Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO - 0007394-82.2023.2.00.0000
Requerente: INSTITUTO DE ADVOCACIA RACIAL E AMBIENTAL - IARA
Requerido: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - TJRJ e outros

 

RECURSO ADMINISTRATIVO EM PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. ALEGAÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DAS RESOLUÇÕES CNJ N. 75 E 203, DO EDITAL DE ABERTURA DO XLIX CONCURSO PARA INGRESSO NA MAGISTRATURA DE CARREIRA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO E PRÁTICA DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL INDIRETA POR PARTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. INOCORRÊNCIA. ILAÇÕES QUE NÃO ENCONTRAM SUSTENTAÇÃO NO CONJUNTO PROBATÓRIO. MANUTENÇÃO INTEGRAL DA DECISÃO MONOCRÁTICA QUE JULGOU IMPROCEDENTE O PEDIDO. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.

I – Irresignação contra suposto descumprimento do prazo previsto no art. 50 da Resolução CNJ n. 75 pela Comissão do XLIX Concurso para Ingresso na Magistratura de Carreira do Estado do Rio de Janeiro, que teria deixado de observar a antecedência necessária para a convocação de candidatos cotistas negros (pretos e pardos) e indígenas para a realização da prova discursiva.

II – Restou amplamente demonstrado que a convocação de todos os candidatos habilitados para a segunda etapa foi realizada com a antecedência exigida pela mencionada Resolução. 

III – Não houve surpresa, uma vez que os candidatos estavam previamente cientificados de que a avaliação pela Comissão de Heteroidentificação ocorreria logo após a divulgação dos resultados da prova objetiva e, de igual forma, que a ela se sucederia a convocação para a segunda etapa do certame (itens 7.6 e 10.9 do Edital inaugural). 

IV – O Edital n. 14/2023, que promoveu a convocação à segunda etapa, ressalvou expressamente a condição daqueles que ainda se submeteriam ao procedimento de heteroidentificação. 

V – A necessidade de que os candidatos cotistas se deslocassem ao Rio de Janeiro em uma oportunidade a mais do que os da ampla concorrência foi essencial à própria efetividade do sistema de cotas.

VI – Aqueles que se candidatam a um concurso público devem estar prontos para as sucessivas fases do certame, devendo arcar com as despesas decorrentes da participação em todas as etapas e procedimentos, nos termos do art. 83 da Resolução CNJ n. 75.

VII – O Aviso n. 18/2023 estava em absoluta consonância com o item 7.15 do Edital, de modo que, uma vez não enquadrados na condição de negros ou indígenas e, até que fossem julgados os recursos, os candidatos ostentavam a possibilidade de concorrer às vagas reservadas, devendo, portanto, prosseguir no concurso.

VIII – Não houve demonstração de efetivo prejuízo aos candidatos cotistas, de modo que danos hipotéticos não autorizam a paralisação do Concurso e, muito menos, a anulação do Edital n. 14/2023 e atos subsequentes.

IX – Nada há nos autos que comprove a existência de ônus desmedido e impedimento econômico para os candidatos beneficiários da reserva de vagas para negros, indígenas e hipossuficientes, sendo impossível atribuir, exclusiva e automaticamente, a ausência de candidatos nas etapas do concurso ao motivo apontado pelo Instituto requerente.

X –  A demonstração de prejuízo concreto cabe à parte que suscita o vício e não se vislumbra possibilidade de inverter o ônus, de modo a obrigar o TJRJ a fazer prova negativa de prejuízo aos candidatos cotistas.

XI  Recurso Administrativo a que se conhece e se nega provimento.

 ACÓRDÃO

O Conselho, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do Relator. Presidiu o julgamento o Ministro Luís Roberto Barroso. Plenário Virtual, 9 de fevereiro de 2024. Votaram os Excelentíssimos Conselheiros Luís Roberto Barroso, Luis Felipe Salomão, Guilherme Caputo, José Rotondano, Mônica Autran, Jane Granzoto, Renata Gil, Daniela Madeira, Giovanni Olsson, Pablo Coutinho Barreto, João Paulo Schoucair, Marcos Vinícius Jardim Rodrigues, Marcello Terto, Daiane Nogueira e Luiz Fernando Bandeira de Mello.

Conselho Nacional de Justiça

Autos: PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO - 0007394-82.2023.2.00.0000
Requerente: INSTITUTO DE ADVOCACIA RACIAL E AMBIENTAL - IARA
Requerido: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - TJRJ e outros

RELATÓRIO

 

Trata-se de RECURSO ADMINISTRATIVO interposto pelo INSTITUTO DE ADVOCACIA RACIAL E AMBIENTAL (IARA), em face de decisão que julgou improcedente o PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO (PCA) sob exame e determinou seu arquivamento, com fundamento no artigo 25, inciso X, do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça (RICNJ)[1] (ID n. 5369075). 

O relatório da Decisão monocrática recorrida descreve adequadamente o objeto da controvérsia, como se vê a seguir (ID n. 5365842):

Trata-se de PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO (PCA), com pedido liminar, formulado pelo INSTITUTO DE ADVOCACIA RACIAL E AMBIENTAL (IARA), em face do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (TJRJ) e OUTROS, por meio do qual se insurge contra suposta ilegalidade praticada na condução do XLIX Concurso para Juiz de Direito Substituto do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (ID n. 5357732).

