As exigências específicas criadas por instituições bancárias, por cartórios e pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) são a principal causa das ações de interdição ou de curatela de Pessoas com Deficiência (PcD). A constatação foi feita pelo estudo empírico das demandas envolvendo PcD: análise de dados para a proposição de ações eficientes, levantamento solicitado pelo Departamento de Pesquisas Jurídicas (DPJ) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e apresentado na segunda-feira (14/8), durante a 4.ª Reunião do Observatório dos Direitos Humanos do Poder Judiciário (ODH) na gestão presidida pela ministra Rosa Weber.
Coordenado pela pesquisadora Luciana Romano Morilas, o estudo ouviu pessoas com deficiência e operadores do Direito de todas as regiões do país. Para os pesquisadores envolvidos, o bem-estar de PcD fica submetido a questões patrimoniais de gerenciamento dos valores a eles devidos. A aplicação de instrumentos como a tomada de decisão apoiada e a avaliação biopsicossocial está aquém do esperado, mesmo após oito anos de vigência da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI).
O Brasil é signatário, desde o ano de 2009, da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU). Em 2015, o país adotou a Lei n. 13.146 (LBI), que busca assegurar e promover, em igualdade de condições com as demais pessoas, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoas com deficiência, com o objetivo da sua inclusão social e promoção da cidadania.
Amostra da pesquisa
A equipe de pesquisa, composta pelos professores Ildeberto Rodello, Evandro Ribeiro e Ednéia Rocha, analisou dados de processos judiciais referentes à curatela e à tomada de decisão apoiada de todos os 27 Tribunais de Justiça brasileiros, entre os anos de 2011 e 2021 (5 anos antes e 5 anos depois da vigência da LBI). Também foram analisados processos que tramitaram na Justiça Federal nos anos de 2020 a 2022 referentes ao assunto “pessoa com deficiência”.
O estudo revelou que, após a entrada em vigor da LBI, houve poucas mudanças nos processos de curatela, nos quais o juiz instrui uma equipe multiprofissional para analisar as necessidades de uma pessoa adulta. O estudo mostra também redução na quantidade de ações de interdição. Outro achado foi a percepção positiva de magistrados, membros do Ministério Público, advogados e defensores públicos e das PcD, além de seus tutores ou curadores, sobre a aplicação da LBI pelo Judiciário, quanto à necessidade e aos avanços da lei, mas é negativa quanto à sua aplicabilidade.
“Percebemos que o Judiciário vem envidando esforços para garantir a aplicação da LBI, porém os entraves, principalmente financeiros, acabam dificultando a implementação da avaliação biopsicossocial e a capacitação de magistrados, servidores e todos os operadores do direito envolvidos”, afirmou a pesquisadora Luciana Romano Morilas.
Outro aspecto apontado na pesquisa é o das barreiras físicas e de deslocamento para que essas pessoas estejam presentes em audiências ou em perícias obrigatórias e, por outro lado, o impacto do advento das audiências por videoconferências, mais popularizadas por conta da covid-19. “Essas audiências facilitaram o acesso à Justiça, o que gerou um aumento nos processos iniciados depois de 2019 por ocasião da covid-19”, ressaltou Morilas.
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Propostas
Com base na análise dos dados e das entrevistas realizadas, o estudo indica algumas propostas para melhorar o serviço prestado às pessoas com deficiência pelo Sistema de Justiça e para a implementação de novas políticas. Sobre a capacitação de pessoal para lidar com as diversas situações ligadas à inclusão, uma das sugestões é que o tema seja obrigatório nas faculdades de Direito e em concursos de ingresso nas carreiras jurídicas, incluindo o Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), além de tema de cursos de capacitação de magistrados, servidores, e terceirizados.
O documento prevê a criação de equipes multidisciplinares dentro do próprio Judiciário para a efetividade de políticas judiciárias, além da interlocução com serviços burocráticos que exigem a curatela em desrespeito à lei, além da atualização dos peritos e médicos para a emissão de laudos adequados e a efetiva regulamentação do § 2.º do art. 2.º da LBI, que prevê, ao Poder Executivo, a disponibilização de instrumentos para avaliação de deficiências.
A íntegra do estudo está disponível na página das publicações do CNJ
Capacidade jurídica
O evento contou com a manifestação de Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, advogada da Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Rede-In) que apresentou aspectos teóricos que envolvem os principais desafios para a implementação do novo paradigma da capacidade jurídica da PcD, instituído pelo artigo 12 da Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência.
