O Estatuto do Idoso, Lei n. 10.741/2003, que regulamentou uma série de dispositivos legais para garantir os direitos às pessoas idosas, completou, em outubro, 15 anos de vigência. A lei veio para assegurar a dignidade de importante e crescente segmento da população: em cinco anos, de 2012 a 2017, a população brasileira com mais de 60 anos passou de 25,4 milhões para 30,2 milhões, o que representou aumento de 18%, mantendo a tendência de envelhecimento do país.
Em meio a este cenário, estão em andamento diversas iniciativas do Poder Judiciário para efetivar os direitos dos idosos pelo país. Os casos que envolvem crimes contra idosos tramitam, preferencialmente, nas 179 varas com competência para julgar este tipo de processo, que também julgam causas de violência doméstica, família, infância e juventude.
Em 2007, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a Recomendação n. 14 para que os tribunais de todo o país adotem como prioridade os processos e procedimentos que tenham pessoas idosas como parte, em qualquer instância da Justiça. A norma recomenda, ainda, que os tribunais promovam seminários, criem grupos de estudos ou medidas afins com o objetivo de apontar soluções para o efetivo cumprimento do Estatuto do Idoso, especialmente quanto à celeridade dos processos.
No período de 2015 a 2017, ingressaram no Poder Judiciário 28.965 processos de crimes enquadrados nos artigos 96 a 108 do Estatuto do Idoso. Entre os crimes previstos nesses dispositivos, estão: “abandonar o idoso em hospitais”, “discriminar pessoa idosa” e “apropriar-se de ou desviar bens, proventos, pensão ou qualquer outro rendimento do idoso”.
Os dados foram extraídos do banco de dados do Relatório Justiça em Números, elaborado pelo CNJ, e mostram os casos novos ingressados nestes anos sobre o tema e, portanto, não se referem ao total de processos em tramitação. Somente em 2017, foram, pelo menos, 9.015 novas ações sobre violações a direitos de idosos. Há possibilidade de o número ser muito maior, já que pode haver processos que, apesar de tratarem do tema, não foram identificados dessa forma. O CNJ não possui dados sobre como foram as decisões nestes processos.
Dados do Disque Direitos Humanos, do Ministério dos Direitos Humanos, mostram que, em 2017, foram registradas 33.133 denúncias de violação dos direitos das pessoas idosas – em 2012, houve 23.548 registros. Os tipos de violações mais recorrentes são negligência, violência psicológica, abuso financeiro e violência física.
Em Brasília, Central Judicial do Idoso
Criada há dez anos, a Central Judicial do Idoso, em Brasília, é um projeto do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), do Ministério Público do DF e da Defensoria Pública. O objetivo principal é garantir a efetiva aplicação do Estatuto do Idoso, no acolhimento aos idosos que têm seus direitos ameaçados ou violados e que necessitam de orientação e, sobretudo, proteção, na esfera da Justiça.
Qualquer cidadão pode fazer denúncias junto a Central – para o caso de denúncias anônimas, é preciso utilizar o Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos. Nadja Naria Oliveira da Silva, supervisora do Núcleo de Acolhimento da Central Judicial do Idoso, conta que é comum que as pessoas se refiram ao local como “estatuto do idoso”. “Eles dizem: eu vou lá no estatuto para me proteger!”, conta ela, que trabalha no local há três anos e está acostumada a atender casos de violência e maus-tratos contra idosos.
Nadja Naria Oliveira da Silva, supervisora do Núcleo de Acolhimento da Central Judicial do Idoso. Foto: Luiz Silveira/CNJ
Uma das ações mais comuns da Central é a de afastamento do lar, que acontece quando há uma pessoa, geralmente filho ou neto, perturbando o idoso e deixando-o desconfortável. Ao constatar a situação, a Central emite documento informando à pessoa que tem o prazo de 30 dias para sair. Outra situação comum é quando o idoso é abandonado em um hospital e começa a apresentar um quadro de transtorno mental. Quando não existem parentes, a Central aciona o Ministério Público.