O Requerente alega que (grifos no original):

i) é “pessoa jurídica de direito privado, de fins não lucrativos, legalmente instituída, tem por finalidade institucional a promoção de ações e debates sobre a responsabilidade social-ambiental e o racismo, com foco na promoção e defesa dos direitos da população afro-brasileira e meio-ambiente”;

ii) tomou conhecimento de práticas de discriminação indireta por parte da Comissão do mencionado Concurso, que “de maneira totalmente desarrazoada estabeleceu a data de realização da segunda etapa do certame em questão, sem a observância do prazo estabelecido no art. 50 da Resolução CNJ n.º 75/2009 para os cotistas negros e indígenas que concorrem pelas vagas reservadas”;

iii) os candidatos autodeclarados negros (pretos ou pardos) e indígenas foram convocados para submissão à avaliação da Comissão de Heteroidentificação, designada para o dia 11/11/2023 (Edital n. 10/2023, publicado em 23/10/2023);

iv) “no dia 08/11/2023, por intermédio do Edital n.º 14/2023, publicou-se a convocação para realização da segunda etapa do certame, a ser realizada no dia 26/11/2023, em que pese não concluída a etapa de inscrição definitiva dos candidatos cotistas que concorrem às vagas reservadas a negros – pretos ou pardos e indígenas”;

v) “a despeito de inexistir previsão no edital acerca da data de divulgação do resultado preliminar da heteroidentificação, de prazo para interposição de recursos e resultado definitivo, a Comissão do concurso, estranhamente, convocou todos os candidatos autodeclarados negros e indígenas para a realização da prova discursiva, esvaziando a heteroidentificação e desrespeitando o prazo estabelecido no art. 50 da Resolução CNJ n.º 75/2009;

vi) “o estabelecimento aleatório das datas de avaliação fenotípica e realização de provas discursivas pela Comissão de Concurso traduz discriminação racial indireta nos moldes do art. 1º, item 2, ou ainda, discriminação múltipla ou agravada (art. 1º, item 3), ambos do Decreto nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022, uma vez que promove a exclusão, por razões financeiras, dos cotistas negros e indígenas que em menos de 15 (quinze) dias se deslocarão 02 (duas) vezes para a turística e inflacionada capital fluminense”;

vii) em afronta ao disposto no art. 50 da Resolução CNJ n. 75, a Comissão do Concurso deixou de observar a antecedência necessária para a convocação de candidatos cotistas negros (pretos e pardos) e indígenas para a realização da prova discursiva;

viii) o ato do TJRJ viola, ainda, a Resolução CNJ n. 203, o Estatuto da Igualdade Racial, a Lei n. 12.990/2014, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, a ratio decidendi firmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 186/DF e da Ação Direta Constitucionalidade n. 41/DF e os itens 7.6, 7.14 e 7.15 do Edital de abertura do XLIX Concurso;

ix) “este é o terceiro concurso com previsão de reserva de 20% das vagas para candidatos pretos e pardos no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e, dos 71 candidatos aprovados nos concursos XLVII (18 juízes) e XLVIII (53 juízes), somente 04 (quatro) são cotistas negros (5%); e

x) “a realização de heteroidentificação e provas de segunda fase em um intervalo de 17 dias resulta em um impacto desproporcional sobre os candidatos cotistas.

Diante disso, pugna pela concessão de “tutela de urgência para determinar ao Presidente da Comissão do XLIX Concurso para ingresso no cargo de Juiz Substituto do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que proceda à imediata suspensão do concurso público, obstando a continuidade das demais fases até a conclusão do julgamento deste Procedimento de Controle Administrativo.

No mérito, requer a procedência do “presente Procedimento de Controle Administrativo, para reconhecer a PATENTE ILEGALIDADE e afronta aos princípios da legalidade, moralidade, razoabilidade, da proporcionalidade e o desrespeito à Resolução CNJ n.º 75/2009, para ANULAR o Edital n.º 14/2023 e, determinar o estabelecimento de um calendário prévio de 2ª etapa do certame que não prejudique os candidatos negros, indígenas e hipossuficientes inscritos no XLIX Concurso para Ingresso na Magistratura do TJRJ, nos termos do art. 50 Resolução CNJ nº 75/2009”.

Os autos foram distribuídos, por sorteio, à minha relatoria, oportunidade em que determinei a intimação, ad cautelam, do Tribunal requerido para apresentar informações preliminares acerca do pleito, bem como a do Requerente para juntada de documentos necessários ao peticionamento (ID n. 5358276).

O IARA encartou ao procedimento Ato Constitutivo, Atas e Estatuto (ID n. 5359541, 5360792 e 5360793). Por sua vez, o TJRJ prestou informações, destacando que ambas as convocações observaram o art. 50 da Resolução CNJ n. 75 e que o procedimento de heteroidentificação foi realizado na data aprazada, cujo resultado foi divulgado em 14/11/2023 (ID n. 5360802/5360805).

Em réplica, o Instituto requerente informou que há 95 (noventa e cinco) candidatos autodeclarados negros ou indígenas que, no resultado divulgado, sujeito a recurso, tiveram a heteroidentificação indeferida por “ausência de fenotipia”, e, em caso de êxito na pretensão recursal, terão de 4 (quatro) a 6 (seis) dias de prazo para comprar passagens e reservar hospedagem na capital fluminense (ID n. 5362032).

Reiterou os pedidos, destacando que a segunda etapa será realizada sem a publicação de um edital de convocação contendo a lista consolidada (definitiva) dos candidatos negros e indígenas, a exemplo do que ocorre em todos os concursos com previsão de ações afirmativas.

É o relatório.

  

Em sua peça recursal (ID n. 5369075), o Recorrente insiste nos argumentos inicialmente apresentados, notadamente quanto à alegação de que o prazo previsto no art. 50 da Resolução CNJ n. 75 não teria sido respeitado em relação aos candidatos que dependiam do resultado da heteroidentificação, os quais estariam sujeitos a regras diferentes das estabelecidas para os candidatos de ampla concorrência (“convocação sob condição” para segunda etapa).

