A criação de um sistema humanizado e capacitado para acolher a mãe que cogita entregar o filho ou a filha para adoção é uma das principais preocupações de representantes do Poder Judiciário e de especialistas. Durante audiência pública promovida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nessa quarta-feira (1º/6), participantes apresentaram sugestões sobre a minuta de resolução que trata da entrega voluntária, com questões como a articulação interinstitucional entre Judiciário e o sistema de garantias e a ampliação do prazo de dez dias para a mãe desistir da entrega legal.
Ao avaliar os resultados do encontro, o conselheiro do CNJ e presidente do Fórum Nacional da Infância e da Juventude (Foninj), Richard Pae Kim, observou que a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determinam, como situação ideal, o acolhimento da criança pela família de origem e, caso não seja possível, que fique na família extensa – com avós e tios. “Entretanto, diante da realidade, o legislador resolveu restringir alguns direitos fundamentais e considerou a liberdade de algumas genitoras de, quando não conseguirem apoio necessário, fazer a entrega legal para que não ocorra o abandono.”
De acordo com o conselheiro, a ideia é que a entrega voluntária seja feita ao Judiciário, em um processo seguro e que permita à criança ser adotada rapidamente. “A proposta é ter uma solução normativa qualificada, que ofereça diretrizes para esta entrega.” Segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), em 2020, foram registradas 1.012 entregas voluntárias. O número cresceu no ano seguinte, chegando a 1.238 entregas e, em 2022, já foram recebidas 484 crianças com adoções já encaminhadas.
O ato normativo em elaboração pelo CNJ pretende evitar o abandono e a adoção à revelia da lei. “Queremos evitar que crianças sejam deixadas nas ruas, em latas de lixo, hospitais e locais insalubres. Também nos preocupam as adoções irregulares, que podem representar riscos, com lares despreparados para garantir a proteção das crianças”, reforçou o secretário-geral do CNJ, Valter Shuenquener.
Outro ponto destacado por Shuenquener foram os muitos estigmas contra as mulheres que decidem entregar as crianças. A proposta de normativo quer permitir a articulação com a rede de apoio, de forma a acolhê-la e beneficiar o recém-nascido. “Por este motivo, estamos realizando esse debate qualificado, para que sejam garantidos os direitos das crianças, mas também das mães.” Além da audiência, o CNJ realizou uma consulta pública sobre o tema. Foram recebidas cerca de 280 sugestões, que estão sendo analisadas pelo Foninj.
Direitos da mãe e da criança
Representantes do Foninj destacaram a importância de trazer um olhar para a entrega legal que garanta segurança ao encaminhar a criança para uma família substituta e assegure à mãe de que isso será feito para o melhor interesse do filho. Nesse sentido, a interação e articulação com a rede de apoio – especialmente nas áreas de saúde e assistência social – pode humanizar esse processo, evitando o constrangimento da mãe.
Participantes da audiência, como representantes do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), sugeriram a criação de uma campanha nacional de conscientização do sistema de garantias e da rede de apoio, para explicar como funciona a entrega legal e capacitar profissionais que fazem os atendimentos.
Também foram sugeridos pelos representantes do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e do Colégio de Coordenadores de Varas de Infância e Juventude incluir a assistência psicológica durante e após a gravidez da mulher que manifesta a intenção da entrega voluntária, além da capacitação dos magistrados e magistradas com ênfase nos direitos humanos. Sobre a capacitação, a proposta é que todas as pessoas que trabalham nos tribunais – desde a portaria até a magistratura – recebam informações sobre a questão.
Ainda foi ressaltado que a norma não tem a intenção de fomentar a adoção ou diminuir a fila de pretendentes habilitados, mas de eliminar a cultura das adoções irregulares. “Por que uma mãe procura terceiros para entregar seu filho? Porque há uma ideia de que a Justiça dá trabalho e que ela será envergonhada. O terceiro não questiona e ainda pode pagar os custos da mãe. Mas, se fazemos esse trabalho de capacitação, de mudança cultural, humanizado, podemos garantir um cuidado a ela e segurança no processo de adoção dessa criança”, afirmou a juíza Celia Regina Lara, do Colégio de Coordenadores.
Especialistas do Instituto Brasileiro do Direito de Família, do Instituto Brasileiro de Direitos das Criança e Adolescente e do Conselho Nacional dos Direitos de Crianças e Adolescentes (Conanda) apontaram que o prazo de dez dias para uma mãe se arrepender pela entrega do filho para adoção pode ser muito curto, dadas as fragilidades que a família pode estar enfrentando. No entanto, se consideram entregar os filhos, é preciso verificar se não falta um apoio do Estado, por meio de políticas públicas que contribuam para que essa mãe mantenha seus filhos.
Já a Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção ponderou que a entrega legal para adoção tem de compor uma proposta de políticas públicas que considere as mulheres gestantes em situação de vulnerabilidade psicossocial. E a Rede Pinkler Brasil ressaltou que a adoção é um assunto tratado de maneira fragmentada, mas que é fundamental que uma genitora tenha espaço seguro para ser ouvida para que tome uma decisão mais consciente.
Minuta
Na minuta de resolução, estão as condições em que os tribunais devem atender mães ou gestantes que manifestarem a intenção de entrega do filho. A ideia é que o local do atendimento resguarde a privacidade da mulher, com encaminhamento da demanda ao Ministério Público para a formalização do pedido em tramitação judicial prioritária e em segredo de justiça.
É possível que a mãe não solicite o sigilo e, nesses casos, a família extensa poderá ser consultada. Se mantido o desejo da entrega do bebê para adoção, a proposta é que a entrega seja homologada e seja declarada a extinção do poder familiar. Os genitores teriam 10 dias após a sentença para se manifestar, caso haja arrependimento pela entrega do filho.
A entrega de crianças para fins de adoção no âmbito dos Tribunais de Justiça já tem previsão legal no ECA. Pela lei, gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção devem ser obrigatoriamente encaminhadas à Justiça da Infância e da Juventude, sem constrangimento e estabelece as providências a serem adotadas nesses casos, antes ou logo após o nascimento.
Dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) mostram que há 29.492 crianças em acolhimento no país, em 5.501 instituições. Mais de quatro mil crianças e adolescentes estão aptas para adoção.
Foninj
Antes da realização da audiência pública, os membros do Fórum Nacional da Infância e Juventude (Foninj) realizaram reunião para a análise de propostas de medidas relacionadas aos direitos de crianças e adolescentes. Entre as propostas, foi avaliada a possiblidade de inserção no SNA das informações colhidas nas inspeções anuais sobre a situação de crianças e jovens em acolhimento institucional ou familiar. Entre as informações que estão sendo apuradas está o nível de vacinação de crianças e adolescentes acolhidos contra a Covid-19 e demais enfermidades. As inspeções são realizadas por juízes e juízas das varas de infância e juventude e contribuem para o acompanhamento das atividades dessas instituições.
Texto: Lenir Camimura e Jeferson Melo
Edição: Sarah Barros
Agência CNJ de Notícias
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