Muitas vezes, a Central precisa encaminhar o caso para a Delegacia especial de repressão aos crimes por discriminação racial, religiosa ou por orientação sexual ou contra a pessoa idosa ou com deficiência (Decrim). Foi o que ocorreu em um dos casos que mais marcou Nadja: um homem procurou a Central para dizer que seu amigo “da igreja”, um senhor idoso, estava sendo explorado pela cuidadora. Ao visitar a residência, a Central confirmou que a cuidadora se apossava de todo o dinheiro do idoso, que não tinha mais acesso à sua aposentadoria.
Além disso, a cuidadora convenceu o idoso a passar-lhe a documentação de propriedade do carro e, depois de obter a senha do cartão bancário, passou a utilizá-lo. A cuidadora confessou o crime e foi afastada da casa do idoso, que seguiu para uma instituição de repouso. “Fiquei com muita pena porque ele foi totalmente roubado e, ao mesmo tempo, queria poupar a cuidadora. O tempo todo pedia para não fazerem nada de mal contra ela”, diz Nadja.
De acordo com dados da Central do TJDFT, dois terços dos agressores de pessoas em idade avançada são filhos ou cônjuges que quase sempre moram na mesma casa da vítima e são dependentes financeiramente dela. São recorrentes ainda o abuso de álcool e drogas pelos membros da família ou pelo próprio idoso, a situação de violência familiar que atravessa gerações, além do isolamento social do idoso e padecimento por depressão ou outros sofrimentos psiquiátricos.
Mediação familiar para garantir os cuidados
Uma das frentes em que a Central Judiciária do Idoso atua é a mediação familiar pré-processual, geralmente com o objetivo de que os filhos ou responsáveis pelo idoso cheguem em um acordo para garantir os cuidados. Em 2017, a Central realizou 198 sessões de mediação, que envolveram 478 pessoas. “Quando percebemos que o caso demanda diálogo em família para construção de um acordo em benefício do idoso encaminhamos para o núcleo de mediação”, diz Ana Paula Martins de Campos, supervisora do núcleo de mediação.
Nos casos em que os idosos ainda estão lúcidos, podem optar por participar da reunião. De acordo com Ana Paula, normalmente os filhos conseguem estabelecer uma rotina de cuidados e de auxílio financeiro. O acordo é formalizado e assinado pelo juiz. Em caso de descumprimento, é possível ingressar com ação judicial. “Há casos em que a família quer dividir os bens com o idoso ainda vivo. Alertamos que isso é crime. Também fazemos mediação para evitar que seja ajuizada uma ação de afastamento, tentando dialogar para estabelecer regras de convivência”, diz Ana Paula. Ela atua na mediação familiar para proteção dos idosos desde 2011 e afirma ser comum que os casos envolvam violência financeira.
Em um caso recente, a filha tinha assumido os cuidados com o pai, que recebia uma aposentadoria de cerca de R$ 30 mil e estava em estado de demência. A equipe fez uma visita à casa em que eles moravam e constatou uma situação de imundície, com baratas por todos os lados e comida inadequada. “Constatamos que o idoso estava em risco e encaminhamos para o Ministério Público. A filha perdeu a curatela”, conta Ana Paula. O mais surpreendente foi que, anos depois, outra denúncia envolvendo novamente a mesma pessoa – desta vez, a falta de cuidados era com a mãe. A idosa, que ganhava apenas um salário mínimo, foi expulsa de casa e estava dormindo na rua. “Conseguimos acolhimento emergencial e a filha não demonstrou interesse em cuidar da mãe, alegando que isso seria uma tarefa do Estado”, diz Ana Paula.
Dificuldade de punir o agressor
Na 3ª Vara Criminal e do Idoso de Feira de Santana, na Bahia, tramitam, atualmente, 40 processos que envolvem violação de direitos aos idosos. Os processos tratam principalmente de maus-tratos e de violação ao patrimônio. O primeiro crime está previsto no artigo 99 do Estatuto do Idoso: “expor a perigo a integridade e a saúde, física ou psíquica, do idoso, submetendo-o a condições desumanas ou degradantes ou privando-o de alimentos e cuidados indispensáveis, quando obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-o a trabalho excessivo ou inadequado”. Já a violação ao patrimônio está abarcada pelo artigo 102, que determina reclusão de um a quatro anos para o crime de “apropriar-se de ou desviar bens, proventos, pensão ou qualquer outro rendimento do idoso, dando-lhes aplicação diversa da de sua finalidade”.