Afirma que, em se tratando de discriminação indireta, caberia ao Tribunal comprovar que o desrespeito ao prazo não resultou em impedimento econômico ou em ônus excessivo aos candidatos cotistas, uma vez que é ele o detentor dos dados necessários para tanto, atraindo a aplicação analógica da inversão do ônus da prova (art. 373, § 1º, do Código de Processo Civil).

Assevera que o CNJ suspendeu ao menos dois certames similares, também em razão de prazos exíguos que dificultavam o planejamento financeiro dos candidatos (PCA n. 0000807-44.2023.2.00.0000 e PCA n. 0004358-81.2013.2.00.0000 - ID n. 5369107).

Aduz que, no Aviso n. 18/2023, o TJRJ atribuiu efeito suspensivo aos recursos interpostos em face do resultado da heteroidentificação, o que configuraria inovação em relação às previsões do edital e teria prejudicado os candidatos que deixaram de recorrer por desconhecer essa possibilidade.

Registra que teria identificado pessoas “indiscutivelmente brancas” dentre as convocadas para a segunda etapa por meio do Aviso n. 18/2023, situação que revelaria tolerância do TJRJ com os “treineiros” e “afroconvenientes”.

Ao final, requer:

a) a concessão, em sede liminar e de modo inaudita altera pars, de tutela de urgência para determinar ao Presidente da Comissão do XLIX Concurso para ingresso no cargo de Juiz Substituto do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que proceda à imediata suspensão do concurso público, obstando a continuidade das demais fases até a conclusão do julgamento deste Procedimento de Controle Administrativo pelo Plenário; tendo em vista os novos fatos trazidos ao conhecimento do CNJ;

b) a reforma da decisão hostilizada, de sorte que seja reconhecida a PATENTE ILEGALIDADE e afronta aos princípios da legalidade, moralidade, razoabilidade, da proporcionalidade e o desrespeito à Resolução CNJ n.º 75/2009, para ANULAR o Edital n.º 14/2023 e todos os “Avisos” subsequentes que ostentam natureza e conteúdo de verdadeiras convocações editalícias;

c) o estabelecimento de um calendário prévio de 2ª etapa do certame que não prejudique os candidatos negros, indígenas e hipossuficientes inscritos no XLIX Concurso para Ingresso na Magistratura do TJRJ, nos termos do art. 50 Resolução CNJ nº 75/2009. (grifos e destaques no original) 

 

Em 29/11/2023, indeferi o pedido liminar, destaquei que as demais questões, revolvidas pelo Instituto Requerente e devidamente analisadas na Decisão monocrática recorrida, seriam apreciadas oportunamente pelo Plenário desta Casa e determinei a intimação do IARA para ciência e do TJRJ para apresentação de contrarrazões ao Recurso Administrativo interposto (ID n. 5374730).

Em sua manifestação, o Tribunal requerido reiterou que todas as convocações respeitaram o prazo de 15 (quinze) dias de antecedência, exigido na Resolução CNJ n. 75 (ID n. 5398831).

Sustentou que não lhe compete demonstrar a inexistência de prejuízo aos candidatos cotistas em razão da “impossibilidade de se produzir prova negativa, referente a fato da vida pessoal dos candidatos; [d]a prevalência do interesse público; [d]a anterioridade da disposição das regras do concurso público em edital, [d]a autonomia administrativa dos Tribunais, dentre outros”.

Aduziu que a pretensão do Recorrente se limita à tutela de direitos individuais, “sem ao menos deter legitimidade para demandar direitos de terceiros” e que a divulgação da “relação nominal de candidatos que interpuseram recurso contra o resultado do procedimento de heteroidentificação que prosseguiriam no certame até o julgamento definitivo dos recursos interpostos” afasta qualquer alegação de prejuízo aos candidatos.

É o relatório.



[1] Art. 25. São atribuições do Relator: [...] X - determinar o arquivamento liminar do processo quando a matéria for flagrantemente estranha às finalidades do CNJ, bem como a pretensão for manifestamente improcedente, despida de elementos mínimos para sua compreensão ou quando ausente interesse geral;

 

 

Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO - 0007394-82.2023.2.00.0000
Requerente: INSTITUTO DE ADVOCACIA RACIAL E AMBIENTAL - IARA
Requerido: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - TJRJ e outros

 

VOTO

 

O CONSELHEIRO GIOVANNI OLSSON (Relator):

I – DO CONHECIMENTO

Conforme relatado, na Decisão que proferi em 29/11/2023, não vislumbrei razão para reconsiderar o decisum recorrido, mesmo porque o Recorrente não apresentou nenhum fundamento ou fato novo capaz de provocar o juízo de retratação do entendimento adotado.

Por outro lado, o Recurso em tela é cabível na espécie, na medida em que foi protocolado no quinquídio regimental, motivo pelo qual dele conheço, nos termos do artigo 115, §1º, do RICNJ[1]. 

 

II – DO MÉRITO 

O Recorrente busca reformar a Decisão monocrática que concluiu pela improcedência do pedido. Por inteira pertinência, transcrevo-a (ID n. 5365842):

De início, verifica-se que a análise exauriente é perfeitamente possível, podendo o procedimento ser decidido de plano, uma vez que há nos autos elementos suficientes para o julgamento integral, que pressupõe a desnecessidade de dilação probatória.

Assim, julgo prejudicado o exame da liminar e passo, desde logo, à análise do pleito, com fundamento no artigo 25, inciso VII, do RICNJ1.

