4.ª Jornada de Leitura no Cárcere encerra apontando caminhos para universalização do acesso ao livro

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Mulheres durante a Jornada, na Unidade Prisional Feminina de São Luís no Maranhão. Foto: Divulgação.
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Com quase 10 mil visualizações no YouTube nos últimos três dias, a 4.ª edição da Jornada de Leitura no Cárcere foi encerrada nesta sexta-feira (24/11), explorando possibilidades e apontando caminhos para a transformação do futuro por meio da leitura. O evento, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Observatório do Livro e da Leitura, foi transmitido ao vivo pelos canais das duas instituições e teve a participação de autoridades, especialistas, escritores e escritoras, além de 120 unidades prisionais em todo o Brasil e 6.600 pessoas privadas de liberdade.

O evento visa ao fortalecimento da promoção da leitura no sistema prisional, buscando universalizar o acesso ao livro e à leitura nesses ambientes, com o reconhecimento do direito à remição de pena por meio da prática e seguindo as diretrizes da Resolução CNJ n. 391/2021. Integra as atividades do programa Fazendo Justiça, coordenado pelo CNJ em parceria com o Pnud Brasil para transformações na privação de liberdade.

O juiz auxiliar da Presidência do CNJ e coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF/CNJ), Luís Lanfredi, destacou a evolução das ações de promoção da leitura fomentadas pelo CNJ. “O movimento de inclusão e transformação por meio do livro e da leitura é liderado pelo CNJ desde a primeira Jornada, em 2019, passando pelo importante marco que foi o lançamento recente do Censo Nacional de Leitura. Eventos como esse refletem um compromisso contínuo com o tema, à luz da Resolução n. 391 e da decisão da ADPF 347, que desafia a refundação do sistema prisional. E, para além disso, inspira a celebração do poder transformador da leitura para todo e qualquer cidadão”, sintetizou.

Ao longo do evento, diversos aspectos das práticas de leitura em ambientes de privação de liberdade foram abordados, oferecendo panorama abrangente para um cenário tão complexo. Na mesa de encerramento da Jornada, com o tema “Onde precisamos chegar”, o juiz auxiliar da Presidência do CNJ Jônatas dos Santos Andrade destacou a necessidade de investir em tecnologia para, por meio da leitura, diminuir o déficit carcerário. “A universalização da leitura por dispositivos eletrônicos, por exemplo, revela uma solução financeiramente eficaz, com custo menor do que a construção de novas vagas. É preciso superar determinadas resistências culturais a isso para efetivar esse plano transformador na educação prisional”, afirmou, enfatizando o potencial emancipador da educação. “A política de leitura nas unidades prisionais emerge como a abordagem viável, proporcionando resultados imediatos e sendo uma iniciativa emancipatória que evita a reprodução de mecanismos de exclusão social e reincidência.”

Christiane Russomano Freire, professora do Programa de Pós-Graduação em Política Social e Direitos Humanos da Universidade Católica de Pelotas e coordenadora do Censo Nacional de Leitura lançado pelo CNJ em outubro, citou a relevância das práticas literárias no contexto prisional, apresentando uma síntese dos principais resultados do Censo. “Precisamos ter cuidado para que não sejam criados obstáculos ao nosso esforço, mecanismos que, ao invés de permitir a abrangência e a universalização, venham restringir o acesso à leitura. É uma tendência que, por vezes, vemos no sistema prisional”.

Saiba mais sobre o Censo e conheça os principais dados

“Precisamos contribuir para transformar as unidades prisionais em espaços que vençam o desafio de acesso à leitura. É algo essencial não apenas para as pessoas privadas de liberdade, porque os benefícios estendem-se além, impactando positivamente toda a sociedade”, pontuou Rodrigo Dias, coordenador de Educação Prisional da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen).

Leitura que humaniza e enfrenta preconceitos

A Jornada proporcionou profunda reflexão sobre o impacto transformador da leitura, abordando temáticas essenciais como “Porque a leitura nos humaniza” e “Os livros no enfrentamento às intolerâncias e aos preconceitos”. Ao explorar a humanização por meio da leitura, os participantes mergulharam nas camadas profundas da experiência literária, destacando como o ato de ler não apenas enriquece o intelecto, mas também promove a compaixão, a empatia e a compreensão entre as pessoas.

Pessoas Privadas de Liberdade no Complexo Penitenciário Anísio Jobim em Manaus, Amazonas. Foto: Divulgação.

A escritora Patrícia Melo compartilhou suas reflexões sobre o processo de escrita e a construção de personagens, destacando o papel da literatura como antídoto para preconceitos, racismo e intolerância. Ao ressaltar a experiência única de esquecer a si mesmo ao mergulhar em uma história, a autora destacou o papel transformador da literatura, que fornece instrumentos para lidar com aspectos complexos da vida. “Os personagens literários se tornam quase parentes, pessoas profundamente conhecidas, que acompanham o leitor ou leitora em sua jornada. A literatura traz consigo um acervo de personagens que amamos, detestamos, que nos ensinam e nos fazem questionar, enriquecendo nossa percepção da realidade”, apontou.

