Aumentar a representatividade e o acesso à Justiça de pessoas que, tradicionalmente, enfrentam obstáculos raciais, sociais ou de gênero tem sido uma das missões mais importantes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nos últimos 12 meses. O órgão mantém olhar atento ao público negro, indígena, LGBTQIAPN+, a pessoas com deficiência (PCDs), vítimas de violência, crianças e jovens, buscando oferecer serviços judiciais mais equitativos e eficientes, mais visibilidade e conscientização.
O combate à baixa representatividade de negros, indígenas e pessoas com deficiência na magistratura foi uma das bandeiras levantadas pelo ministro Luís Roberto Barroso assim que chegou à presidência do órgão, há um ano. Além de aprovadas as notas de corte diferenciadas nos concursos públicos do Poder Judiciário (20% inferior ao cobrado dos candidatos na ampla concorrência), o Conselho criou projeto — em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) — de bolsas voltadas aos candidatos negros, indígenas e PCDs, aptos no Exame Nacional da Magistratura (Enam).
“Ao lado das ações afirmativas, capacitaremos as pessoas para disputarem as vagas em melhores condições de competitividade. Vamos mudar as estatísticas do Judiciário”, disse Barroso, ao se referir aos dados do Diagnóstico Étnico-Racial do Poder Judiciário, que revelou desproporcional composição racial da magistratura – majoritariamente branca (83,8%) –, quando comparada com o retrato racial brasileiro.
Racismo Estrutural
Supervisora do Programa de Equidade Racial do CNJ, a juíza auxiliar da Presidência do CNJ Karen Luise de Souza diz que a medida é uma mensagem clara de que o Judiciário reconhece a existência de barreiras que decorrem da escravização. “Um reconhecimento de que as pessoas negras se encontram mais vulnerabilizadas e que não dispõem nem de recursos nem de tempo para dedicarem-se à realização de concursos, que demandam pesados investimentos”, diz.
Ela destaca outra medida tomada pelo CNJ de conscientização sobre o racismo estrutural na Justiça: a aprovação do Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial. Na avaliação de Karen Luise, a ferramenta ajudará os juízes brasileiros a julgarem com menos vieses discriminatórios. “A consciência é fundamental para que tomemos decisões menos carregadas de preconceitos e distorções”.
Reconhecimento nacional e internacional
A relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância, Ashwini K.P., visitou o Brasil em agosto e reconheceu os esforços do CNJ na luta contra a discriminação racial. Membros da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) também estiveram no CNJ para checar o cumprimento de determinações internacionais pelo Brasil, em especial no caso da biofarmacêutica Maria da Penha.
Maria da Penha, vítima de duas tentativas de homicídio cometidas pelo ex-marido, o qual, apesar de condenado, levou 19 anos e seis meses para ser preso, escutou um pedido de desculpas públicas do ministro Luís Roberto Barroso durante abertura de projeto criado pelo CNJ voltado à aplicação da lei que leva seu nome – a Jornada Maria da Penha –, de combate à violência doméstica.
“Eu gostaria de dizer à Maria da Penha, em nome da Justiça brasileira, que é preciso reconhecer que, no seu caso, ela [a Justiça] tardou e foi insatisfatória. Pedimos desculpas em nome do Estado brasileiro pelo que passou e pela demora na punição [de seu agressor]”, afirmou Barroso, durante abertura da 18.ª Jornada Maria da Penha, ocorrida na comunidade Sol Nascente, a 30 km de Brasília (DF).
A supervisora da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres no Poder Judiciário e conselheira do CNJ, Renata Gil, explica que o gesto cumpre uma das recomendações da Comissão Interamericana feitas ao Estado brasileiro, condenado por negligência e omissão em relação ao caso.
Ainda em relação ao fortalecimento de projetos de promoção de direitos humanos no Judiciário com apoio de organismos internacionais, o CNJ firmou parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud/ONU) do Programa Justiça Plural, voltado a trabalhar oito eixos, entre eles: meio ambiente; gestão do conhecimento; desaparecimentos involuntários e forçados.
Violência sexual
O combate à violência contra meninas, mulheres e outros públicos vulneráveis é uma das prioridades da atual gestão, que vem trabalhando, inclusive, com parcerias privadas para dar andamento às ações de combate à violência. É o caso da parceria entre o CNJ e a empresa de transporte por aplicativo Uber do Brasil, que passou a integrar a Campanha Sinal Vermelho, de pedido de ajuda silencioso.
A ação, diz Renata Gil, ajuda a quebrar o estigma que cerca a violência doméstica, “criando um ambiente que encoraja as pessoas a reconhecerem e denunciarem a violência doméstica”. Em agosto, liderado pela conselheira, um grupo de magistrados visitou o arquipélago de Marajó, no estado do Pará, com o objetivo de aproximar a Justiça da população dos municípios que possuem alguns dos piores índices de desenvolvimento humano do país, com excessivos casos de violência doméstica e sexual. Debates, palestras, círculos de diálogos com a comunidade e capacitações de servidores foram realizados para aumentar a sensibilização e a efetividade nas respostas estatais.
