Apoio às vítimas é estratégia central de enfrentamento ao trabalho análogo à escravidão no Brasil

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Em painel do Seminário Inclusão Social de Vítimas Resgatadas do Trabalho Análogo à Escravidão, compuseram a mesa: Isadora Brandão Araújo da Silva, do MDHC; Guadalupe Louro Couto, do MPT; Vitor Araújo Filgueiras, da Universidade Federal da Bahia; e Yasmin França, do MPTRJ. FOTO: Foto: G.Dettmar/Ag.CNJ
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A ambiciosa e, ao mesmo tempo, indispensável mudança de uma triste e vergonhosa realidade brasileira pautou a manhã da sexta-feira (23/6) dos participantes do Seminário Inclusão Social de Vítimas Resgatadas do Trabalho Análogo à Escravidão. As apresentações de seis painelistas tiveram fundamento na análise de problema que tem raízes seculares, mas transcendeu para a busca de soluções que vão além do momento em que os representantes do poder público constatam a submissão de seres humanos a condições degradantes em troca de um salário insuficiente até mesmo para saldar dívidas com os patrões. O depoimento de uma vítima, que hoje atua como dirigente de uma associação de produtores rurais, serviu como estímulo, uma inspiração para mostrar que a superação é viável.

“Espero que muita gente que esteja passando por esse problema seja resgatada e tenha a mesma oportunidade que nós tivemos”, disse, ao encerrar um depoimento interrompido pelo choro, Camila Ribeiro Dias. Ela é a atual diretora administrativa da Associação Vida Pós-Resgate de Aracatu (BA), uma organização que reúne trabalhadores que foram vítimas do trabalho análogo à escravidão. O grupo, que está empenhado na produção do próprio alimento e na geração de renda, é um sopro de esperança no município onde vivem 13 mil pessoas, que têm poucas alternativas de trabalho. “Até hoje, o dinheiro que chega na cidade é só aquele que as pessoas conseguem na colheita de café.”

Em 2021, depois de viajar por 27 horas, Camila deixou a cidade natal com o filho e o marido para trabalhar em cafezais do norte de São Paulo, no município de Pedregulho. A realidade que encontrou foi bem diferente do que ouviu do agenciador, o tal, na gíria, gato: em vez do cômodo exclusivo para a família, teve de dividir o quarto com outras 16 pessoas. Para a higiene pessoal no único banheiro disponível, porque o fornecimento de água não era contínuo, a fila durava até a meia-noite. Na cozinha, oito fogões e botijões dividiam o espaço com dois beliches, as acomodações dos rapazes solteiros que viviam na mesma casa onde, no total, moravam 26 pessoas, entre trabalhadores e seus filhos. No relato, há detalhes sobre sede, alimentação inadequada, uso de lenha para cozinhar para poupar gás, condições de moradia indignas e jornadas de trabalho exaustivas.

Reincidência

A transformação na vida de Camila, com a nova perspectiva de existência, está diretamente ligada ao Projeto Vida Pós-Resgate, que leva adiante ações semelhantes na cidade de Una, também na Bahia, e experiências incipientes em outros dois municípios da região sizaleira do estado. “Há altíssimo índice de reincidência no trabalho escravo ligado à necessidade coercitiva, do ponto de vista coletivo, de que as pessoas têm de se submeter novamente ao mercado de trabalho”, explicou coordenador da iniciativa, o também painelista e professor de economia da Universidade Federal da Bahia, Vitor Araújo Filgeiras. “O pensamento vigente é o seguinte: ou você trabalha, ou você não vive.” O acadêmico defende, para o enfrentamento estrutural do trabalho escravo, a destinação dos recursos oriundos de ações de danos morais para a compra de terrenos que abrigariam vítimas resgatadas.

Agora, o Vida Pós-Resgate ganhou apoio institucional, está a caminho de firmar parceria com o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. “Há a compreensão de que o esse projeto consegue congregar diversas dimensões importantes, inclusive o uso racional e sustentável dos bens da natureza, não se trata apenas de organizar as pessoas”, avaliou a secretária Nacional dos Direitos Humanos, Isadora Brandão Araújo da Silva. “Aliar o enfrentamento ao trabalho escravo com uma forma de distribuição da terra em nosso país é uma combinação que nos parece, também, muito revolucionária”, disse a painelista ao descrever o projeto como um modelo de política pública que considera a complexidade da realidade, desde a fiscalização até o momento do pós-resgate.

Uma outra experiência de apoio a vítimas resgatadas do trabalho análogo à escravidão participou da programação do Seminário. A psicóloga e coordenadora do Projeto Ação Integrada do Rio de Janeiro, Yasmim França, compartilhou como a organização pratica acompanhamento emergencial, continuado e multiprofissional que estimula o pensamento crítico, a desalienação e leva em conta questões de gênero, de ração, a origem das pessoas. “A inserção num trabalho digno é uma ponta num processo que envolve muita gente, um trabalho crítico de muita responsabilidade, que inclui, inclusive, arte e a cultura”, destacou a coordenadora responsável por equipe que, entre 2020 a 2022, se dedicou a 3.970 atendimentos.

O Ação Integrada, no Rio de Janeiro, presta assistência por meio do fornecimento de diárias em hotéis, de roupas, de alimentos e da orientação para as pessoas conseguirem os documentos pessoais. Em janeiro deste ano, a instituição lançou publicação para orientar profissionais da comunicação a lidar com tema complexo, que demanda entendimento amplo das realidades social e cultural do Brasil.

Texto: Luis Cláudio Cicci 
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias

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