“Quando escrevo, consigo imaginar um futuro diferente”, disse Kaene*, adolescente participante do Caminhos Literários na Unidade de Internação Feminina do Gama. A frase, carregada de esperança para transformação, reflete um ano de avanços no sistema socioeducativo brasileiro. Da cultura à tecnologia, da qualificação profissional ao fortalecimento de ferramentas de monitoramento, as ações lideradas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2024 impactaram a vida de adolescentes e de profissionais que atuam neste campo.
“Em 2024 transformamos desafios em oportunidades para qualificar a capacidade de monitoramento do sistema e criar novas possibilidades para adolescentes e profissionais envolvidos”, destaca o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), Luís Lanfredi.
Regulamentado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pela Lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), o sistema socioeducativo busca o desenvolvimento integral de adolescentes a quem se atribui ato infracional por meio de medidas socioeducativas de responsabilização. Essas medidas podem ocorrer em meio fechado (internação e semiliberdade) ou meio aberto.
Desde 2019, as atividades do CNJ para o sistema socioeducativo são executadas por meio do programa Fazendo Justiça, realizado em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que também atua para transformações no campo penal.
Inspeções e dados qualificados
No primeiro semestre de 2024, o Cadastro Nacional de Inspeções em Unidades e Programas Socioeducativos (CNIUPS) passou a funcionar para as inspeções em programas e serviços do meio aberto, que incluem medidas de liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade. O sistema, que já era usado para o monitoramento de unidades de internação e semiliberdade desde 2023, alcançou 59% dos municípios brasileiros no primeiro semestre de 2024 e registrou informações de mais de 45 mil adolescentes.
A partir dos dados coletados no CNIUPS do meio fechado, 2024 marcou a elaboração do Painel de Inspeções no Socioeducativo, que será lançado em breve. Trata-se de uma ferramenta inovadora que permite a visualização detalhada de informações estruturais das unidades, como capacidade, quadro de pessoal e protocolos de segurança, além de perfis desagregados dos adolescentes por gênero, etnia e faixa etária. O painel responde a uma recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que orienta o Brasil a garantir transparência e dados atualizados sobre a justiça juvenil.
“A implementação desse painel é um passo fundamental para superar a histórica carência de informações no sistema socioeducativo. Agora, temos diagnósticos precisos que permitem uma gestão mais qualificada e o acompanhamento de condições fundamentais nas unidades”, afirma o juiz Edinaldo César Santos Junior.
Outro avanço tecnológico importante em andamento é a expansão da Plataforma Socioeducativa (PSE) para 14 tribunais de justiça em 2024. Integrada ao Processo Judicial Eletrônico (PJe), a PSE automatiza a gestão de processos, organiza dados e facilita o acompanhamento do Plano Individual de Atendimento (PIA) de cada adolescente. Além de reduzir a burocracia, a plataforma permite maior controle dos prazos processuais e gera uma base de dados confiável para a tomada de decisões.
Protagonismo e cultura
A cultura também foi protagonista em 2024 com a terceira edição do Caminhos Literários no Socioeducativo. Com atividades realizadas e acompanhadas por unidades socioeducativas de todo o país, o evento envolveu milhares de adolescentes em atividades como grafite, ilustrações, slam de poesia, rodas de conversa com artistas e apresentações musicais. “A cultura é o que resgata a nossa voz e os nossos sonhos”, afirmou um adolescente participante no Centro de Atendimento Socioeducativo de Formosa, refletindo sobre o impacto da iniciativa.
Durante o evento, o CNJ lançou a Diretriz Nacional de Fomento à Cultura na Socioeducação, documento que nasceu a partir de demandas apresentadas pelos próprios adolescentes durante a 1ª Conferência Livre de Cultura no Sistema Socioeducativo, de 2023. A partir dessa escuta ativa, a Diretriz reconhece a cultura como um elemento central na garantia dos direitos e no desenvolvimento integral dos adolescentes, orientando magistrados e gestores a implementarem ações inclusivas e continuadas, respeitando a pluralidade cultural e as especificidades regionais.
Na mesma linha de escuta ativa de interesses e potencialidades de adolescentes, a recomendação conjunta entre o CNJ e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), assinada em agosto de 2024, orienta tribunais e Ministérios Públicos a implementarem programas de aprendizagem profissional para adolescentes em cumprimento de medidas, em meio aberto e fechado. O objetivo é ampliar oportunidades de formação técnica e inserção no mercado de trabalho, respondendo às demandas identificadas entre os adolescentes para áreas como cultura, tecnologia da informação, economia criativa e comunicação.
Produção de conhecimento
A formação continuada de magistrados e magistradas teve destaque em 2024 com o curso “Garantias, Desafios e Novas Perspectivas”, desenvolvido em parceria com a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam). Em seis semanas, o curso capacitou 40 participantes em temas como direitos humanos, legislação e boas práticas no atendimento socioeducativo. Já no final do ano, o webinário Diálogos sobre Medidas Socioeducativas em Meio Aberto reuniu Sistema de Justiça e Executivo para falar sobre necessidades de articulações interinstitucinais para o sucesso dessas medidas.
No campo da produção de conhecimento, o ano foi marcado pelo lançamento de 16 publicações, que ofereceram subsídios essenciais para a atuação da magistratura, de equipes técnicas e de gestores e gestoras. Materiais como o Guia para Implementação da Resolução CNJ nº 369/2021, que orienta o atendimento específico de adolescentes gestantes, lactantes e cuidadores, e o Guia para a Qualificação da Atuação do Judiciário no PIA trouxeram diretrizes claras e práticas para a melhoria do acompanhamento socioeducativo. A inovação no formato veio com a produção de uma história em quadrinhos baseada no Manual Resolução CNJ nº 524/2023, que aborda o atendimento de adolescentes indígenas no sistema socioeducativo.
Além dos guias e relatórios, o CNJ promoveu a tradução de oito normativas internacionais essenciais, incluindo as Regras de Beijing, as Diretrizes de Riad e o Comentário Geral nº 24 sobre os direitos dos adolescentes no sistema de justiça juvenil, reafirmando os compromissos do Brasil com a proteção integral desse público.
Conheça todas as publicações do Fazendo Justiça para o Socioeducativo
“Ao investir na qualificação e na produção de conhecimento, fortalecemos o sistema socioeducativo com diretrizes claras, acessíveis e alinhadas aos princípios de justiça e inclusão”, destaca Fernanda Givisiez, coordenadora do Eixo Socioeducativo do Programa Fazendo Justiça.
*Nomes foram alterados para preservar identidades
Texto: Renata Assumpção
Edição: Débora Zampier
Agência CNJ de Notícias