No entanto, de acordo com o juiz Vicente Reis Santana, nenhuma dessas violações da lei resultou, por enquanto, em réu preso. Uma das grandes dificuldades para punir o agressor – que quase sempre é da família – de acordo com o magistrado, é que os idosos tendem a atenuar o depoimento para não prejudicar os filhos. “Mesmo com os maus-tratos, é comum que o idoso acabe defendendo o filho para melhorar a sua situação e impedir que seja processado. Há uma tendência de a vítima negar o crime”, diz o juiz Santana.
Em relação ao crime de apropriação de bens, o juiz conta que quase a totalidade dos casos trata de familiares ou cuidadores que tomam posse do cartão previdenciário do idoso. “Acredito que as penas do estatuto sejam muito brandas. Mas a única coisa que inibe o crime é a educação, e não a punição.”
Estatuto ainda precisa sair do papel
O Estatuto foi criado em 2003 com o objetivo de assegurar a prioridade e proteção às pessoas com mais de 60 anos. Entre os direitos previstos no estatuto, está o atendimento preferencial imediato junto aos órgãos públicos e privados prestadores de serviços à população, a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção ao idoso e a prioridade no recebimento da restituição do Imposto de Renda.
Para o secretário Rogério Ulson, que comanda a Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa, órgão do Ministério dos Direitos Humanos (MDH), o Estatuto do Idoso é um marco nas conquistas e direitos da população idosa. “Em pouco tempo, vamos superar o número de crianças e adolescentes pelo de idosos no Brasil. Por isso, as políticas públicas para esta população são fundamentais e urgentes”, diz Ulson.
Rogério Ulson comanda a Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa, órgão do Ministério dos Direitos Humanos. Foto: Gil Ferreira/CNJ
Nem todos os direitos previstos do Estatuto, no entanto, têm sido efetivados na prática. Um exemplo é a determinação, na norma, de que sejam criadas oportunidades para o acesso de idosos à educação, com adequação dos programas educacionais, e que é vedada a discriminação do idoso em qualquer trabalho ou emprego. Para Ulson, o combate ao analfabetismo e a inserção digital da população idosa são prioridades na Secretaria.
Atualmente, o sistema de Educação para Jovens e Adultos (EJA) pode receber a população idosa não alfabetizada. No entanto, o secretário avalia que esta forma de ensino não tem se mostrado adequada à terceira idade. “É complicado colocar o idoso junto com um adolescente, são ritmos cognitivos e de aprendizagem diferentes. É preciso repensar uma forma com ferramentas didáticas mais adequadas. Além disso, muitos moram na zona rural e o ensino é normalmente, no período noturno, o que dificulta o acesso do idoso.”
Já para suprir a demanda de inserção digital, o secretário aposta na didática da “gameficação” – ou seja, uso de jogos para facilitar a aprendizagem –, e do uso das escolas públicas. “Queremos fazer parcerias para que os idosos possam utilizar os laboratórios de informática das escolas quando estiverem desocupados, e capacitar monitores que possam ensinar às pessoas idosas conceitos básicos de internet.”
Facilitar o acesso ao ensino superior é um dos desafios para promover o direito à educação à população idosa. Segundo Ulson, houve aumento de 8% no primeiro trimestre deste ano, em relação à 2017, na inserção do mercado de trabalho de pessoas com mais de 60 anos. “Isso fala a favor de investirmos em capacitações e no ingresso facilitado nas universidades, é complicado para a pessoa idosa disputar um vestibular em igualdade de condições.”
Outra área de grande atenção é a saúde: o estatuto determina a criação de unidades geriátricas de referência e garante que o Poder Público forneça aos idosos, gratuitamente, os medicamentos. Além disso, a norma proíbe a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade.
De acordo com o Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros (ELSI-Brasil), divulgado pelo Ministério da Saúde em outubro, 75,3% dos idosos brasileiros dependem exclusivamente dos serviços prestados no Sistema Único de Saúde e cerca de 70% dos idosos possuem alguma doença crônica. “É importante que se lembre que o bem-estar da pessoa idosa é responsabilidade do Estado, da família e de toda a sociedade. Está-se tornando comum o abandono de idosos em hospitais, isso é um crime”, diz Ulson.
Luiza Fariello
Agência CNJ de Notícias