Conforme relatado, o Requerente acorre ao CNJ com o objetivo de anular/desconstituir o ato administrativo, praticado pela Comissão do XLIX Concurso para Ingresso na Magistratura de Carreira do Estado do Rio de Janeiro, consubstanciado na convocação para a prova discursiva em suposta inobservância do prazo previsto no art. 50 da Resolução CNJ n. 75.

Para tanto, sustenta, em síntese, que:

i) o Tribunal deveria ter observado o prazo de 15 (quinze) dias entre a divulgação do resultado definitivo da heteroidentificação e a convocação para a segunda etapa do certame;

ii) impor aos candidatos cotistas a obrigação de se deslocar ao Estado do Rio de Janeiro por duas vezes em curto espaço de tempo caracteriza discriminação racial indireta ou discriminação múltipla ou agravada; e

iii) há risco evidente de que a prova será aplicada com a exclusão (socioeconômica) de inúmeros candidatos cotistas negros, indígenas e hipossuficientes, que, ao contrário daqueles da ampla concorrência, não disporão de prazo suficiente para aquisição antecipada de passagens e reserva de hotéis.

Razão não lhe assiste.

A princípio, cumpre destacar que o Edital de Abertura do XLIX Concurso para Ingresso na Magistratura de Carreira do Estado do Rio de Janeiro estabeleceu:

7.6. Após a divulgação dos resultados da prova objetiva, os(as) candidatos(as) que optaram por concorrer às vagas reservadas aos(às) pretos(as) ou indígenas, ainda que aprovados(as) dentro do número de vagas oferecidas à ampla concorrência, serão submetidos(as) à avaliação da Comissão de Heteroidentificação, conforme o artigo 5º, §5º, da Resolução nº 203/2015 do CNJ (incluído pela Resolução nº 457, de 27.4.2022), que emitirá parecer quanto à confirmação da condição racial declarada no ato da inscrição preliminar, relativamente a condição de pessoa preta ou indígena e o fenótipo do(a) candidato(a).

[...]

10.9. Apurados os resultados da prova objetiva e identificados(as) os(as) candidatos(as) que lograram a classificação, a Presidente da Comissão de Concurso fará publicar edital com a relação dos(as) candidatos(as) habilitados(as) a se submeterem à segunda etapa do certame.

(grifo nosso)

 

É de se ver que os candidatos estavam previamente cientificados de que a avaliação pela Comissão de Heteroidentificação ocorreria logo após a divulgação dos resultados da prova objetiva e, de igual forma, que a ela se sucederia a convocação para a segunda etapa do certame.

E assim procedeu o Tribunal. Senão vejamos extrato das informações colhidas de seu sítio de Internet2:

 

 

Note-se, ademais, que o art. 50 da Resolução CNJ n. 75 é expresso ao dispor:

Art. 50. Com antecedência mínima de 15 (quinze) dias, o presidente da Comissão de Concurso convocará, por edital, os candidatos aprovados para realizar as provas escritas em dia, hora e local determinados, nos termos do edital. (grifo nosso)

 

Nesse contexto, a teor das informações prestadas, verifica-se que a convocação para a realização da segunda etapa foi realizada com a antecedência exigida pela Resolução CNJ n. 75. Por inteira pertinência, transcreva-se excerto da manifestação do TJRJ:

[...]

Em 23/10/2023, houve a publicação do Edital n°. 10/2023, com a convocação dos candidatos autodeclarados negros ou indígenas, para o procedimento de heteroidentificação designado para o dia 11/11/2023

A convocação para o evento observou a antecedência de 18 dias corridos da data do procedimento de heteroidentificação, atendendo, portanto, aos prazos estabelecidos pelo Conselho Nacional de Justiça.

Em 08/11/2023, houve a publicação do Edital 14/2023, com a convocação dos candidatos habilitados à segunda etapa do XLIX Concurso para ingresso na Magistratura de Carreira do Estado do Rio de Janeiro, para realização da prova discursiva no dia 26/11/2023.

Como se verifica, entre a data de publicação da convocação para a prova discursiva até a sua aplicação, há um intervalo de 17 dias corridos, em cumprimento ao período de antecedência do artigo 50, da Resolução nº 75/2009 do Conselho Nacional de Justiça - CNJ.

Dessa forma, ambas as convocações publicadas observaram a antecedência de 15 (quinze) dias prevista no artigo 50, da Resolução CNJ nº 75/2009.

Quanto à alegação da não observância do lapso temporal entre o resultado do procedimento de heteroidentificação e a data da aplicação da prova discursiva, observe-se que o Edital 14/2023 fez expressa a ressalva quanto aos candidatos que se submeteriam ao procedimento de heteroidentificação, remetendo ao edital de convocação (Edital 10/2023) e ao item do edital do concurso que prevê a necessidade de submissão ao referido procedimento.

[...]

Por fim, o procedimento de heteroidentificação foi realizado na data aprazada, tendo sido o resultado divulgado por publicação no DJERJ de 14/11/2023 através do Edital nº 15/2023.

Não há, portanto, prejuízo aos candidatos, que poderão participar da prova discursiva do XLIX Concurso para ingresso na Magistratura de Carreira do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, desde que aprovados na heteroidentificação, tendo sido obedecidos os prazos fixados pela Resolução CNJ para a convocação.

[...]. (ID n. 5360802 – grifo nosso)

 

Com efeito, o Edital n. 14/2023 foi taxativo ao convocar, com a antecedência necessária, todos os candidatos habilitados, ressalvando expressamente a condição daqueles que ainda se submeteriam ao procedimento de heteroidentificação. Vejamos:

 

 Por outro lado, o Instituto requerente não se desincumbiu de demonstrar a suposta discriminação racial que teria sido perpetrada pela Comissão do Concurso ao impor aos candidatos cotistas a obrigação de se deslocar ao Estado do Rio de Janeiro por duas vezes em curto espaço de tempo.

