*Artigo assinado pela conselheira do CNJ Daniela Madeira, coordenadora do Laboratório de Inovação, Inteligência e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (LIODS), publicado originalmente no site Justiça e Cidadania
O crescimento da judicialização no âmbito do Poder Judiciário tem sido uma constante ao se analisarem os números apresentados ano a ano. Essa sobrecarga na estrutura judicial compromete a eficaz e célere prestação dos serviços públicos judiciais, prejudicando o cidadão que busca o Judiciário no exercício do direito de acesso à Justiça. Nesse contexto, um dos principais enfoques do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem sido o enfrentamento da chamada litigância abusiva.
A Recomendação n. 159, recentemente aprovada durante a 13.a Sessão Ordinária de 22/10/2024 do CNJ, sob a relatoria do presidente, ministro Luís Roberto Barroso, conceitua como abusivas as condutas ou demandas sem lastro probatório, temerárias, artificiais, procrastinatórias, frívolas, fraudulentas, desnecessariamente fracionadas, configuradoras de assédio processual ou violadoras do dever de mitigação de prejuízos, entre outras. O ato normativo visa preservar o acesso à Justiça de forma justa e eficiente, ao estabelecer medidas que equilibrem a demanda processual de modo a não prejudicar o regular andamento das reais demandas, essenciais para garantir os interesses legítimos das partes. O direito de acesso ao Poder Judiciário, assim como os direitos em geral, encontra limites éticos e jurídicos, cuja inobservância pode acarretar consequências que prejudicam o célere e regular fluxo processual.
Dialoga ainda com a anterior Recomendação n. 127, de 15/02/2022, que recomenda aos tribunais a adoção de cautelas para coibir a judicialização predatória que possa acarretar o cerceamento de defesa e a limitação da liberdade de expressão.
O novo ato normativo prevê lista exemplificativa de condutas processuais potencialmente abusivas, além de medidas judiciais a serem adotadas diante de casos concretos de litigância abusiva e de diretrizes direcionadas institucionalmente aos Tribunais brasileiros.
Inovações no combate à litigância abusiva
A inovação no tratamento da litigância abusiva reside na disponibilização de condutas exemplificativas que, na prática e na realidade jurisdicional, se demonstraram indicativas desse tipo de comportamento. Esse importante cotejo de indícios foi obtido a partir de análises empíricas realizadas com base nas diversas notas técnicas da rede de Centros de Inteligência do Poder Judiciário, estrutura instituída pela Resolução CNJ n. 349/2020, que determinou que os tribunais mantivessem suas estruturas locais de inteligência.
Diversos tribunais já haviam sido precursores no enfrentamento desse fenômeno de forma inovadora. Cita-se, por exemplo, a Nota Técnica n. 04/2023 do Tribunal Regional do Trabalho da 8.a Região (PA/AP), que aponta achados empíricos relevantes, como o fato de que há empresas que utilizam os processos judiciais como parte do modelo de negócio, exercendo de forma abusiva do direito de defesa como forma de tornar mais lento e desinteressante ao empregado o pleito pelo reconhecimento dos direitos, o que demonstra um claro prejuízo ao acesso à Justiça.
A Nota Técnica n. 1/2022 do Centro de Inteligência da Justiça de Minas Gerais possui achados quantitativos interessantes, ao estimar que, no ano de 2020, os prejuízos econômicos decorrentes do exercício abusivo do direito de acesso ao Poder Judiciário chegaram a mais de R$ 10,7 bilhões.
A Nota Técnica 6 do Centro de Inteligência do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí propõe o uso de diligências cautelares pelo magistrado para mitigar as chamadas demandas predatórias. Ao analisar os peticionamentos daquele tribunal em 2022, foi constatado que grande parte das demandas estava relacionada a empréstimos consignados, com elevado índice de similaridade entre as petições iniciais. Auferiu-se ainda uma patente aglutinação dessa litigância em poucos advogados.
A Nota Técnica n. 1/2022 do Centro de Inteligência do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) também apresenta extensos resultados de pesquisa empírica realizada por meio de questionários, buscando informações sobre o fenômeno, também apontando uma grande concentração de demandas em poucos advogados. Os dados apontaram, por exemplo, que apenas seis advogados ou sociedades de advocacia foram responsáveis por 49 mil ações, representando 36% dos casos relacionados a instituições financeiras. Também foram apresentados dados relevantes sobre o modo de operação dessas ações, com um estudo qualitativo em profundidade de 300 casos selecionados, que revelou que, em 99% deles, houve pedido de dispensa de audiência de conciliação.
Nesse sentido, esses e outros estudos demonstram que os Centros de Inteligência do Poder Judiciário possuem uma missão institucional relevante: prevenir o ajuizamento de demandas repetitivas ou de massa, a partir da identificação das causas geradoras do litígio em âmbito nacional.