A Justiça delas

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Fórum de Taguatinga, Distrito Federal - Foto: Gil Ferreira/Ag. CNJ
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Durante duas semanas, a reportagem da Agência CNJ de Notícias visitou fóruns do Distrito Federal em busca de mulheres que atuam ou usam os serviços da Justiça. São brasileiras que procuram o Poder Judiciário na esperança de resolver uma pendência burocrática ou de proteger a própria vida e de seus filhos. São também aquelas que julgam, advogam, recebem as demandas que fazem da Justiça brasileira uma das mais acessadas do mundo.

Gente como a recepcionista Sônia Maria da Silva, que trabalha em um dos fóruns mais movimentados da capital federal e conhece de perto o machismo estrutural que ronda os prédios do Judiciário. Mesma situação encarada pela juíza Clarissa Braga Mendes, que, há 15 anos na magistratura, se vê rotineiramente confrontada pelo fato de ser uma mulher em posição de poder. “É como se eu sempre precisasse provar algo a mais para ser legitimada em um campo de conhecimento no qual homens não são questionados por seu gênero.”

Conheça as histórias de 15 mulheres que representam a potência de um Brasil que faz e busca por Justiça.

Ana Cleide Evangelista dos Santos, estagiária

Foto: G.Dettmar

 

A estudante Ana Cleide Evangelista dos Santos, que mora com a avó em Ceilândia, abraçou a oportunidade de estágio na Defensoria Pública como um passo importante no caminho que pretende trilhar. Cursando o 8º período de direito, ela sonha em seguir essa carreira. A jovem conta que, das experiências adquiridas nos pouco mais de dois meses no fórum, a mais difícil foi convencer um homem a não agir com violência contra a mulher depois de ser acionado na Justiça para pagar pensão alimentícia para os filhos.

“Tive a oportunidade de conversar e instruí-lo a não fazer isso. Tem um lado difícil, mas também um outro bom, de atuar em prol de mulheres que necessitam porque são hipossuficientes economicamente”, considera.

 

 


Clarissa Braga Mendes
, juíza

Foto: Luiz Silveira/Ag. CNJ

Há 15 anos na magistratura, Clarissa Braga Mendes se vê reiteradamente confrontada pelo fato de ser mulher em uma posição de poder. A predominância masculina entre os magistrados muitas vezes cria estranhamento até mesmo para os jurisdicionados. “Em geral, o público não lida tão bem quando tem uma juíza julgando seu processo. Nem mesmo as mulheres. Como se mulher e poder fossem forças antagônicas. A força do Estado exercida por alguém com um estereótipo frágil provoca um impacto suficiente para gerar até mesmo questionamentos sobre o resultado da sentença”, lamenta.

A dinâmica que se estabelece no exercício da magistratura é, sob o ponto de vista pessoal, extremamente cansativa, como relata Clarissa. “É como se eu sempre precisasse provar algo a mais para ser legitimada em um campo de conhecimento no qual homens não são questionados por seu gênero”, completou.


Daniela Macedo Marques da Silveira,
oficial de justiça

Foto: Rômulo Serpa/Ag. CNJ

 

Há 14 anos trabalhando como oficial de justiça, Daniela diz não presenciar situações de disparidade de gênero dentro do tribunal. No entanto, vive outra realidade quando está nas ruas cumprindo seu dever profissional. Ela afirma que já passou por uma tentativa de intimidação enquanto realizava a intimação de um homem que ficou travando e destravando o revólver que estava em sua mão com o intuito de assustá-la: “Não sei se ele faria isso com um homem, né?”.

 

 

Gabriela Oliveira, brigadista

Foto: Rômulo Serpa/Ag. CNJ

“O fato de termos uma mulher na chefia dos brigadistas contribui para o respeito por nosso trabalho, inclusive entre os colegas homens.  Além disso, amplia o espaço de atuação feminina.” A declaração de Gabriela ilustra um dos maiores desafios impostos às mulheres não apenas no Brasil, a equidade.

Para a bombeira civil – que trabalha para evitar perigo iminente e atende causas pré-hospitalares de servidores, servidores, magistrados e magistradas, além de usuários e usuárias dos serviços do fórum -, a desigualdade de gênero a atinge diretamente e ela se sente valorizada pelo trabalho que desenvolve em um movimentado fórum do DF. “Temos preparo para atender o público e somos respeitadas quando o fazemos”, acredita.

 


Jéssica Dayane da Silva Oliveira,
advogada

Foto: Luis Silveira/Ag. CNJ

 

Ser a única mulher em uma sala de audiência é por vezes ter sua presença ignorada. A percepção chocou Jéssica logo no início de sua carreia. Para ela, o assédio acontece mascarado por pequenos elogios e piadinhas, tanto pelos juízes quanto por colegas advogados. Nas primeiras vezes, ficou um pouco chocada e sem reação, esperando que o magistrado chamasse atenção, mas nada foi feito. É um aprendizado ao longo da carreira de se posicionar mais, “se a gente não falar, seremos pisoteadas”.