No debate dedicado ao enfrentamento às intolerâncias e preconceitos, o foco foi na capacidade dos livros de desafiar narrativas discriminatórias, oferecendo terreno fértil para a construção de uma sociedade mais inclusiva. A discussão abrangeu a importância vital da literatura como agente de transformação social, evidenciando como a leitura ativa e consciente pode ser uma ferramenta poderosa na promoção da igualdade e na desconstrução de estigmas.

João Luiz Silva, mobilizador político e cofundador da Associação Eu Sou Eu, enfatizou a importância da leitura na mudança de perspectivas e na luta contra o racismo estrutural. Ele destacou que a leitura pode servir como valioso escape em ambientes de superlotação e condições precárias, como o cárcere. Além disso, discutiu a relevância de entender como a sociedade funciona, especialmente para aqueles privados de liberdade, e como a leitura pode contribuir para a reflexão e o crescimento pessoal. “É a partir da leitura que a gente se liberta, não só das grades das prisões, mas das cadeias que foram produzidas na nossa mente durante a nossa vida.”

Sagat B, rapper e autor do livro “O Bandido que Virou Artista”, falou sobre a leitura e a escrita como ferramentas fundamentais para a transformação e ressocialização, permitindo que indivíduos expressem as próprias narrativas e realidades. “Se você estiver aberto a assimilar, qualquer livro vai te ensinar alguma coisa”, disse. Para ele, a literatura, especialmente aquela escrita por pessoas periféricas e privadas de liberdade, tem o poder de construir uma compreensão mais clara das dificuldades enfrentadas por essas pessoas, despertando a consciência e provocando discussões sobre temas como ressocialização e marginalidade. “É muito importante entender como a sociedade funciona para que você possa, ao sair, se readequar e ter de volta a sua dignidade.”

Partilha de experiências inspiradoras

A mesa dedicada ao tema “Como criar clubes de leitura e fazer os livros circularem” proporcionou um mergulho nas experiências de quatro mulheres engajadas na promoção da leitura em contextos desafiadores.

Elaine Dal Gobbo, jornalista, escritora e produtora cultural, juntamente com Kátia Fialho, escritora e roteirista, compartilhou a notável iniciativa de organizar o livro “Um lugar de (e que) fala”, contendo contos de mulheres privadas de liberdade da penitenciária feminina de Cariacica, Espírito Santo. Inspiradas pelo livro “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus, as organizadoras conduziram oficinas de leitura e escrita, proporcionando um espaço não apenas para desenvolver habilidades literárias, mas para construir uma ponte entre a sociedade e essas mulheres, que em sua maioria são invisibilizadas. Kátia enfatizou que o livro é “um grito de liberdade” e uma conquista para seres humanos que anseiam por visibilidade.

Elaine e Kátia destacaram a urgência de ampliar as vozes dessas mulheres, muitas vezes ignoradas pela sociedade, evidenciando a invisibilidade de seus corpos. Além disso, abordou as desigualdades sistêmicas no sistema penitenciário, especialmente a dupla exclusão e culpabilização enfrentada por mulheres encarceradas.

Valdete Gomes Ribeiro, arte-educadora e Agente de Segurança Penitenciária de São Paulo, compartilhou sua experiência na implementação de clubes de leitura em unidades prisionais. Inicialmente sem a possibilidade de remição e impulsionados pelo prazer da leitura e do encontro, esses clubes se tornaram agentes de transformação. Valdete compartilhou a história de um participante que, motivado pela leitura do clube, conquistou uma bolsa integral em Engenharia Civil após realizar o Enem. “O livro é realmente um resgate, um resgate de esperança, um resgate de sonho”, enfatizou.

Mayumi Maciel, gestora de comunicação do Instituto Aurora – Educação para os Direitos Humanos, trouxe a perspectiva da instituição em atividades de leitura com meninas em centros socioeducativos e mulheres encarceradas. O Instituto utiliza a literatura como uma ferramenta-chave para promover a educação em direitos humanos, incorporando metodologias de Justiça Restaurativa e círculos de diálogos. Mayumi destacou como essas práticas estimulam a construção coletiva do conhecimento, proporcionando um espaço para discussões estruturadas sobre temas essenciais, incluindo relacionamentos abusivos, sonhos e representatividade.

Todos os dias foram encerrados em saraus, com a participação de pessoas privadas de liberdade que participam de clubes de leitura. Alisson Paiva, do Complexo Penal Regional de Pau dos Ferros, no Rio Grande do Norte, apresentou o poema “Abrindo Portas para um Mundo Melhor”, que narra a trajetória das práticas de leitura na unidade. Confira um trecho.

“Hoje estamos aqui para contar nossa história.
Uma história de luta, luta que fica para sempre em nossa memória.
Luta pela leitura e educação de nossa unidade,
que vem abrindo portas e mudando nossa realidade.
Este lugar há muito tempo já existia, mas em livros não se falava.
Em ressocialização, ninguém acreditava.
Não sabia que a leitura no cárcere muito adiantava para fazer interno sonhar
com aquilo que desejava.
Foi quando, em 2016, uma luz aqui surgia.
Chegou o primeiro livro e o interno logo sentia,
que aquilo que tanto desejava e há muito tempo esperava,
vinha à unidade para mudar a situação (…)”.

Reveja os três dias de evento no canal do CNJ no YouTube:

Texto: Natasha Cruz
Edição: Nataly Costa
Agência CNJ de Notícias

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