Artigo: Pela memória do Poder Judiciário

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Foto: TRT2
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A partir de 2020, os órgãos do Poder Judiciário nacional têm uma data especial – e única – para celebrarem suas memórias. Trata-se do dia 10 de maio, data instituída, por meio da Resolução nº 316 de 22 de abril de 2020, do Conselho Nacional de Justiça, como o Dia da Memória do Poder Judiciário. Uma espécie de presente de aniversário antecipado para a Justiça do Trabalho da 2ª Região, que completou 79 anos no dia 1º de maio.

A data faz referência ao Alvará Régio de 10 de maio de 1808, que elevou a Relação do Rio de Janeiro à condição de Casa de Suplicação do Brasil (a íntegra de tal documento pode ser lida na página 33 da “Colecção das Leis do Brasil de 1808”). A Casa de Relação do Rio (criada em 1751) e da Bahia (de 1609) eram os dois únicos tribunais existentes no território brasileiro até aquele momento. Com a transferência da Família Real para o Brasil, que se tornou sede da Corte, era necessária uma grande reforma na Colônia, de modo a deixá-la apta a funcionar administrativa e politicamente.

Até então, a Casa de Suplicação de Lisboa era o órgão máximo da Justiça portuguesa e assim se tornou também no Brasil, marcando o início da independência judiciária da Colônia em relação a Portugal, já que, a partir de sua instalação, não mais aconteceu o direcionamento de grande parte dos recursos a Lisboa, funcionando o órgão brasileiro como última instância recursal.

“(…) A Relação desta cidade se denominará Casa da Suplicação do Brasil, e será considerada como Superior Tribunal de Justiça para se findarem ali todos os pleitos em última instância, por maior que seja o seu valor, sem que das últimas sentenças proferidas em qualquer das Mesas da sobredita Casa se possa interpor outro recurso, que não seja o das Revistas, nos termos restritos do que se acha disposto nas Minhas Ordenações, Leis e mais Disposições. E terão os Ministros a mesma alçada que têm os da Casa da Suplicação de Lisboa”.

Alvará Régio de 10 de maio de 1808, assinado pelo Príncipe Regente D. João VI

A Casa de Suplicação é vista por estudiosos como a precursora do Supremo Tribunal Federal. Era composta por 23 juízes, divididos em duas turmas de julgamento: uma para apelações criminais e outra para apelações cíveis. Acima delas, ficava a Mesa Grande, o equivalente ao Pleno, reunindo todos os juízes. Era presidida pelo regedor da Justiça. O primeiro regedor brasileiro foi João Ignacio da Cunha, o Visconde de Alcântara, empossado em 1824. Em 1828 a Casa de Suplicação deu lugar ao Supremo Tribunal de Justiça, mas só deixou de existir em 1833, com a restauração da Casa de Relação do Rio de Janeiro. O STF surgiria apenas em 1891, com o início do Período Republicano.

Uma grande conquista

Dia da Memória do Poder Judiciário é uma grande conquista para os setores de Arquivo, Biblioteca, Gestão Documental e Memória Institucional do Poder Judiciário. É também o resultado de um esforço conjunto de servidores e magistrados dos mais diversos órgãos do Judiciário nacional, interessados na pesquisa, preservação e divulgação de nossa história, e que, juntos, têm o Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário (Proname) como guia. O programa, criado em 2008, tem como missão organizar e disponibilizar a informação, além de preservar “nossos registros judiciais arquivísticos, museológicos e biblioteconômicos, materiais ou imateriais, onde estão fatos que atingiram e marcaram a sociedade ao longo dos anos”.

O Poder Judiciário acompanha a sociedade há séculos, sendo testemunha de suas transformações políticas, sociais, econômicas, culturais e tecnológicas. Exerce também um papel importante na manutenção dos direitos dos cidadãos brasileiros e na defesa dos valores democráticos que integram nossa Constituição, por isso, não só preservar, mas também divulgar a memória de pessoas e instituições que colaboraram para a consolidação desses princípios, torna-se questão fundamental para que aquilo que já foi conquistado não se perda no esquecimento ou na omissão.