A advogada acredita que algumas medidas devem ser tomadas para garantir um ambiente mais igualitário entre os atores do Sistema de Justiça. Para ela, é preciso punir para ensinar. “Se não há sanção, não há mudança”.

 

 


Josette Isabel Christofoli,
diretora de cartório

Foto: G.Dettmar/Ag. CNJ

Atualmente diretora de cartório, a servidora do Tribunal Superior cedida ao fórum, Josette Isabel Christofoli tem a Justiça no DNA da família. Filha de uma juíza, irmã e mãe de promotoras públicas, ela trabalha no Judiciário desde os 21 anos.

A partir da experiência atuando em casos de violência contra a mulher, ela e a magistrada que está à frente dos julgamentos elaboraram um projeto de lei para que as vítimas tenham direito a uma renda. “Muitas preferem desistir da medida protetiva, preferem ficar sofrendo maus tratos do marido que deixar os filhos sem leite, sem pão”, relata.

 

 

Larissa*, recepcionista

Foto: G.Dettmar/Ag. CNJ

 

Vítima de violência doméstica, Larissa disse-se mexida emocionalmente ao aguardar no fórum a primeira audiência do processo, após um ano de ter denunciado o agressor. A recepcionista diz que gostaria que o processo tivesse transcorrido mais rapidamente porque a expectativa de revê-lo lhe revirava a dor do dia em que o ex-marido chegou em casa e a agrediu depois de uma briga.

Vivendo com medida protetiva, ela afirma que não se arrepende da denúncia e encoraja outras vítimas a fazerem o mesmo: “Aconselho a não se calarem, fazerem a denúncia, que é necessário. Temos de ir atrás e procurar por Justiça”.

 

Luciana Yuki Fugishita Sorrentino, juíza

Foto: Luiz Silveira/Ag. CNJ

Hoje em uma Vara de Família e de Órfãos e Sucessões, a magistrada que já atuou em um juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher, já foi alvo da desconfiança de partes de processos por ser mulher. “Na minha experiência, percebi que não raras vezes, as mulheres esperavam um juiz homem. Uma vez conduzi a audiência inteira e, ao final, mesmo tendo me apresentado antes, a mulher me perguntou quem era o juiz. O fator cultural influencia muito as pessoas”, afirmou.

A ascensão profissional também foi desafiante para a magistrada, que viu oportunidades indo embora pelo fato de ser mulher. “As formas de preconceito são muito variadas. Em alguns momentos, sofremos discriminação até mesmo por parte de outros juízes, que têm a crença de que mulheres não adequadas para assumir uma vara criminal ou mesmo entender que somente deveríamos atuar em tipos específicos de varas.”

 

Maria da Cruz, aposentada

Foto: Rômulo Serpa/Ag. CNJ

Violência financeira. É assim que dona Maria da Cruz define o aborrecimento que a fez procurar o fórum e agendar uma audiência de conciliação com um banco, que cobra o pagamento de uma compra feita em cartão que ela não solicitou.

A aposentada de 70 anos fez um empréstimo e teve os dados pessoais vazados. Os criminosos cometeram diversas fraudes no nome dela. “As pessoas acham que, porque somos idosas, somos bobas, que não temos ninguém cuidando de nós”. Maria da Cruz, que não gosta de fazer dívidas, disse que só fez o empréstimo porque o INSS liberou e precisava trocar o telhado de sua casa. “Se eu fosse um homem, não seria tratada dessa forma”, afirmou.

Dona Maria procurou o Procon e a Justiça. No Fórum, recebeu as orientações para tratar da questão e conseguiu ser atendida rapidamente. “Fui bem atendida e fizeram de tudo para que eu tivesse minha questão encaminhada”.


Maria do Rosário Borges,
advogada

Foto: Luiz Silveira/Ag. CNJ

Presidente da Comissão da Mulher Advogada da Subseção de Samambaia, Maria do Rosário Borges revela que a rotina em fóruns e delegacias ainda representa um desafio constante para as mulheres. Atuando na advocacia desde 2014, ela já vivenciou uma série de situações em que recebeu tratamento diferenciado ou teve ações duramente questionadas e até mesmo desqualificadas por sua condição de mulher.

