Artigo: A restrição de acesso aos autos digitais e a proteção à intimidade

Compartilhe

Yuri Paulino de Miranda*

O Conselho Nacional de Justiça decidiu recentemente[1] que o acesso aos autos digitais deve ficar restrito às partes e respectivos advogados. Conforme divulgado no site do CNJ[2], esta decisão resultou  na aprovação de enunciado tratando da matéria.

Por fixar parâmetros que certamente serão observados nos processos judiciais (Projudi, Sistema CNJ ou e-Jus), a posição do Conselho tem recebido críticas daqueles que entendem existir aí uma violação às garantias positivadas na Constituição Federal, notadamente a publicidade dos atos processuais.

Expondo os motivos do seu convencimento, o Conselheiro Antônio Umberto de Souza Junior, relator do PCA, enfocou a questão da publicidade do processo em contraste com o direito à intimidade, também de previsão constitucional (CF, art. 5º, X), concluindo que, dada a nova realidade tecnológica, prestigiar irrestritamente o primeiro acabaria por comprometer o segundo.

Com efeito, ao resolver conflitos onde estão envolvidos, como na espécie, a publicidade dos atos processuais (CF, art. 93, inc. IX) e a proteção à intimidade (CF, art. 5º, inc. X), devem ser sopesados os interesses sociais em aparente oposição, buscando-se uma solução que os equacione, já que não há entre eles qualquer hierarquia[3].

Como bem ponderado pelo relator, hoje há muito mais perigo à intimidade e à vida privada, justificando restrições que antes não eram necessárias, de forma que não se pode tomar por desarrazoada a previsão contida no art. 11, §6º, da Lei n. 11.419/2006, que fundamenta a posição do Conselho Nacional de Justiça.

Navegamos hoje a Terceira Onda[4], com a informação constituindo o maior ativo existente. Aliás, já se observou que “a Sociedade Digital já não é uma sociedade de bens. É uma sociedade de serviços em que a posse da informação prevalece sobre a posse dos bens de produção.”[5] Nesta nova época, “não é mais o forte que devora o fraco ou o rico que supera o pobre, e sim o bem informado que engole o ignorante.”[6]

Paradoxalmente, ao contrário de outrora, em que se convivia com a concentração da riqueza, o ativo moderno flui sem conhecer limites ou fronteiras, trafegando livremente no que já se convencionou chamar de ‘auto-estrada da informação’.[7]

Estes fatores somados desenham um cenário onde existe uma ávida busca por informação que, com as ferramentas agora disponíveis, pode ser armazenada e organizada para os mais diversos usos e finalidades, tudo feito em escala nunca antes vista.

Nestas circunstâncias, deixamos de lidar apenas com a possibilidade de um indivíduo ver a sua intimidade exposta na grande rede, fato passível de ocorrer até mesmo no processo convencional. Está em jogo aqui algo muito mais relevante, que é a exposição da intimidade em larga escala, atingindo toda coletividade, cujas informações processuais poderão ser utilizadas na construção de bases de dados[8].

De fato, havendo acesso irrestrito aos autos digitais é possível copiar os dados ali existentes e com eles construir bancos com informações sobre partes ou qualquer outro elemento considerado relevante. Na época do papel, isto era inviável, visto o tempo que tomaria para se ter acesso a cada um dos autos, o custo para copiar suas peças etc. Na sociedade digital, contudo, esta tarefa não só é possível, como também não envolve grande complexidade ou demanda muitos recursos[9].

É importante realçar que a execução destes procedimentos não decorreria de qualquer fragilidade no sistema, mas seria possível justamente por haver um acesso irrestrito aos dados.[10]

Na verdade, não são poucos os registros sobre fatos similares. Veja-se, por exemplo, notícia publicada no site da revista Istoé Dinheiro[11] que trata da disputa judicial envolvendo duas empresas de recrutamento de executivos. Uma delas teria copiado o banco de currículos da concorrente para utilizar os dados ali existentes. Não houve invasão, mas acesso ao sistema, e em apenas uma semana teriam sido copiados 188 mil currículos.

A face mais conhecida da utilização deste tipo de banco de dados é a remessa indiscriminada de e-mails não solicitados (spam). Todavia, considerando as peculiaridades das informações disponíveis no Judiciário, não tardaria para serem construídas bases que não apenas envolvessem a utilização da produção intelectual alheia (v.g., teses postas em petições), como também a criação de um ‘perfil judicial’, disponível para análise em uma infinidade de situações onde deles se necessitasse, tais como a avaliação de consumidores, candidatos a emprego, financiamentos etc.