Preservar a memória da nossa Justiça é também contribuir para a conservação da história da sociedade brasileira. Guardar, preservar e rememorar é manter vivo o patrimônio cultural histórico de nosso país.

Ter uma data que nos faça olhar para a nossa história é importante não só como reconhecimento do trabalho desempenhado pelos mais diversos setores dentro do Poder Judiciário, mas como forma de garantir a preservação de nossos processos, de nossa história, de nossos personagens e das narrativas que estão dentro dos documentos que guardamos. Memórias que pertencem à sociedade brasileira.

Perdemos muitos documentos e objetos ao longo dos anos. Por falta de organização, verba, incentivo ou ainda um setor que fosse responsável por tal tarefa. E enquanto alguns tribunais não contavam (alguns ainda não contam!) com uma estrutura adequada para tanto, outros viam seus recursos sendo limitados ao longo do tempo. O Tribunal Superior Eleitoral é exemplo disso. Patrono de um acervo de extrema riqueza e evidente relevância histórica, viu seu “Museu do Voto” ser fechado por quase duas vezes. O que o salvou definitivamente foi sua institucionalização, por meio de uma portaria de 2011, garantindo, assim, sua preservação.

Por isso, termos uma data instituída por meio de uma resolução é motivo para comemorarmos. Revela a preocupação que o CNJ tem em cuidar de nossa memória. Em preservar a nossa história. Em mostrar o quanto podemos aprender com nossos erros e acertos do passado. Mostra-nos, ainda, que é hora, sim, de voltarmos a privilegiar três aspectos fundamentais para a construção dos indivíduos: cultura, memória e educação. Três itens que acabam por estar em constante conexão, mas que, rotineiramente, são deixados de lado, relegados a um segundo plano.

Um vasto acervo

Hoje em dia, o TRT-2 tem um dos mais ricos, vastos e organizados acervos de órgãos públicos do país. Nosso arquivo é referência para diversos tribunais. No entanto, falta-nos conhecer o que guardamos. É essa a função do Centro de Memória do TRT-2. Desde janeiro de 2018, trabalhamos com o objetivo de conhecer nosso acervo, deixá-lo disponível para consulta e acessível, buscando criar formas de divulgação de seu conteúdo, por meio dos mais diversos canais.

Estamos, no entanto, no maior tribunal trabalhista do país, órgão que recebe mais de 325 mil novos processos por ano. Por mais que exista um setor responsável pela gestão documental, a tarefa de analisar todos os documentos que passam pelo Arquivo é árdua. Temos servidores das mais diversas formações acadêmicas (advogados, historiadores, arquivistas), que têm como função ler, analisar e separar os processos para guarda permanente. Documentos que passarão a integrar nosso acervo histórico, histórias que poderão ser contadas e ouvidas novamente.

Falta-nos, porém, um auxílio. O auxílio daqueles que têm todos os dias em suas mãos processos que são visivelmente – ou potencialmente – interessantes. Que chamam sua atenção. Que fazem com que sejam comentados. São esses os processos que também queremos. Por isso contamos com você, servidor e magistrado do TRT-2, advogados que aqui militam, partes interessadas, estudantes… Você também pode nos ajudar.

O Selo Acervo Histórico

A memória de um órgão ou instituição só alcança sua finalidade, se, no processo de sua reconstituição e preservação, participam todos os atores sociais, independentemente de suas funções ou posições hierárquicas. Trata-se de uma memória coletiva, que carrega os valores de uma sociedade, que evidencia os esforços e conquistas de todos aqueles envolvidos nos fatos e feitos que tornaram o Judiciário Brasileiro um dos pilares da democracia brasileira. Por isso, o Centro de Memória do TRT-2 sempre enfatiza a importância da contribuição e participação daqueles envolvidos no cotidiano da Justiça do Trabalho.

E é por isso que temos o Selo Acervo Histórico. Instituído em 2018, o selo convida cada um a participar da construção e preservação de nossa memória, identificando processos relevantes – pelos mais diversos motivos: parte, porte, valores, momento histórico. Em época de pandemia, pense em quantos novos casos não vão aparecer e que podem nos ajudar a contar, daqui algumas décadas, o que aconteceu com nosso país, com os nossos trabalhadores, no ano de 2020 foram afetados. O que eles pleiteavam? A Justiça do Trabalho não existia em 1918, quando a gripe espanhola espalhou pânico em todo o mundo, deixando mais de 50 milhões de mortos mas o que encontraríamos em processos dessa época, se existisse?

