Com o agravamento da crise econômica no país, cada vez mais pessoas são vistas vivendo nas ruas das cidades brasileiras. Principalmente depois do início da pandemia da Covid-19, é possível encontrar famílias inteiras vivendo nas praças, avenidas ou embaixo de viadutos das grandes cidades. Diante dessa complexa realidade social, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou, em 2021, a Resolução CNJ n. 425, para assegurar às pessoas em situação de rua o amplo acesso à Justiça de forma célere e simplificada.
Historicamente, a população de rua era majoritariamente masculina. De acordo com dados do Instituto de Políticas Econômicas e Aplicadas (Ipea) e o Programa Polos de Cidadania da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a população em situação de rua no Brasil é estimada em 220 mil pessoas que vivem na pobreza ou extrema pobreza, a maioria sem documento de identificação, e sofrendo preconceito diariamente.
São brasileiros e brasileiras com diferentes histórias. Alguns perderam o emprego, não conseguem voltar ao mercado de trabalho e consequentemente ficam sem meios para pagar o aluguel, outras sofreram violência doméstica e buscaram refúgio nas ruas, há ainda indivíduos com problemas psiquiátricos e usuários de drogas.
Com base na Resolução n. 425/2021, diversas ações foram realizadas pela Justiça ao longo do primeiro semestre do ano, como, por exemplo, o Mutirão de Atendimento às Pessoas em Situação de Rua, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT). O evento já teve três edições e é uma iniciativa interinstitucional que envolve o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), segmentos da justiça Estadual e Trabalhista, Organizações Não Governamentais, entre outros.
A juíza do TJDFT Luciana Yuki, coordenadora do Centro de Inteligência da Justiça do DF, foi uma das organizadoras do Mutirão mais recente que ocorreu em junho deste ano com a proposta de facilitar o acesso à justiça e aos serviços públicos essenciais à população em situação de rua. A ideia é diminuir a distância, tanto física quanto burocrática, e, dessa forma, proporcionar a inclusão deste público tradicionalmente invisibilizado.
A ação prestou serviços de emissão de documento de identificação, orientação jurídica, doação de agasalhos, vacinação contra H1N1 e Covid, audiências de conciliação, entre outros. “A maioria das pessoas atendidas apresentou múltiplas demandas nos mais diversos órgãos que compuseram o mutirão”, disse Luciana Yuki.
Ao todo, já foram realizados mais de 50 acordos e o pagamento de mais de R$ 650 mil reais de verbas atrasadas. O que ajudou algumas pessoas a saírem das ruas com o devido apoio de assistentes sociais e psicólogos. O TRF1 prestou apoio institucional aos mutirões realizados no DF fornecendo equipamentos de informática, duas macas para realização de perícias médicas, mesas e cadeiras, além de serviços de segurança, logística e comunicação. O apoio tem motivado a participação de juízes federais no movimento PopRuaJud nos diversos estados que compõem a Justiça Federal da 1ª Região.
Para o juiz do TRF1 Márcio Barbosa Maia, é impossível fechar os olhos para a realidade das inúmeras famílias em situação de rua, vindas da classe média baixa, por conta da crise econômica no país, chamam a atenção pelo número crescente de crianças, adolescentes e idosos expostos aos perigos da rua. Por isso, os mutirões PopRuaJud, na forma em que estão disciplinados pela Resolução 425 do CNJ, “são ferramentas muito importantes para a inclusão cidadã de milhares de pessoas em situação de rua e para o desenvolvimento social e econômico do país”.
O tribunal do DF implantou de modo permanente campanha solidária de arrecadação de agasalhos e cobertores em todos os seus fóruns e incentiva o trabalho voluntário de magistrados e servidores para atuação nos mutirões. Além disso, o órgão estuda a implantação do Comitê Regional para gestão de política pública nos moldes do determinado pela Resolução do CNJ. De acordo com a norma, os tribunais podem instituir comitês multiníveis, multissetoriais e interinstitucionais para atuarem de forma articulada e propositiva no sentido de criar e fortalecer as redes interinstitucionais de proteção à população em situação de rua.
Resgate da invisibilidade
Para a desembargadora Maria Luiza Marilac, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), resgatar as pessoas da invisibilidade é um dos maiores benefícios das ações desenvolvidas pelo Judiciário. “A sociedade vê a pessoa em situação de rua como um problema, nós não. Precisamos é levar dignidade para elas, que são seres humanos como nós.”
Presidente do Núcleo de Voluntariado do TJMG, a desembargadora conta que, desde 2015, o tribunal desenvolve ações voltadas a esse público, como acontece no evento “Rua de Direitos”. Em sua atuação, ela pôde observar como a falta de documentos de identificação gera uma série de prejuízos para as pessoas, pois muitas não conseguiram receber o auxílio emergencial no período crítico da pandemia da Covid-19 porque não tinham nem identidade nem CPF.