Além de não configurar surpresa, uma vez que a realização sucessiva das duas etapas estava prevista, como se viu, no Edital inaugural (itens 7.6 e 10.9), a necessidade de submissão à Comissão de Heteroidentificação visa exatamente garantir a observância do princípio da igualdade em sua dimensão substancial.

A esse respeito, vale transcrever excerto do voto proferido pelo Conselheiro Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho no julgamento do Ato Normativo que instituiu a obrigatoriedade da comissão de heteroidentificação nos concursos para ingresso na magistratura:

[...]

2. COMISSÃO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO

Como consta do item anterior, atualmente, em regra, basta a autodeclaração da pessoa que se identifica como preta ou parda para que possa concorrer no concurso de magistratura pelo sistema dedicado às cotas raciais. É fato que a mera exigência de declaração “de próprio punho” é compatível com a presunção de boa-fé, regra no Direito brasileiro. [...]

Entretanto, na atualidade, o que se tem visto é que a autodeclaração tem ensejado desvios indesejados nos concursos de magistratura, uma vez que algumas pessoas brancas vêm se inscrevendo como negras, de maneira a se darem a chance de ir para fases subsequentes do concurso e, com isso, terem a oportunidade de um treinamento real de realização de provas discursiva, de sentenças e até oral, dada a chance de seguirem no concurso mesmo tendo obtido notas inferiores à nota de corte da concorrência ampla (sistema não cotista para negros e pessoas portadoras de deficiências). É o que se chama, no universo dos candidatos de concursos públicos, de “treineiros” [14].

[...]  

(CNJ - ATO - Ato Normativo - 0002241-05.2022.2.00.0000 - Rel. VIEIRA DE MELLO FILHO - 349ª Sessão Ordinária - julgado em 19/04/2022) (grifo nosso)

 

Além dos mencionados “treineiros”, não se desconhece que os movimentos negros têm feito denúncias para combater indícios de fraudes raciais, bem como a chamada “afroconveniência” em concursos e vestibulares3, o que evidencia que muitas vezes não há dúvida sobre a identidade de uma pessoa parda, mas deliberado abuso e desvirtuamento do sistema.

Nessa senda, a necessidade de que os candidatos cotistas se desloquem ao Rio de Janeiro uma vez a mais do que os demais candidatos é condição obrigatória e essencial à própria efetividade do sistema de cotas.

Ademais, todos aqueles que se candidatam a um concurso público devem estar prontos para as sucessivas fases do certame. Não por outro motivo, a Resolução CNJ n. 75 estabelece:

Art. 83. Correrão por conta exclusiva do candidato quaisquer despesas decorrentes da participação em todas as etapas e procedimentos do concurso de que trata esta Resolução, tais como gastos com documentação, material, exames, viagem, alimentação, alojamento, transporte ou ressarcimento de outras despesas. (grifo nosso)

 

O planejamento financeiro é questão individual, de modo que o prejuízo hipotético dos candidatos cotistas não pode justificar a intervenção excepcional do CNJ.

Nesse ponto, cumpre destacar que não se vislumbra em que medida a ausência de divulgação de uma “lista consolidada (definitiva) dos candidatos negros e indígenas” impacte na realização da segunda etapa do certame, uma vez que, repita-se, todos os candidatos habilitados foram regular e previamente convocados.

Merece análise, ainda, o argumento utilizado pelo Requerente de que a segunda etapa será aplicada com a exclusão (socioeconômica) de inúmeros candidatos cotistas negros, indígenas e hipossuficientes.

Ora, conforme exposto na segunda manifestação do IARA, após a divulgação do resultado da avaliação da Comissão de Heteroidentificação, o cenário revela a existência de 220 (duzentos e vinte) aprovados na verificação fenotípica, 83 (oitenta e três) ausentes e 95 (noventa e cinco) reprovados por ausência de fenotipia.

Note-se que as medidas intentadas pelo Instituto requerente – suspensão do Concurso e definição de um calendário prévio de realização da segunda etapa – não aproveitariam de forma automática aos candidatos reprovados, que, em tese, ainda dependeriam de revisão da decisão da Comissão de Heteroidentificação para poderem realizar a prova.

Ademais, não há nos autos informações quanto ao número de candidatos cotistas que possuem nota suficiente para figurar na lista destinada à ampla concorrência e que, portanto, não seriam alcançados pelo suposto prejuízo alegado pelo Instituto.

Tampouco se sabe quantos candidatos não aprovados por ausência de fenotipia recorreram do resultado da avaliação pela Comissão de Heteroidentificação.

Nesse cenário, não há demonstração de prejuízo aos candidatos cotistas, regular e previamente convocados, e agora aprovados na avaliação da mencionada Comissão.

De igual forma, a existência de candidatos que sequer compareceram, bem assim dos que não foram aprovados na verificação fenotípica, não autoriza a paralisação liminar do Concurso, muito menos a anulação do Edital n. 14/2023, como pretende o Requerente.