Recentemente, o selo entrou no PJe como um simples recurso de identificação (aqui você confere um vídeo feito pela Secom que fala um pouco sobre o selo e sobre como fazer a identificação de um processo com valor histórico). Assim, processos eletrônicos também podem facilmente ser identificados como de relevante conteúdo para nosso acervo permanente.

Normalmente relacionamos a noção de acervo e preservação, com documentos físicos, processos em papel amarelado e desgastado, guardados em enormes prédios de arquivo. Contudo, é preciso compreendermos que todo o acervo digital do Judiciário Brasileiro, que nos dias de hoje contempla a vasta maioria dos processos em tramitação, compõem a história que está sendo construída hoje, e que no futuro, constituirá um montante tão grande de dados, que parte precisará ser eliminado. Deixar escapar aquele documento que ilustra, prova e representa fatos importantes, é perder um traço da história, que mais tarde deixará uma lacuna  na memória a ser reconstituída e contada.

Documentos, objetos, direitos e pessoas

Conhecer a nossa história é conhecer a história da Justiça do Trabalho e do próprio Poder Judiciário. Por meio dela, falamos sobre a evolução dos métodos de trabalho, dos direitos trabalhistas, das conquistas e avanços obtidos ao longo do tempo. Falamos não só de direitos, mas também sobre o nosso entorno, sobre os elementos que podem ser identificados dentro dos processos. Falamos sobre cidades, sobre empresas, sobre hábitos e sobre comunicação. Falamos também sobre pessoas: servidores e magistrados que muito se dedicaram – e ainda se dedicam – para ajudar a garantir uma efetiva prestação jurisdicional a uma população sedenta de justiça. Falamos sobre advogados, sindicalistas, procuradores. Falamos sobre os personagens que estão dentro de processos, como é o caso da Velha Vicentina, reclamante do mais antigo processo que existe em nosso acervo permanente – e obtido como resultado da campanha do Selo Acervo Histórico, com o auxílio dos colegas da 1ª Vara do Trabalho da Capital.

Conhecer a nossa história é, assim, etapa fundamental para nos aperfeiçoarmos como instituição, para conhecermos aqueles que nos ajudaram a construir nossos órgãos, para consolidarmos nossa identidade – como membros da Justiça do Trabalho, como parte integrante do Poder Judiciário, como elemento essencial da sociedade brasileira.

“A preservação da memória institucional judiciária não constitui apenas um tributo ao passado, mas sim um compromisso e um dever fundamental com as futuras gerações, que têm o direito de conhecer a sua história e, por via de consequência, a sua própria identidade”.

Ministro Dias Toffoli, em voto nos autos do Ato Normativo 0002008-76.2020.2.00.0000

Zelar por nosso acervo, dar visibilidade a nossa história

O Dia da Memória do Poder Judiciário foi criado com a intenção de fomentar a atividade de preservação da história dos vários tribunais do país. A resolução que o institui prevê, inclusive, a realização de um encontro anual, reunindo servidores, magistrados, membros da sociedade civil e profissionais das áreas de História, Arquivologia, Museologia, Biblioteconomia, entre outros interessados, a ser realizada preferencialmente na semana do dia 10 de maio, com o incentivo do próprio CNJ. Tal tipo de encontro acontece desde 2006, de forma pioneira, no âmbito da Justiça do Trabalho com o Fórum Nacional Permanente em Defesa da Memória da Justiça do Trabalho – Memojutra (evento que o TRT-2 sediou em 2019).