A edição mais recente do “Rua de Direitos” aconteceu em abril, na cidade de Belo Horizonte, e ofereceu serviços como emissão, regularização e transferência de título de eleitor, emissão de documentos de identificação, atendimento psicológico e previdenciário, entre outros.
Na visão do juiz Audarzean Santana, coordenador do Centro de Conciliação de Porto Velho, a sociedade brasileira é desigual e iniciativas como os mutirões do PopRuaJud são necessárias. Em julho, uma parceria entre o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) e o Tribunal de Justiça de Rondônia (TJRO) levou diversos serviços para a população em situação de rua na sede do Centro Pop Dom Moarcy Grechi.
O primeiro Mutirão de Atendimento à População em Situação de Rua da Região Norte contou com a participação do poder municipal, estadual e federal, de organizações não governamentais e do Exército Brasileiro. Entre os serviços oferecidos, teve requerimento para concessão de benefícios previdenciários; Cadastro Único (CadÚnico); Carteira Estadual do Idoso; testes de ISTs; vacinação contra a covid-19; corte de cabelo e atendimento médico e odontológico.
O juiz Audarzean Santana concorda que a população em situação de rua é pouco visível. Além de circular muito pelas ruas da cidade, o que pode tornar o alcance a esse público um pouco mais difícil. No entanto, realizar uma justiça itinerante é uma tarefa que os juízes e servidores do Tribunal de Rondônia já estão habituados devido as condições geografias da região. “Estamos acostumados a levar o fórum as pessoas porque uma parte dos nossos jurisdicionados vivem em comunidades ribeirinhas e precisamos percorrer o Rio Madeira para chegar até eles”.
O juiz acrescenta que tem o sentimento de satisfação por poder impactar positivamente na vida de pessoas como a poetisa que conheceu no Mutirão. Uma jovem mulher inteligente e criativa que, no momento, vive nas ruas de Porto Velho.
O Centro Pop Dom Moarcy Grechi é uma instalação municipal que também já recebeu famílias de venezuelanos apenas de passagem por Rondônia rumo aos estados do Sul e Sudeste. Além de trabalhadores rurais do interior sem condições de pagar hospedagem em Porto Velho.
Capacitação e desafios
São Paulo é a cidade com a maior concentração de pessoas em situação de rua do Brasil. A juíza Luciana Ortiz, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) em São Paulo, conhece muitas histórias de vida de pessoas que, por enquanto, têm as ruas paulistanas como endereço e sabe do impacto positivo que os atendimentos do Judiciário têm na vida delas.
A magistrada faz parte do Comitê Nacional PopRuaJud, instituído pelo CNJ e coordenado pelo conselheiro Mário Maia, que preside a Comissão Permanente de Políticas Sociais e Desenvolvimento do Cidadão. O comitê é integrado por 26 membros de vários ramos da Justiça, do Ministério Público Federal e estaduais, Defensoria Pública da União e estaduais, Advocacia Geral da União, organismos internacionais e nacionais de direitos humanos e representantes dos movimentos sociais.
A formação continuada de servidores e magistrados para atuar nas políticas públicas e ações sociais voltadas para a população de rua está prevista na Resolução CNJ n.425 e é um ponto importante, segundo Luciana Ortiz. A juíza destaca que é preciso capacitar os membros do Judiciário para receber as pessoas, usar a linguagem apropriada, sem preconceitos, e principalmente frisar que o foco das ações não é assistência social, e sim, assegurar a cidadania e os direitos sociais de uma população tão vulnerável.
“É uma política nova, nunca antes feita, e temos uma longa caminhada. Ainda precisamos mobilizar todos os tribunais, capacitar as pessoas e avançar em relação a uma rede que entregue de forma rápida a identificação e assim possibilite a obtenção dos benefícios para as pessoas em situação de rua, de modo que só os casos em litígio fiquem com o Poder Judiciário”, explica.
A juíza Luciana Yuki compartilha do mesmo entendimento, pois, segundo ela, o atendimento nos mutirões não se limita a serviços oferecidos pelo Poder Judiciário, mas abarca diferentes necessidades essenciais da população em situação de rua. Por isso, acredita, é preciso uma política pública capaz de fazer uma articulação interinstitucional para dar certo. Dessa forma, o envolvimento de todos os órgãos do Sistema de Justiça, do Poder Executivo e a participação da sociedade é fundamental para tratar a questão de forma sistêmica.
Já para o juiz Márcio Barbosa Maia, os mutirões interinstitucionais do PopRuaJud exigem uma postura proativa dos profissionais envolvidos, que passam a funcionar como articuladores de rede, promovendo o diálogo e as ações entre instituições do Sistema de Justiça, entidades de outros poderes e órgãos da sociedade civil. Por isso, o grande desafio na implantação da Resolução do CNJ é a promoção de uma mudança de paradigma da jurisdição tradicional operante no país e da consequente postura dos profissionais jurídicos, que deixam de ser meros operadores do direito e passam à função de transformadores jurídicos.
Texto: Thayara Martins
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias