Entre os inúmeros desafios que permeiam o sistema penal brasileiro, a questão racial é um dos mais estruturantes, uma vez que é nas prisões que desagua a série de violações e negação de direitos a que a população negra é historicamente submetida. É para incidir nesse cenário que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio do programa Justiça Presente, promove ações com recorte racial para contribuir com a elaboração, o monitoramento e a fiscalização e execução de políticas penais e socioeducativas. O objetivo das ações, realizadas em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), é enfrentar o racismo que permeia relações de controle e responsabilização, fomentando o mesmo tratamento a todos os cidadãos sob custódia do Estado.
O entendimento de que a questão racial é estruturante em discussões relacionadas à privação de liberdade e segurança pública parte de evidências. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias publicado pelo Ministério da Justiça em 2019 (referente a dados de junho de 2017), a proporção de negros e pardos no sistema prisional é de 63,64%, enquanto na sociedade em geral é de 55,4%. De acordo com o Atlas da Violência produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA) em 2019, 75,5%das vítimas de homicídio no Brasil em 2017 eram negras.
Para o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Medidas Socioeducativas do CNJ (DMF/CNJ), Luís Lanfredi, o Justiça Presente inova ao abordar o tema racial no sistema prisional e socioeducativo. “É um desafio porque essas violações derivam de um processo histórico de marginalização com efeitos nefastos não apenas no campo penal, mas na área de segurança pública em geral, cujo enfrentamento deve ser um compromisso permanente do Estado. Por meio do Justiça Presente, o Judiciário sai na vanguarda ao abordar um tema tão fundamental para o cumprimento de suas responsabilidades na esfera de responsabilização”, afirma.
A coordenadora da Unidade de Paz e Governança do PNUD Brasil, Moema Freire, aponta a importância do desenvolvimento inclusivo segundo a Agenda 2030 e os objetivos de desenvolvimento sustentável. “Ao trabalhar ações voltadas ao sistema prisional, é imprescindível ter um olhar de destaque para as implicações das desigualdades geradas por discriminação racial para que esta premissa apontada pela Agenda 2030 se concretize. O programa Justiça Presente trabalha com este princípio ao operar com a transversalização do olhar de marcadores de raça em suas ações”, avalia.
Após a estruturação do Justiça Presente no primeiro semestre, a transversalidade de raça e gênero foi incorporada nas iniciativas. De forma permanente, estão sendo identificadas e sistematizadas práticas sobre raça no Judiciário e ações afirmativas, além da promoção de capacitações e processos formativos para a equipe. Em junho, por exemplo, os 27 coordenadores estaduais do Justiça Presente e os 27 consultores em audiência de custódia alocados em cada unidade da federação tiveram um módulo específico sobre raça e gênero na capacitação.
“O marco do sistema penal e prisional brasileiro traz assimetrias raciais que foram naturalizadas nas estruturas institucionais. O olhar transversal sobre raça em todas as iniciativas do programa, e não apenas para promover ações específicas, tem maior potencial de envolver diferentes setores e fomentar mudanças estruturais”, explica a assessora sênior do Justiça Presente, Luana Basílio, que apoia os eixos do programa nas ações relativas a raça.
Incidência e instrumentos
A abordagem racial do Justiça Presente busca incidir em todo o ciclo penal, desde o momento do encarceramento até a saída do sistema. A estratégia abarca diversos formatos, desde intervenções em propostas normativas e de parcerias, passando por qualificação de instrumentos de coleta de informações para fins de gestão e pesquisa até protocolos e planos de ação. O programa também prevê estratégias para internalização institucional de boas práticas e de disseminação de conteúdo.
Em relação à monitoração eletrônica, houve inclusão de tópicos relativos à questão racial em uma pesquisa que será realizada em 10 estados sobre o tema. Lançada em 2020, ela mostrará o impacto da monitoração eletrônica na porta de entrada do sistema prisional, bem como representações e percepções de magistrados, gestores e pessoas monitoradas. “Esperamos entender como se dá a seletividade racial na monitoração e nas formas de solução de incidentes e violações. Também pretendemos avaliar como a tornozeleira pode reforçar estereótipos e limitar acesso a serviços e políticas“, explica a especialista em monitoração eletrônica do programa, Izabella Pimenta.
Já no campo das audiências de custódia, foram implementadas ações afirmativas no processo seletivo para contratação de consultores estaduais e foi elaborado um plano de trabalho para enfrentamento ao racismo institucional nas prisões em flagrante. Quesitos relativos a raça e cor também foram inseridos nos formulários de observação dos consultores em audiências de custódia, e a discriminação racial é um dos temas dos protocolos e manuais para enfrentamento aos casos de tortura e maus tratos.
“Não podemos conviver tranquilamente com o dado de que prevalece uma menor credibilidade para as alegações de tortura apresentadas por pessoas negras ou de que as taxas de prisão em flagrante são superiores para pessoas negras. Além da formação dos profissionais, é necessário produzir instrumentos que ampliem a fiscalização e permitam a responsabilização individual e coletiva”, diz Felipe Freitas, consultor do produto sobre tortura e maus tratos em audiências de custódia.
O programa também atua para qualificar o preenchimento do Sistema Audiências de Custódia (SISTAC), ferramenta desenvolvida pelo CNJ em 2015 para facilitar o registro e acompanhamento da política. “A qualificação dos dados raciais via SISTAC será fundamental para compreendermos a sobrerrepresentação negra nas prisões em flagrante, a diferenciação na concessão de medidas cautelares e as denúncias de tortura e de racismo durante a apreensão policial”, explica Rafael Barreto, coordenador adjunto do eixo que trabalha o tema.
Porta de saída
Em relação à porta de saída, foram incluídos quesitos sobre raça e gênero nas metodologias de singularização e de mobilização de pré-egressos desenvolvidas pelo programa, assim como no formulário de atendimento nos Escritórios Sociais para identificação de necessidades específicas. “A abordagem é fundamental não apenas para que identifiquemos como a prisão incide diferencialmente sobre determinados públicos, mas também para que possamos implantar ações específicas de enfrentamento ao racismo”, afirma Sandra Andrade, assistente técnica do Eixo 3.
A temática de raça e gênero também integrou os processos formativos sobre Escritório Social realizados pelo Justiça Presente durante seis encontros regionais entre outubro e novembro. Os encontros reuniram cerca de 300 pessoas das 27 unidades da federação e tiveram o objetivo de alavancar a implantação de uma política nacional voltada aos egressos fomentadas pelo Escritório Social. “O módulo sobre raça me tocou profundamente, pois trouxe incômodo e também luz. Temos diariamente atitudes e pensamentos racistas, mas vejo que estamos em constante mudança e que muitas pessoas, assim como eu, finalmente conseguem perceber e mudar com isso”, afirma Mirian Benini, da Secretaria de Administração Pública de São Paulo, que participou do evento de formação em Vitória (ES).
Débora Zampier
Agência CNJ de Notícias