Indígenas e ribeirinhos
Caracterizada por imensas áreas pouco povoadas e vulneráveis socioeconomicamente, a Amazônia foi um dos focos do trabalho do Conselho. Em junho, as cidades de Lábrea e Humaitá, no sul do estado do Amazonas, receberem o projeto Itinerância Cooperativa na Amazônia Legal. No território indígena Caititu, que congrega mais de quatro povos, a comitiva do Conselho ouviu os anseios da população e, em plena floresta amazônica, foi realizado o 1.º casamento civil de dois casais indígenas, garantindo aos nubentes diversos direitos.
Durante uma semana, foram realizados quase 15 mil atendimentos, desde emissão de documentos, pedido de aposentadoria, serviço médico e odontológico, orientação jurídica, até suporte oferecido pela rede de proteção da infância e da adolescência, entre outros. O projeto conta com 50 parceiros, entre órgãos da Justiça, do Poder Executivo federal, estadual, de prefeituras e de organismos não governamentais.
Equidade
O CNJ também avançou em direção ao desenvolvimento de condições mais justas e equitativas ao aprovar a Resolução n. 540/2023, que trata de paridade de gênero na Justiça. A medida fortaleceu a participação de mulheres em cargos de liderança e decisão, com perspectiva interseccional de raça e etnia, em atividades administrativas e jurisdicionais no âmbito do Poder Judiciário.
O órgão também segue desenvolvendo ações voltadas a reduzir a violência contra pessoas que se reconhecem da comunidade LGBTQIAPN+. Semelhante ao formulário de avaliação de risco, criado para reconhecer as ameaças de risco à vida de mulheres vítimas de violência, o Formulário Rogéria (Registro de Ocorrência Geral de Emergência e Risco Iminente contra pessoas LGBTQIAPN+) também servirá para aprimorar as respostas institucionais no que se refere às violências praticadas contra esse público.
Infância
O CNJ também aprovou a Resolução n. 532/2023, para combater a discriminação em relação a adoção, guarda e tutela de crianças e adolescentes, por casal ou família monoparental, homoafetiva ou transgênero. Os avanços em direção à proteção dos direitos humanos também podem ser comprovados em outras ações desenvolvidas pelo CNJ e voltadas ao acesso de pessoas em vulnerabilidade ao Poder Judiciário.
No caso de crianças e jovens em situação de acolhimento, o CNJ aprovou a Resolução n. 543/2024, instituindo o Programa Nacional Permanente de Apoio à Desinstitucionalização de Crianças e Adolescentes Acolhidos e a Egressos de Unidades de Acolhimento – Programa Novos Caminhos –, com objetivo de apoiá-los, garantindo a oferta de ações ou projetos que os ajudem, por exemplo, com ofertas de cursos profissionalizantes, apoio psicossocial, oferecimento de estágio.
Situação de rua
Ainda com foco no acesso à Justiça e na inclusão social, o CNJ vem estimulando em todo o país ações dos tribunais voltadas a atender e prestar serviços a uma população extremamente necessitada de atenção básica cidadã: pessoas que vivem em situação de rua. A Política Nacional de Atenção às Pessoas em Situação de Rua e suas Interseccionalidades (PopRuaJud) foi instituída pela Resolução n. 425/2021, durante a pandemia de covid-19, quando houve expressivo aumento de brasileiros vivendo nas ruas.
Desde então, foram realizados 181 mutirões pelo país levando aos mais vulneráveis acesso a serviços judiciais e sociais, como consulta odontológica, alimentação, emissão de certidão de nascimento, de carteira de trabalho, requerimento de benefícios previdenciários e questões judiciárias de menor complexidade, de maneira mais simplificada.
Coordenador do Comitê Nacional PopRuaJud e da Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua, o conselheiro Pablo Coutinho Barreto avalia que o trabalho dos comitês é urgente e extremamente necessário. Citando dados do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), do Governo Federal, ele alertou para o aumento significativo da extrema pobreza no país nos últimos anos.
“Em 2013, o país tinha cadastrado quase 23 mil pessoas vivendo em situação de rua. Passados pouco mais de 10 anos, os dados agora apontam que quase 302 mil brasileiros vivem nessa condição. São pessoas que estão às margens da sociedade, invisibilizados e privados de seus direitos. É nossa obrigação, como sociedade, barrar essa terrível desigualdade social”, afirmou o conselheiro, para quem o Comitê PopRuaJud está no caminho correto: “da diversidade, do comprometimento, da empatia e da dedicação incansável por uma causa que nos traz alegria quando conseguimos modificar a realidade”, completou.
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Assista à série especial do Link CNJ sobre Direitos Humanos:
Texto: Regina Bandeira
Edição: Geysa Bigonha
Agência CNJ de Notícias