Os pouco mais de 550 quilômetros que ligam os jardins da capital mineira Belo Horizonte ao arquipélago de Angra dos Reis, no litoral sul fluminense, aproximam as lembranças de infância do tabelião Matheus Faria Carneiro à sua determinação de sensibilizar os frequentadores do cartório que comanda a se tornarem doadores de órgãos. Em dois meses, com o empenho dos sete funcionários, o cartório saiu de zero para 466 Autorizações Eletrônicas de Doação de Órgãos (Aedo) assinadas em agosto e setembro deste ano.
Desde 2016 à frente do Cartório de Registro Civil e Tabelionato de Notas de Angra dos Reis, o tabelião garantiu a conquista do primeiro lugar entre cartórios de todo o país no prêmio criado pelo Colégio Notarial do Brasil (CNB) para estimular a emissão dessas autorizações e ampliar as possibilidades de pessoas que esperam por um órgão na fila de transplantes. De acordo com o Ministério da Saúde, há mais de 43 mil brasileiros nessa situação. Essa fila poderia ser menor, já que apenas quatro de cada 14 pessoas que poderiam ser doadoras efetivamente têm os órgãos transplantados.
A premiação reforça a campanha Um Só Coração: seja vida na vida de alguém, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Desde abril deste ano, a Aedo está disponível on-line para adesão de qualquer pessoa que queira manifestar em vida o desejo de doar todos ou alguns de seus órgãos após seu falecimento. A família do doador, que tem a última palavra para autorizar a retirada dos órgãos, pode ter acesso ao vídeo em que essa vontade foi expressa e ter mais um elemento para tomar a decisão.
O anúncio dos vencedores foi divulgado no site do CNB, na sexta-feira (25/10). Para alcançar o pódio, o cartório de Angra dos Reis se uniu em uma força-tarefa para alcançar o maior número de Aedos assinadas dentro do período para concorrer ao prêmio, de agosto a setembro deste ano. “Paguei horas-extras, dei treinamento e também conversava com quem ia ao cartório para resolver qualquer documento”, detalha. O empenho foi tanto que, segundo Matheus, de cada dez pessoas que entravam no estabelecimento, oito saíram com a Aedo assinada.
“Casais que vinham marcar a data do casamento, naturalmente sensibilizados por esse momento, eram mais propícios a concordar em registar o formulário”, revela Matheus. “No dia do casamento ainda conseguia a adesão dos padrinhos. Aí, eram pelo menos mais quatro doadores”, relembra, com descontração.
A essa conta somam-se o formulário assinado por ele e pela maioria dos funcionários do estabelecimento. “Não alcançamos a totalidade por impedimentos religiosos”, justifica. Apesar do prazo para premiação ter acabado, ele assegura que continuará em campanha para que mais e mais pessoas entendam a importância de se tornarem doadoras de órgãos.
História pessoal
O esforço é justificado por uma história pessoal. O hoje tabelião rememora que, aos quatro anos, perdeu o irmão, de apenas dois anos, por problemas cardíacos. “Não sei se era caso de transplante. Foi um período de muita tristeza para mim e meus pais, convivi com o sofrimento deles”. Alguns anos depois, ele partilhou da felicidade de um amigo quando o pai, que necessitava de transplante de coração, pôde fazer a cirurgia. “Íamos com frequência para o sítio desse meu colega e o pai dele, já operado, jogava bola com a garotada. Graças à doação que recebeu, teve uma sobrevida com saúde”, recorda.
Ele partilha o sentimento de poder fazer o bem, não importa a quem, com a equipe do tabelionato. “Não conseguimos ingressar na campanha da Aedo quando o provimento foi lançado, em abril, porque estávamos de mudança de endereço. No prêmio lançado pelo Colégio Notarial, vi a chance de nos destacarmos e chamar a atenção da nossa comunidade para a necessidade de haver mais e mais doadores de órgãos”, assegura o tabelião.
Para Matheus, mais do que acumular números positivos e receber a premiação, a maior alegria foi ver a equipe engajada e os frequentadores do cartório sensibilizados pela necessidade do outro e pela vida, o que fortalece o reconhecimento do papel social desempenhado pelos tabeliães de notas na prestação de serviços de interesse público.
Para além das Aedos emitidas, o cartório de Angra dos Reis, como tantos outros no Brasil, lida com enormes contrastes sociais. “Ao mesmo tempo que lavro escrituras de imóveis no valor de R$ 20 milhões, atendo cidadãos em busca da certidão de nascimento para regularizar os documentos e trabalhar nos condomínios de luxo”, compara.
Quando constatou o grande número de subnotificações de registros de nascimento entre as populações mais vulneráveis na área de atuação do cartório, organizou mutirões de regularização. “Atendemos indígenas e quilombolas que moram aqui e zeramos o sub-registro”, festeja.
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Pela vida
Além do prêmio, o CNB promoveu, em 19 de outubro, a Jornada Notarial 2024. O evento, em parceria com o CNJ, por meio da Corregedoria Nacional de Justiça, autorizou os tabelionatos de notas de todo o país a realizarem os atos em ambiente externo ao cartório e em dia não útil, garantindo a segurança jurídica necessária a todos os procedimentos. Na ocasião, os interessados em emitir a Aedo puderam preencher o documento pessoalmente, somando 1.256 formulários emitidos em um único dia — 19 em Angra dos Reis.
O documento pode ser feito a qualquer momento, de forma on-line totalmente gratuita no site https://www.aedo.org.br/. Atualmente, quase 15 mil pessoas manifestaram a intenção de serem doadoras. Além do formulário, a emissão da autorização inclui o agendamento de videoconferência do declarante com profissional do cartório para a gravação do vídeo que fará parte da autorização. São essas as imagens que poderão ser apresentadas aos familiares, pelo profissional de saúde, como comprovação de sua vontade de doar todos ou alguns de seus órgãos.
“Sei que muitos familiares não concordam com a doação por alegarem que o parente não havia manifestado a intenção. O vídeo feito para a Aedo comprova essa vontade e deve contribuir para amenizar o luto da família e passando uma mensagem de esperança, mesmo após a morte. É uma forma muito humana de abordar familiares enlutados sobre a doação de órgãos”, avalia o tabelião de Angra dos Reis.
Esforço concentrado
Em busca de mais adesões ao preenchimento do formulário, a Corregedoria Nacional de Justiça recentemente promoveu reunião com os corregedores gerais dos tribunais de Justiça, para que acompanhem o envolvimento dos tabeliões nesse processo. Em breve, encontros semelhantes ocorreram com os presidentes das seccionais do Colégio Notarial e com secretários de saúde. “Temos grande adesão dos profissionais da área de saúde que estão se cadastrando progressivamente para consultar a plataforma e verificar se a pessoa que faleceu é doadora, tendo um argumento importante para dialogar com a família e viabilizar a doação de órgãos”, diz a juíza auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça Liz Rezende, responsável pelo projeto no CNJ.
Caso a pessoa tenha dificuldade ou impossibilidade absoluta de acessar o sistema, ela pode procurar um dos mais de oito mil cartórios de notas e solicitar o acesso à plataforma do e-Notariado. Entre as dificuldades, está a impossibilidade de uso de recursos digitais ou de documento nato-digital, que é importante e imprescindível para fazer a declaração eletrônica. A qualquer momento, o doador que tenha autorizado a doação pode rever sua decisão e solicitar ao cartório a vontade de deixar de ser doador, caso queira.
Texto: Margareth Lourenço
Edição: Sarah Barros
Agência CNJ de Notícias