A leitura como prática de transformação social foi o tema da terceira edição da Jornada de Leitura no Cárcere, encerrada na quinta-feira (1º/12). A iniciativa conjunta entre Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Observatório do Livro e da Leitura teve transmissão ao vivo pelo YouTube e foi acompanhada nos três dias por mais de 30 mil pessoas – dessas, mais da metade eram pessoas privadas de liberdade em 20 unidades da federação.
“O CNJ está ao lado dos estados e de seus representantes para apoiar na implementação de medidas que garantam a universalidade do acesso ao livro e à leitura. É urgente consolidar a legalidade e o cumprimento de normas como essa, que devem servir de parâmetro para a gestão prisional no Brasil. O direito ao livro e à leitura se inclui no rol de direitos fundamentais”, explicou o juiz auxiliar da presidência do CNJ com atuação no Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e Sistema de Medidas Socioeducativas (DMF) Jônatas dos Santos Andrade.
O presidente do Observatório do Livro e da Leitura, Galeno Amorim, falou sobre a importância da leitura para a formação social das pessoas. “A leitura abre portas, permite que o indivíduo tenha contato com informações, opiniões e pontos de vistas diferentes dos seus. Isso é fundamental para estimular a criatividade, gerar mais tolerância ao outro e maior compreensão do mundo”.
O evento foi realizado pelo CNJ no escopo do programa Fazendo Justiça, parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e importante apoio do Departamento Penitenciário Nacional para incidir em desafios no campo da privação de liberdade.
Diretor substituto de políticas penitenciárias do Depen, Cristiano Torquato, falou sobre a evolução das políticas voltadas às práticas educativas no sistema penitenciário, especialmente nos últimos dois anos. “O Depen não só apoia, como fomenta a educação, o ensino médio, o ensino superior, a remição pelo estudo pelo esporte e atividades culturais”, disse.
A coordenadora da Unidade de Governança e Justiça para o Desenvolvimento do Pnud Brasil, Moema Freire, apontou que a prática da leitura e de atividades educativas para pessoas em privação de liberdade oferece oportunidades de reconstrução de trajetórias de vida. “Que as iniciativas promovidas no âmbito dessa Jornada possam ser um marco, com resultados cada vez mais efetivos no processo de garantia dos direitos e do acesso à leitura e de ampliação de realidades. É assim que vamos seguir progredindo na construção de uma sociedade cada vez mais justa, pacífica e inclusiva para todos e todas”, afirmou Freire.
Resolução 391 e desafios
Dois painéis durante o evento debateram a aplicação da Resolução CNJ n. 391/2021, que define a remição de pena por meio de práticas sociais e educativas. Mediada pela juíza-auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça do Acre, Andrea Brito, uma das mesas trouxe as experiências e desafios enfrentados por juízes de diversos estados do Brasil. “Há muito desconhecimento, tanto da remição pela leitura, quanto de formas de aplicação da Resolução”, pontuou a juíza auxiliar do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF) do Tribunal de Justiça da Bahia, Liz Rezende. A magistrada partilhou uma série de estratégias em curso no estado para suprir as lacunas observadas.
De Sergipe, o juiz coordenador do GMF do estado, Hélio de Figueiredo Mesquita Neto, disse considerar poucos os 48 dias por ano que podem ser alcançados por meio da remição de pena. Já a juíza de execução penal Cinthia Cibele, do Rio Grande do Norte, comemorou avanços em seu território. “Em Mossoró, a remição por práticas educativas e culturais não chegava a 10% da população prisional. Com a Resolução, esse número já está em 60%”. Explicou ainda que as atividades acabaram por atingir também os familiares, que passaram a participar das rodas de leitura.