Havendo elementos suficientes para se concluir que a atuação do Tribunal observou o regramento contido na Resolução CNJ n. 75 e respeitou o princípio da vinculação ao instrumento convocatório, deve-se prestigiar sua autonomia administrativa para conduzir o certame. Nesse sentido:

RECURSO ADMINISTRATIVO. PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (TJRJ). CONCURSO PÚBLICO PARA O PROVIMENTO DE VAGAS E FORMAÇÃO DE CADASTRO DE RESERVA EM CARGOS DE ANALISTA JUDICIÁRIO. RESOLUÇÃO CNJ N. 203/2015. COTAS RACIAIS. UNIVERSO DE PROVAS DISCURSIVAS DE CANDIDATOS COTISTAS A SEREM CORRIGIDAS. INTERPRETAÇÃO ADOTADA PELO TJRJ QUE POSSUI AMPARO EM EXEGESE RAZOÁVEL DA LEGISLAÇÃO APLICÁVEL À ESPÉCIE E QUE TEM SIDO REFERENDADA PELO PODER JUDICIÁRIO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE FLAGRANTE. INVIABILIDADE DE INTERVENÇÃO DO CNJ.

1. Pretensão de ampliação do universo de provas discursivas de candidatos negros a serem corrigidas, mediante elaboração da lista de cotistas sem o cômputo de candidatos que obtiveram pontuação suficiente na prova objetiva para figurar na lista de ampla concorrência.

2. A política de cotas raciais, instituída por este Conselho por meio da Resolução n. 203/2015, apresenta como objetivo primário o efetivo preenchimento das vagas disponibilizadas aos candidatos negros, e não sua mera figuração nas fases do concurso. Precedente.

3. A interpretação adotada pelo TJRJ possui amparo em exegese razoável da legislação aplicável à espécie e tem sido referendada pelo Poder Judiciário, o que denota ausência de flagrante ilegalidade apta a desafiar a excepcional intervenção do CNJ. Prestígio à autonomia administrativa do tribunal para a condução do certame.

4. Recurso conhecido e desprovido.

(CNJ - RA – Recurso Administrativo em PCA - Procedimento de Controle Administrativo - 0000346-09.2022.2.00.0000 - Rel. SALISE SANCHOTENE - 109ª Sessão Virtual - julgado em 12/08/2022) (grifo nosso)

 

RECURSO EM PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO CEARÁ. AUDIÊNCIAS DE REESCOLHA. AUTONOMIA ADMINISTRATIVA DOS TRIBUNAIS. INCOMPETÊNCIA DO CNJ PARA DIRIMIR DÚVIDA INTERPRETATIVA DE DISPOSIÇÃO EDITALÍCIA. AUSÊNCIA DE FLAGRANTE ILEGALIDADE. PREVALÊNCIA DAS DISPOSIÇÕES EDITALÍCIAS. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.

I – Recurso Administrativo contra decisão que não conheceu do pedido e determinou o arquivamento liminar do Procedimento de Controle Administrativo, a teor do art. 25, X, do Regimento Interno.

II – Considerando que os atos normativos deste Conselho não regulamentaram as questões atinentes à reescolha de serventias, a matéria deve ficar adstrita ao campo da autonomia administrativa dos Tribunais. Precedentes.

III – Salvo flagrante ilegalidade, não compete ao Conselho Nacional de Justiça intervir no andamento do Concurso Público para dirimir dúvida interpretativa de disposição editalícia.

IV – A interpretação levada a efeito pelo Tribunal requerido observa a estrita ordem de classificação, prestigia e dá máxima efetividade ao concurso público, viabilizando a outorga do maior número possível de serventias.

V – Ante a ausência de ilegalidade, a atuação que se circunscreve ao âmbito de autonomia administrativa e em respeito ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório, cujas disposições não foram impugnadas tempestivamente, impede a intervenção deste Conselho.

VI – As razões recursais carecem de argumentos capazes de abalar os fundamentos da decisão combatida.

VII – Recurso conhecido e não provido.

(CNJ - RA – Recurso Administrativo em PCA - Procedimento de Controle Administrativo - 0000372-41.2021.2.00.0000 - Rel. FLÁVIA PESSOA - 86ª Sessão Virtual - julgado em 14/05/2021) (grifo nosso)

 

Não se verifica, portanto, flagrante ilegalidade que autorize a intervenção do CNJ para rever decisões administrativas e burocráticas tomadas pela Comissão do Concurso, tais como a designação de datas para a realização das etapas.

Recorde-se, por fim, que, a teor do artigo 25, inciso X, do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça (RICNJ)4, deve o relator arquivar monocraticamente o procedimento quando a matéria for flagrantemente estranha às finalidades do CNJ ou manifestamente improcedente, regra de organização interna com o nítido propósito de não sobrecarregar desnecessariamente o Plenário deste Conselho com questões amplamente debatidas e decididas precedentemente.

Por todo o exposto, julgo improcedente o pedido e determino o arquivamento do presente Procedimento de Controle Administrativo.

Intimem-se.

[...]

 

__________________

1 Art. 25. São atribuições do Relator: [...] VII – proferir decisões monocráticas e votos com proposta de ementa e lavrar acórdão quando cabível.

2 <https://www.tjrj.jus.br/web/guest/concursos/magistratura/magistratura/xlix>. Acesso em 17/11/2023.

3 <https://www.bbc.com/portuguese/geral-51581715>. Acesso em 20/11/2023.

4 Art. 25. São atribuições do Relator: [...] X - determinar o arquivamento liminar do processo quando a matéria for flagrantemente estranha às finalidades do CNJ, bem como a pretensão for manifestamente improcedente, despida de elementos mínimos para sua compreensão ou quando ausente interesse geral;

 

Vale transcrever, também, excerto da Decisão que proferi para indeferir o pedido liminar renovado no Recurso Administrativo interposto (ID n. 5374730):

[...]

Em 20/11/2023, após atenta análise dos autos, julguei prejudicado o exame da liminar, concluí pela inexistência de flagrante ilegalidade que autorizasse a intervenção do CNJ e decidi pela manifesta improcedência do presente PCA [...].

