inúmeras iniciativas que contribuíram para que a Justiça enxergasse populações fragilizadas”, afirmou Hélio Leitão.
Indígenas
Em 2011, aos 104 anos, a índia Biloca de Oliveira recebeu sua primeira certidão de nascimento e a primeira Rani, documento emitido pela Fundação Nacional do Índio (Funai) que identifica os indígenas brasileiros, mas pouco reconhecido fora das aldeias. O direito foi garantido por meio de convênios e parcerias que envolveram ainda associações de registradores, tribunais estaduais, órgãos de representação dos indígenas e outras instituições para o atendimento integrado voltado às populações ribeirinhas, indígenas e fronteiriças.
Sem documentos civis como RG, CPF ou certidão de nascimento, essas populações encontravam muita dificuldade ou definitivamente não conseguiam acesso nem à Justiça, nem mesmo a serviços médicos emergenciais nos centros urbanos e outros direitos. O projeto Casas de Justiça e Cidadania foi o responsável por alcançar milhares de famílias indígenas do Mato Grosso do Sul e do Amazonas. Atento aos bons resultados, o CNJ editou em 2009 a Recomendação 26 a todos os tribunais para que instalassem o programa e, assim, aproximassem o Judiciário de todos os brasileiros, em todos os estados.
Outro avanço em favor das populações indígenas brasileiras foi a aprovação da Resolução n. 287/2019. Ela estabelece procedimentos especiais quando se tratar de pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade. O texto buscou assegurar os direitos dessa população e garantir, entre outros pontos, que se disponibilize serviço de intérprete a quem não fale a língua portuguesa e a possibilidade de realização de perícia antropológica para auxílio na elucidação dos fatos. A responsabilização de pessoas indígenas também deverá considerar mecanismos próprios das comunidades, como prevê o Estatuto do Índio (Lei n. 6.001/73).
“O CNJ tem essa característica incrível que é tornar mais concretos os direitos que ainda estão ou estavam abstratos, sem parâmetros. Ele identifica os temas e desenvolve toda uma ação, muitas vezes com a parceria de outros órgãos. Não tenho dúvidas que foi a partir da atuação do CNJ que conseguimos avançar em muitos assuntos”, concluiu Calmon.
Desde 2019, a Comissão Permanente de Democratização e Aperfeiçoamento dos Serviços Judiciários, criada pela Resolução 296, assumiu a atribuição de promover ações voltadas a ampliar a conscientização sobre direitos, deveres e valores do cidadão. Também é escopo de ação do colegiado propor ações e projetos destinados ao combate da discriminação, do preconceito e de outras expressões da desigualdade de raça, gênero, condição física, orientação sexual, religiosa e de outros valores ou direitos protegidos ou que comprometam os ideais defendidos pela Constituição Federal de 1988.
Este texto faz parte da série comemorativa dos 15 anos do CNJ. Conheça aqui outros momentos dessa história
Regina Bandeira
Agência CNJ de Notícias