O coordenador do eixo de Cidadania do Programa Fazendo Justiça, Felipe Athayde, retomou a trajetória até a aprovação da ResoluçãoCNJ n. 391/2021. “Durante a primeira Jornada da Leitura no Cárcere, em 2020, falamos bastante sobre a Recomendação n.44/2013 do CNJ e percebemos as suas limitações. Embora fosse um avanço face ao que inexistia anteriormente, o direito ao livro e à leitura em espaços de privação de liberdade acabava sendo instrumentalizado como um sistema de punição e produção de privilégios”, disse . A partir dessa análise, desenvolveu-se a Resolução 391, que traz a perspectiva de fazer com que o acesso ao livro e a leitura não seja um privilégio no contexto de privação de liberdade, mas um direito universal. “Precisamos avançar para que esse direito seja respeitado e garantido. Por conta disso, o CNJ e o Depen publicaram, em seguida, duas orientações técnicas, extremamente pragmáticas e procedimentais. Esse é o desafio que está posto”, finalizou Athayde.
Ressignificação por meio da literatura
O debate também teve a participação de educadores, diretores de escolas, servidores e escritores. A potiguar Amanda Karoline, que estava em privação de liberdade quando participou da segunda edição da Jornada de Leitura no Cárcere, participou do evento deste ano já na condição de egressa e falando sobre seu livro, “De Tambaba à prisão”. Nele, narra o histórico de violências sofridas antes de ser condenada como mandante da morte do marido. “Quando voltei do júri popular, com uma sentença de 19 anos, uma policial penal me perguntou: ‘por que você não escreve sua história?'”, relembrou. “Percebi que não estou só falando da minha história. Quero que mais mulheres consigam vencer a vergonha e a opressão que a violência doméstica traz.
Autora do livro “Borboletas enjauladas”, a escritora Márcia Mendes, que passou nove meses em privação de liberdade, considera que atividades educacionais, esportivas, sociais e laborais são fundamentais para diminuir os impactos do cárcere. “Quando saí, em 2020, estávamos no início da pandemia de Covid-19. Era um momento de tanta dor, que não quis escrever sobre as dores de cárcere. Meu livro traz histórias que mostram que, mesmo naquele lugar insalubre, o amor continua a existir”, disse a escritora.
No último dia de evento, a Escola Estadual Dênio Moreira de Carvalho, junto da Penitenciária Dênio Moreira de Carvalho, em Ipaba (MG), foi palco de um sarau literário. Vestidos com camisetas da seleção brasileira, para celebrar a Copa do Mundo, os internos leram poesias e textos próprios e de colegas, sobre recomeços, sabedoria, saudades e o cárcere. O estudante Cleiton Alves de Freitas recitou um poema de sua autoria.
“Eu não sabia o que eu sei,
pensei e pesquisei ao ponto de me tornar um rei
Percebi que me esforcei.
De nada aproveitei, fracassei.
Mas me reinventei, conquistei o que eu sei
Então busquei a sabedoria e analisei
Quis eu saber que nada serei
Recomeçar é tudo”
Políticas para leitura no cárcere
Desde 2020, o CNJ tem atuado por meio do programa Fazendo Justiça em iniciativas para potencializar ferramentas de apoio a magistradas, magistrados e equipes técnicas. Além de um grupo de trabalho criado para discutir as bases de um Plano Nacional de Fomento à Leitura nos Ambientes de Privação de Liberdade, estão sendo trabalhados manuais com informações atualizadas, metodologias e fluxos de referência para a universalização da leitura nos sistemas socioeducativo e prisional.
Com lançamento previsto para o início de 2023, o Censo Nacional de Práticas de Leitura no Sistema Prisional trará um mapeamento inédito da oferta de práticas de leitura realizado nas 1.340 unidades prisionais estaduais do Brasil – o objetivo é potencializar as ações do Plano Nacional a ser lançado nos próximos meses. Dados preliminares do levantamento indicam que 40% das unidades prisionais brasileiras ainda não dispõem de bibliotecas ou espaços de leitura.
Reveja os três dias de evento no canal do CNJ no YouTube:
3ª Jornada de Leitura no Cárcere – Dia 1
3ª Jornada de Leitura no Cárcere – Dia 2
3ª Jornada de Leitura no Cárcere – Dia 3
Texto:Renata Assumpção
Edição: Nataly Costa
Agência CNJ de Notícias