Atuante na causa em prol das pessoas com deficiência há mais de 30 anos, Ana Cláudia fez um relato dos artigos do tratado, destacando que a Convenção reconhece que “todas as pessoas, independentemente de sua deficiência ou da sua aptidão para tomar decisões, possuem uma capacidade jurídica inerente”. Contudo, Ana Cláudia informou que, mesmo com as inserções de dispositivos legais que ampliem os direitos das pessoas com deficiência, principalmente com relação as hipóteses de curatela, a efetivação desses direitos está distante de ser alcançada.
Ana Cláudia citou as evidências de maus-tratos em uma instituição de acolhimento no Ceará, em que foram encontradas cerca de 30 pessoas com deficiência intelectual que eram submetidas a condições desumanas em celas minúsculas.
Ana Claudia propõe, entre outras ações, a produção de campanhas de conscientização, em todo território nacional, abordando temas como o reconhecimento de igual capacidade às pessoas com deficiência; as alterações promovidas pela Lei n. 13.146/2014 em relação à capacidade jurídica e à acessibilidade; o respeito pela dignidade das pessoas com deficiência; e o combate ao capacitismo.
Também estiveram entre as propostas a publicação de manual acessível sobre a instituição do novo regime, os direitos jurídicos das pessoas com deficiência tomar decisões com apoios necessários e a possibilidade de reclamar e representar contra servidores do Poder Judiciário e dos cartórios perante o CNJ. A advogada pediu ainda a tradução para linguagem simples dos processos e decisões sobre as pessoas com deficiência para que elas tenham pleno entendimento das sentenças e julgados.
Povos indígenas
A 4.ª Reunião do Observatório dos Direitos Humanos do Poder Judiciário – gestão 2022-2024 também tratou sobre direitos indígenas. A representante da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns (Comissão Arns) Claudia Costin apresentou o relatório da visita ao estado do Pará, realizada em abril, no qual a Comissão ouviu vítimas, autoridades estaduais e federais sobre denúncias de assassinatos de membros de povos indígenas e não indígenas, feitas por defensores de comunidades vulneráveis do Pará.
Entre as propostas de ação, estão a urgência de revitalizar o programa de proteção aos defensores de direitos humanos; a criação e a regularização de projetos de desenvolvimento sustentável; e formas de solucionar a causa da comunidade indígena, cujos membros têm sido impedidos de adquirir mercadorias e ir à escola, ter acesso a serviços de saúde e benefícios sociais na região. “É preciso conter a escalada do ódio e da intolerância. Não é admissível que a Justiça não seja feita”, questionou.
A desembargadora Carmem Gonzalez, auxiliar da Presidência do CNJ e coordenadora do Observatório, destacou que, na 1ª Itinerância Cooperativa na Amazônia Legal, realizada em São Félix do Xingu (PA), o CNJ reuniu o Sistema de Justiça e diversos órgãos do Poder Executivo, para um trabalho conjunto durante cinco dias. “Foi impressionante perceber a falta da presença do Estado. Mesmo tendo uma Vara do Trabalho, as pessoas não ingressam com reclamações trabalhistas por medo. A unidade da Justiça Federal mais próxima é a de Redenção, muito distante, o que dificulta sobremaneira o acesso à Justiça. Aquela região precisa do olhar atento do Poder Judiciário e do Executivo, para que seja o início de um processo em que os cidadãos da Amazônia Legal tenham acesso aos serviços judiciais e à políticas públicas, contem efetivamente com a presença do Estado”, ressaltou.
Já as advogadas Andressa Pataxó, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental (ISA), explicaram como a Consulta Livre, Prévia e Informada, estabelecida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), representa o diálogo e a simetria entre os povos e o Estado, mas que ainda não encontrou amparo, especialmente no Legislativo e no Executivo.
As advogadas ressaltaram que medidas, decisões, programas de governo e iniciativas legislativas são aprovadas sem a devida informação, escuta e consideração aos povos e comunidades afetados. “É como entrar na sua casa, fazer uma bagunça e você não poder se manifestar”, disse Andressa Pataxó, para exemplificar o que representa, por exemplo, passar uma estrada no meio de uma comunidade indígena, sem levar em consideração os efeitos para as pessoas que vivem no local. Juliana de Paula Batista ressaltou que a gestão da ministra Rosa Weber inaugurou um espaço de diálogo com a sociedade civil, com aproximação e atuação proativa. “Pela primeira vez um yanomami pode ver e estar próximo de um membro do Judiciário, e isso mostra que estamos quebrando os muros entre os tribunais e a sociedade, o que é uma conquista”, disse, referindo-se à presença da presidente do STF e do CNJ em São Gabriel da Cachoeira (AM) por ocasião da entrega da primeira Constituição traduzida para uma língua indígena, o Nhangatu.
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Texto: Juliene Andrade, Lenir Camimura e Ana Moura
Edição: Sarah Barros
Agência CNJ de Notícias