Devidamente intimados da Decisão, o Instituto requerente interpôs Recurso Administrativo (ID n. 5369075), e o TJRJ manifestou ciência (ID n. 5371546).

Na peça recursal, o IARA insiste nos argumentos inicialmente apresentados; alega que, ao permitir o prosseguimento no certame de todos os candidatos que recorreram da decisão da Comissão de Heteroidentificação, o TJRJ teria prejudicado aqueles que não recorreram porque desconheciam a informação de que os recursos teriam efeito suspensivo; e requer:

a) a concessão, em sede liminar e de modo inaudita altera pars, de tutela de urgência para determinar ao Presidente da Comissão do XLIX Concurso para ingresso no cargo de Juiz Substituto do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que proceda à imediata suspensão do concurso público, obstando a continuidade das demais fases até a conclusão do julgamento deste Procedimento de Controle Administrativo pelo Plenário; tendo em vista os novos fatos trazidos ao conhecimento do CNJ;

b) a reforma da decisão hostilizada, de sorte que seja reconhecida a PATENTE ILEGALIDADE e afronta aos princípios da legalidade, moralidade, razoabilidade, da proporcionalidade e o desrespeito à Resolução CNJ n.º 75/2009, para ANULAR o Edital n.º 14/2023 e todos os “Avisos” subsequentes que ostentam natureza e conteúdo de verdadeiras convocações editalícias;

c) o estabelecimento de um calendário prévio de 2ª etapa do certame que não prejudique os candidatos negros, indígenas e hipossuficientes inscritos no XLIX Concurso para Ingresso na Magistratura do TJRJ, nos termos do art. 50 Resolução CNJ nº 75/2009. (grifos e destaques no original)

 

É o necessário a relatar.

Decido.

Não vislumbro razão para reconsiderar a decisão proferida, mesmo porque o Recorrente não apresentou nenhum fundamento capaz de provocar o juízo de retratação do entendimento adotado.

Por outro lado, o fato novo utilizado como justificativa para a reapresentação do pedido liminar não é suficiente para demonstrar a existência de plausibilidade do direito defendido.

Com efeito, a concessão de medidas urgentes e acauteladoras está disciplinada no art. 25, inciso XI, do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça (RICNJ)3 e, muito embora não esteja expressamente previsto no referido artigo citado, consolidou-se a tese de que a providência não se legitima sem que concorram, simultaneamente, a plausibilidade do direito invocado (fumus boni juris), de um lado, e a possibilidade de lesão irreparável ou de difícil reparação (periculum in mora), de outro.

Nesse sentido, o entendimento firmado pelo Plenário do CNJ, ad litteris:

[...] a regra referenciada tem inequívoca inspiração no sistema das medidas cautelares jurisdicionais dispostas na legislação adjetiva civil (art. 300 da Lei nº 13.105/2015), que exige demonstração da fumaça do bom direito, consistente na plausibilidade do direito defendido, e do perigo da demora, caracterizado pela possibilidade de que a não concessão de um provimento imediato traga à parte danos de difícil reparação. (CNJ - ML – Medida Liminar em RGD - Reclamação para Garantia das Decisões - 0005638-43.2020.2.00.0000 - Rel. DIAS TOFFOLI - 71ª Sessão Virtual - julgado em 14/8/2020)

 

Assentadas as premissas normativas, não se vislumbra a possibilidade de concessão da medida de urgência requerida nestes autos.

Note-se que, mais uma vez, o Instituto Requerente se vale de ilações e presunção de prejuízo para sustentar a necessidade de suspensão do certame.

Razão não lhe assiste.

Em princípio, cumpre asseverar que o Edital inaugural não previu prazo para julgamento dos recursos interpostos em face do não enquadramento na condição de negro ou indígena, estabelecendo apenas:

7.14. O(A) candidato(a) cujo enquadramento na condição de preto(a) ou indígena for indeferido, poderá interpor recurso, no prazo de até 2 (dois) dias úteis, a contar da publicação da respectiva decisão no Diário da Justiça Eletrônico do Estado do Rio de Janeiro - DJERJ, a ser apreciado pela Comissão de Concurso, que poderá contar com o apoio de especialistas na respectiva área de conhecimento, não integrantes da Comissão de Heteroidentificação e sem direito a voto.

7.15. O(a) candidato(a) não enquadrado(a) na condição de pessoa preta ou indígena, bem como o que tiver o recurso denegado pela Comissão de Concurso, perderá a opção de concorrer às vagas reservadas aos candidatos(as) pretos(as) ou indígenas, devendo permanecer na lista destinada a ampla concorrência e, se for o caso, também na lista de pessoas portadoras de deficiência, desde que possua nota suficiente para figurar em cada uma delas, sem prejuízo do disposto no subitem 7.8 deste Edital, no caso de comprovação de apresentação de declaração falsa. (grifo nosso)

 

Por outro lado, o Aviso n. 18/2023 está em absoluta consonância com o item 7.15 acima transcrito. Vale ilustrar4:

 

Ora, ao permitir o prosseguimento no certame de todos os candidatos que recorreram, o TJRJ nada mais fez do que explicitar a disposição contida no item 7.15.

A contrario sensu: uma vez não enquadrados na condição de negros ou indígenas e, até que sejam julgados os recursos, os candidatos ostentam a possibilidade de concorrer às vagas reservadas, devendo, portanto, prosseguir no concurso.

Diante disso, caem por terra os dois argumentos apresentados pelo IARA, quais sejam: o de que o Tribunal teria descumprido o prazo para correção dos recursos, e o de que os candidatos que não recorreram da decisão da Comissão de Heteroidentificação foram prejudicados porque desconheciam a informação de que poderiam prosseguir no certame.