“Às vezes os juízes são até justos com a matéria julgada, mas a forma como tratam as advogadas, com uma rispidez não utilizada com os homens advogados, nos desestimula a atuar nesses locais. Ainda existe muito machismo”.  Para ela, o mesmo não ocorre quando os processos caem em unidades comandadas por mulheres. “Existe um acolhimento maior por parte das magistradas, elas têm empatia, a relação é de absoluto respeito”, resume.

 

Maria do Socorro Rodrigues, dona de casa

Rômulo Serpa/Ag. CNJ

 

Mãe de uma moça com transtorno do espectro autista, ocupa boa parte do seu dia e da sua vida nos cuidados da filha, hoje com 30 anos. Reconhece que o Judiciário a ajuda a garantir os direitos da filha: “A Justiça dá a documentação que me permite cuidar dela”. Cuidadosa, se emociona ao falar das limitações da filha que fez tratamento especial desde que nasceu, andou aos cinco anos, mas, apesar de ir para a escola, em uma turma especial com “crianças” de sua idade, ainda não fala. “Sou especial, como minha filha”, diz Maria do Socorro.

 

 

Maria Ferreira Adorno, analista judiciária

Foto: Rômulo Serpa/Ag. CNJ

 

Há mais de 29 anos trabalhando no Judiciário, Maria se sente discriminada por conta da idade, mas também, e principalmente, por ser mulher. Ela acredita que precisa se empenhar mais do que os colegas. “A violência velada, o desprezo, é pior; mais difícil de combater”. Quando passou no concurso se sentiu empoderada e conclui que faz diferença ter conhecimento. “Muitos homens não aceitam que a mulher é igual”, destaca a analista judiciária, hoje com 69 anos.

Atualmente, faz o atendimento especial de pessoas mais carentes e acredita que a Justiça tem obrigação de acompanhar o jurisdicionado e exercer um papel social. “Não deixamos as pessoas sem solução.”


Marli da Silva,
empregada doméstica

Foto: G.Dettmar/Ag. CNJ

 

Nascida na cidade de Patos de Minas (MG), a empregada doméstica Marli Silva Alvim reside na Expansão do Setor O de Ceilândia. Nos mais de 50 anos vividos no bairro, a candanga de 69 anos passou por tragédias, tendo sofrido as perdas de três dos quatro filhos criados na cidade.

Quis o destino levar-lhe também o ex-marido, que morava em Minas Gerais. Ela encontrou no fórum de Ceilândia a possibilidade de resolver uma pendência deixada, sem a qual não pode obter a escritura da casa. “Fui bem recebida aqui desde o começo. Demos entrada no divórcio, mas ele não assinou. Então o juiz assinou por ele”, relata.

 

 

 


Regina Cláudia Rodrigues Gomes dos Reis,
técnica judiciária

Rômulo Serpa/Ag. CNJ

A cultura machista está arraigada no Brasil e ultrapassa a educação formal. É com esse pensamento que Regina explica as situações sutis de constrangimento e tratamento diferenciado que já enfrentou no trabalho que realiza como técnica judiciária. Ela conta que muitas vezes apresenta ideia e soluções para problemas, mas se sente preterida em detrimento da opinião masculina. “Somos acolhidas pela instituição, mas nas unidades ainda há uma reticência no trato interrelacional”.

Para ela, apesar de a política institucional zelar pela não discriminação – que funciona como uma espécie de freio -, nas relações interpessoais ainda ouve comentários desagradáveis.

 


Sônia Maria da Silva,
recepcionista do fórum

Foto: Rômulo Serpa/Ag. CNJ


Aos 59 anos, Sônia conta já ter sido desacatada algumas vezes enquanto exercia suas funções ao receber usuários do fórum. Ela destaca que não é raro ter de reforçar suas explicações para ser ouvida e respeitada. Apesar de acreditar que as mulheres estudam mais e buscam sempre aperfeiçoar suas habilidades profissionais, acha que as oportunidades ainda são desiguais.

“Estamos atrasados na questão igualitária”, diz. Na opinião da recepcionista, hoje a Justiça acolhe melhor as mulheres. “A Lei Maria da Penha, por exemplo, é um avanço, mas os homens ainda acham que não serão punidos pelo que fazem.” Para ela, as mulheres podem ajudar umas às outras, denunciando e dando apoio.

 

A Secretaria de Comunicação Social do Conselho Nacional de Justiça faz um agradecimento especial ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios pelo apoio à produção desta reportagem. As repórteres Ana Moura, Lenir Camimura, Mariana Mainenti e Tatiana Vaz, e a estagiária de jornalismo Nathália Queiroz são responsáveis pelos textos e Thaís Cieglinski pela edição. As imagens foram produzidas pelos repórteres fotográficos Glaucio Dettmar, Luiz Silveira e Rômulo Serpa.

*Nome fictício para preservar a identidade da entrevistada

Agência CNJ de Notícias

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