Neste ano de 2020, que institui o Dia da Memória, não teremos comemorações físicas. Por isso, buscamos outras formas de divulgação. Este simples texto, que exalta o que pode parecer um fato corriqueiro para alguns, é um exemplo. Como servidora de um Centro de Memória, que trabalha pelo reconhecimento da importância da preservação de nossa história; como parte de um grupo dedicado a trazer fatos e temas que podem ter ficado no esquecimento por algum motivo; como membro da sociedade brasileira que reconhece a nossa pouca capacidade para lembrarmos de nossas conquistas como nação, nossos erros como cidadãos e nossas tentativas como indivíduos, fico muito feliz. É, para mim, uma grande conquista. E me incentiva a pesquisar mais, a escrever mais, a criar mais. A tentar outras e novas formas de trabalharmos a nossa história.

Preservar nossa memória não é apenas guardar documentos. Mas divulgá-los, torná-los públicos, acessíveis, compreensíveis, interessantes. Tornar esse volume monstruoso de documentos – processos e documentos administrativo, fotos, memórias pessoais – em produtos dos mais diversos gêneros. E, com isso, tentar conscientizar os públicos quanto à importância da conservação e do adequado tratamento de arquivos judiciais, de museus, de memoriais e de bibliotecas do Poder Judiciário. Não somos atividade-fim, mas trabalhamos com ela e por ela. Sem ela, não existiríamos. O que seria de nossos acervos sem processos? Quais seriam as nossas histórias sem as pessoas? Daí a importância de um setor responsável por reconstituir histórias, descrever processos, divulgar a memória e a história!

E é por isso que o Centro de Memória do TRT-2 busca atuar em frentes diversas de trabalho. Realizamos, sim, pesquisas, mas buscamos criar projetos em plataformas diferentes: produção textual, imagética, exposições, campanhas institucionais, participação em seminários, organização de encontros entre profissionais das áreas correlatas e interessados, atendimento a pesquisadores – internos e externos. Temos plena consciência quanto à riqueza de nosso acervo. Como diria nosso colega Belmiro Fleming, “nosso trabalho é um garimpo constante, encontrando pequenas jóias empoeiradas, que tentamos polir, limpar e mostrar a beleza de sua história para a sociedade”. Nosso objetivo, no entanto, é mostrar isso às pessoas, aos mais diversos públicos.

Ao longo dos dois últimos anos, produzimos trabalhos que nos auxiliam a contar algumas dessas curiosidades, que ficaram no tempo.

Falamos sobre fatos como:

Falamos ainda sobre personagens importantes, como:

Ou ainda:

E a história de processos, como:

Além, claro, das nossas entrevistas da série “Memórias Narradas”, registros de história oral, feitas com servidores e magistrados aposentados:

A partir de julho, as publicações dos vídeos do projeto “Memórias Narradas” serão retomadas.

Nesse difícil momento em que vivemos, não só de pandemia, mas de contenção máxima de despesas, a criatividade e o auxílio mútuo entre colegas, entre setores e entre órgãos e instituições – públicas e privadas – é fundamental para ampliarmos nossos trabalhos. É essa também uma das competências estabelecidas pelo Ato GP nº 40/2018, que rege nosso setor.

O próprio artigo 2º da Resolução nº 326/2020 fala sobre o fomento das atividades de resgate da história, envolvendo promoção de eventos, organização de mostras, produção de textos acadêmicos e literários, realização de visitas guiadas às dependências dos tribunais. A resolução legitima nosso trabalho, reforça a importância de nossas atribuições e nos dá ânimo novo para continuarmos nossa trajetória institucional.

Comparamos nosso trabalho ao de formiguinhas, que passo a passo, dia a dia, por meio de pequenas ações, tentam sensibilizar nossos públicos sobre a importância da preservação de nossa história, sobre o inestimável papel de cada um na trajetória da instituição, sobre a relevância de trabalharmos juntos em prol do órgão e da sociedade. Somos todos servidores públicos e, juntos, construímos a nossa história e a história de nosso país.

Para saber mais sobre a criação do Dia da Memória, confira o artigo do juiz do TJ-SP, Carlos Alexandre Böttcher, publicado no Conjur. O magistrado é membro do Comitê do Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário (Proname) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e da Câmara Setorial de Arquivos Judiciários (CSAJ) do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), tendo sido um dos principais responsáveis pela institucionalização do Dia da Memória do Poder Judiciário.

Fonte: Memórias Trabalhistas/TRT2