Trata-se de uma preocupação fundada, pois, como bem advertiu Patrícia Peck Pinheiro,  “Na era da Informação, o poder está nas mãos do indivíduo, mas precisa ser utilizado de modo ético e legal, sob pena de no exercício de alguns direitos estar-se infringindo outros, e isso não é tolerável em um ordenamento jurídico equilibrado.”[12]

Assim, em conclusão, a garantia de acesso aos autos não é absoluta e encontra limites no interesse público, aqui representado pela proteção à intimidade, seriamente ameaçada por um aparato tecnológico que possibilita não apenas a propagação da informação em escala inédita, como também o seu armazenamento e manipulação para fins nem sempre legítimos.

Desse modo, ao impor determinadas restrições de acesso, para quem não for parte ou advogado, a Lei n. 11.419/2006, como também o Conselho Nacional de Justiça, buscam evitar o uso abusivo e desvirtuado das informações, em detrimento de interesses sociais que, de mais a mais, sempre estarão preservados na possibilidade de qualquer um, com motivos legítimos, ter acesso aos autos digitais.

* * * * *

[1] “PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. QUESTÃO DE ORDEM. DIREITO DE VISTA DOS PROCESSOS DIGITAIS. INCIDÊNCIA DA RESTRIÇÃO DO ART. 11, § 6º, DA LEI Nº 11.419/2006. Nos processos digitais, o acesso à íntegra dos autos é limitado às partes, constituindo mais uma exceção à regra geral de liberdade de acesso dos advogados aos processos, independentemente de procuração. Questão de ordem resolvida no sentido da edição de enunciado administrativo para uniformizar o orientação de acesso restrito dos autos eletrônicos às partes cadastradas e seus respectivos advogados.” (Procedimento de Controle Administrativo n. 2007.1000000393-2, Rel. Cons. Antônio Umberto de Souza Junior)

[2] Disponível em: http://www.cnj.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=3990&Itemid=42, acesso em 20/05/2008

[3] Nesse aspecto, aliás, o Supremo Tribunal Federal já afirmou que: “Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.” (MS 23.452, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 12/05/00)

[4] TOFFLER, Alvin. A Terceira Onda, 29ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2007. Ed. Original 1980

[5] PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 41

[6] SANTOS, Manoel J. Pereira dos. Considerações Iniciais Sobre a Proteção Jurídica das Bases de Dados. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto. (Coordenadores). Direito & Internet: Aspectos Jurídicos Relevantes, 2ª ed., São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 321-335.

[7] Conforme Adalberto Simão Filho, “a expressão auto-estrada da informação é utilizada para configurar toda e qualquer infra-estrutura de tecnologia da informação que possibilite o tráfego dos veículos digitalizados e a conectividade entre pessoas e máquinas.” (Sociedade da Informação e seu Lineamento Jurídico. In: PAESANI, Liliana Minardi (Coordenadora). O Direito na Sociedade da Informação, 1ª ed., São Paulo: Atlas, 2007, p. 5-29)

[8] Na definição de Manoel J. Pereira dos Santos, as bases de dados “[…] têm sido conceituadas, de uma forma mais ampla, como a compilação de dados, obras e outros materiais organizados de uma maneira sistemática e ordenada, em função de determinados critérios e para finalidades específicas, em condições de serem acessadas individualmente por meio eletrônico ou não.” (Considerações Iniciais Sobre a Proteção Jurídica das Bases de Dados. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto. (Coordenadores). Direito & Internet: Aspectos Jurídicos Relevantes, 2ª ed., São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 321-335).

[9] Tarcísio Teixeira observa que “a privacidade na internet pode ser violada com facilidade por causa da indiscriminada captação de dados, que enseja a formação de um perfil de usuário e que acarreta a comercialização desses dados.” (Direito Eletrônico, 1ª ed., 2007, São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, p. 21-22)

[10] Deve-se ressaltar, ainda, antes que os obscurantistas de plantão venham a apontar nisto uma fragilidade, que esta possibilidade é uma característica própria do sistema. Ver aí um fragilidade, seria mesmo que não admitir os autos convencionais a pretexto de ser possível a destruição do papel.

[11] Disponível em http://www.terra.com.br/istoedinheiro/275/economia/275_catho.htm, acesso em 20/05/2008

[12] PINHEIRO, Patrícia Peck. obra citada, p. 43
________________________________________________________________________________
(*) Secretário da Corregedoria-Geral da Justiça do Tribunal de Justiça da Paraíba

Artigo publicado em 1º de julho de 2008