Uma das causas que explicam a avalanche de processos que chegam aos tribunais para reverter decisões da Previdência Social é a discrepância entre as posições do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e a jurisprudência do Poder Judiciário. Negados pelo INSS, os pedidos muitas vezes acabam nos tribunais.
O direito previdenciário é o tema mais judicializado em varas e tribunais federais. Mais da metade do volume processual da Justiça Federal tem essa natureza e a as demandas que buscam esses benefícios transbordam para os tribunais estaduais, na competência delegada e acidentária, e superiores. Esses foram alguns dos achados de estudo do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) contratado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e divulgado na última quinta-feira (17/6) durante seminário virtual.
As respostas do INSS não aplicadoras das teses firmadas em jurisprudência qualificada têm sido acompanhadas por um crescimento da judicialização. Uma análise de processos previdenciários na Base Nacional de Dados do Poder Judiciário (DataJud) entre 2015 e 2019 revelou crescimento de 140% do número de ações referentes a benefícios previdenciários ou assistenciais, muito maior que o aumento da quantidade de processos administrativos no INSS.
De acordo com os coordenadores do estudo, há um descompasso entre as interpretações administrativas feitas pelo INSS e as judiciais, especialmente aquelas realizadas pelos tribunais. “Essa conclusão é sustentada por evidências quantitativas, por meio da análise do texto das decisões judiciais e por relatos em entrevistas. Decisões no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) versam sobre os critérios de análise para a concessão de benefícios — o que é considerado como atividade especial, possibilidade ou não de acumulação de benefícios, teto do valor do benefício, entre outras questões com relação às quais os juízes e o INSS podem ter posições divergentes”, afirmam os professores Paulo Furquim de Azevedo e Natalia Pires de Vasconcelos, responsáveis pela apresentação da pesquisa.
Princípio da legalidade
Na seção dos debates, o procurador-geral do INSS, Virgílio Antônio Ribeiro de Oliveira Filho, sustentou que o órgão está preso ao princípio da legalidade, o qual é relativizado muitas vezes em decisões do Poder Judiciário. “Não dá para internalizar completamente a jurisprudência. Não tenho margem de manobra que uma sentença judicial tem para flexibilizar legislação”, afirmou. As jurisprudências são debatidas internamente, mas o Supremo Tribunal Federal reverte em muitos casos, depois de decisões em contrário nas instâncias inferiores, como o tema da desaposentação e cotas de pensão, de acordo com o procurador-geral do INSS.
De acordo com a juíza auxiliar da Presidência do CNJ Livia Peres a internalização, pelo INSS, da jurisprudência qualificada por meio das súmulas administrativas previstas no Decreto n.10.410/2020 vai promover a desjudicialização efetiva, “não por inibição de acesso à Justiça, mas por resolver a questão na via administrativa, dispensando a necessidade de procurar o Poder Judiciário”, afirmou a magistrada, que também é juíza federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) e titular de vara de Juizado Especial Federal com competência para as causas previdenciárias. A magistrada lembrou que está em andamento um projeto entre CNJ, INSS e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) que criará uma ferramenta tecnológica para dar mais efetividade às decisões judiciais.
Ao interligar os sistemas de tramitação processual dos tribunais brasileiros e com os sistema do INSS, será possível e automatizar procedimentos de comunicação processual nas ações previdenciárias – requisições automáticas de documentos ao INSS, processos administrativos previdenciários, laudos de perícias, dossiês dos segurados – para enfrentar o volume de demandas que chega ao Judiciário. A comunicação das ordens judiciais também passará a ser emitidas automaticamente pelo sistema do tribunal ao sistema do INSS, o que deve dar mais celeridade ao cumprimento das decisões judiciais envolvendo questões previdenciárias.
Veja a íntegra da pesquisa “A judicialização de benefícios previdenciários e assistenciais”
Perícias distintas
Outro fator que expõe a divergência de interpretações entre INSS e Poder Judiciário diz respeito às perícias. Os processos relativos aos benefícios assistenciais e por incapacidade , que representam enorme volume no acervo das ações movidas em face do INSS, demandam o trabalho de peritos médicos: benefícios por incapacidades temporária e definitiva, auxílio-acidente, aposentadoria por invalidez, Benefício de Prestação Continuada (BPC) e aposentadoria da pessoa com deficiência. Quando o pedido é negado pelo INSS e acaba sendo levado à Justiça, dois peritos com vivências, regras e contextos profissionais distintos analisam a mesma questão. Além disso, em muitos casos, o resultado da perícia feita pelo INSS não é apresentado na via judicial para apreciação pelo julgador.
Quando a “perícia administrativa” é discutida na Justiça, o segurado tem mais chances de ter acolhido seu pedido de revisão da decisão administrativa que negou um determinado benefício, o que causa aumento do incentivo à judicialização. “A análise quantitativa de textos de decisões indicou que os casos (judicializados) que tratam de perícia administrativa estão associados à probabilidade de sucesso (provimento em favor do segurado), em média, de 35,3 pontos percentuais maior do que em casos que não tratam desse tema”, afirmam os autores do estudo.
Massa de dados
Entre as fontes de informações analisadas ao longo da pesquisa, foram 9.253.045 processos administrativos do INSS, 593.772 concessões em decorrência de decisão judicial, entre dezembro de 2018 e dezembro de 2019, dados administrativos agregados para os 10 anos anteriores; dados de gestão processual da justiça, incluindo 9.027.825 processos judiciais que tramitaram entre 2015 e 2019; textos de decisões judiciais referentes a 1.334.814 processos entre 2015 e 2019; e entrevistas semiestruturadas com 45 representantes dos sistemas de justiça e previdenciário.
Também participaram como debatedores no evento a conselheira Candice Jobim, o juiz federal José Antônio Savaris, a advogada Gisele Kravchychyn e a procuradora-geral Nara Levy.
Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias
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