Parece óbvio, ainda, que o candidato que tem certeza de sua condição de cotista não deixaria de recorrer da decisão de não enquadramento pela mera suposição de que o recurso seria inócuo.

O interesse recursal é movido pela certeza de que a decisão não foi tomada com justiça e, ainda que os candidatos não dispusessem da informação, a possibilidade de recurso lhes foi resguardada.

Ante o exposto, indefiro o pedido liminar.

As demais questões, revolvidas pelo Instituto Requerente e devidamente analisadas na Decisão monocrática recorrida, serão apreciadas oportunamente pelo Plenário desta Casa.

Intimem-se o IARA para ciência da presente Decisão e o TJRJ para que, no prazo de 5 (cinco) dias, apresente contrarrazões ao Recurso Administrativo interposto.

[...].

 

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3 Art. 25. São atribuições do Relator: [...] XI - deferir medidas urgentes e acauteladoras, motivadamente, quando haja fundado receio de prejuízo, dano irreparável ou risco de perecimento do direito invocado, determinando a inclusão em pauta, na sessão seguinte, para submissão ao referendo do Plenário.

4 <https://www.tjrj.jus.br/documents/10136/218965905/AVISO-N-18-2023-Candidatos-que-interpuseram-Recursos-Contra-o-Resultado-do-Procedimento-de-Heteroidentificacao.pdf>. Acesso em 27/11/2023.

 

Como se vê, o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA), pessoa jurídica de direito privado que “tem por finalidade institucional a promoção de ações e debates sobre a responsabilidade social-ambiental e o racismo, com foco na promoção e defesa dos direitos da população afro-brasileira e meio-ambiente”, acorreu ao CNJ para que fossem apurados o suposto descumprimento das Resoluções CNJ n. 75 e 203, e do Edital de Abertura do XLIX Concurso para Ingresso na Magistratura de Carreira do Estado do Rio de Janeiro, bem como a prática de discriminação racial indireta por parte do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

Conforme amplamente demonstrado, a atuação do Tribunal observou o regramento contido nas mencionadas Resoluções e respeitou o princípio da vinculação ao instrumento convocatório.

O IARA não logrou êxito em comprovar a existência de ofensa aos normativos e as ilações que faz acerca do suposto prejuízo suportado pelos candidatos cotistas não encontram sustentação no conjunto probatório.

Nesse cenário, o Recurso não merece prosperar.

A manifesta improcedência do presente PCA se funda nos seguintes argumentos:

i) a convocação de todos os candidatos habilitados para a segunda etapa foi realizada com a antecedência exigida pela Resolução CNJ n. 75;

ii) o Edital n. 14/2023 ressalvou expressamente a condição daqueles que ainda se submeteriam ao procedimento de heteroidentificação;

iii) a necessidade de que os candidatos cotistas se deslocassem ao Rio de Janeiro em uma oportunidade a mais do que os da ampla concorrência foi essencial à própria efetividade do sistema de cotas;

iv) não houve surpresa, uma vez que a realização sucessiva das duas etapas estava prevista nos itens 7.6 e 10.9 do Edital inaugural;

v) todos aqueles que se candidatam a um concurso público devem estar prontos para as sucessivas fases do certame, devendo arcar com as despesas decorrentes da participação em todas as etapas e procedimentos, nos termos do art. 83 da Resolução CNJ n. 75;

vi) não houve demonstração de efetivo prejuízo aos candidatos cotistas, de modo que danos hipotéticos não autorizam a paralisação do Concurso e, muito menos, a anulação do Edital n. 14/2023 e atos subsequentes;

vii) o Edital inaugural não previu prazo para julgamento dos recursos interpostos em face do não enquadramento na condição de negro ou indígena; e

viii) o Aviso n. 18/2023 estava em absoluta consonância com o item 7.15 do Edital, de modo que, uma vez não enquadrados na condição de negros ou indígenas e, até que fossem julgados os recursos, os candidatos ostentavam a possibilidade de concorrer às vagas reservadas, devendo, portanto, prosseguir no concurso.

Especificamente no que respeita à alegação de discriminação racial indireta, cumpre esclarecer que o Instituto requerente baseia seu entendimento na possível existência de “ônus desmedido e impedimento econômico para os candidatos beneficiários da reserva de vagas para negros, indígenas e hipossuficientes”.

Isso porque, em seu entender, as convocações realizadas pelo TJRJ não viabilizariam “o planejamento financeiro e, até mesmo, a preparação psicológica dos candidatos”.

Deve-se ressaltar que, embora não se discuta a legitimidade para atuar como interessado em questões como a discutida nos autos, o IARA não representa a categoria ou o grupo de pessoas supostamente atingidos pelos atos administrativos praticados pelo Tribunal requerido.

Assim, mesmo que exista pertinência entre suas áreas de atuação e os atos impugnados, as alegações relativas ao prejuízo que teria sido suportado pelos candidatos cotistas e às causas para o eventual não comparecimento nas etapas do certame ostentam cunho concreto e individual e não podem ser manejadas pelo Instituto.

E, ainda que pudessem, não se sustentariam ante a prova dos autos.

A uma, porque não houve descumprimento dos prazos contidos na Resolução CNJ n. 75, tampouco do Edital inaugural.

A duas, porque a afirmação de que havia “dezenas de relatos de candidatos que não comparecerão[iam] às provas discursivas em razão da absoluta impossibilidade econômica” não passa de mera ilação, desacompanhada de qualquer elemento probatório.

Com efeito, nada há nos autos que comprove tais informações, sendo impossível atribuir, exclusiva e automaticamente, a ausência de candidatos nas etapas do concurso ao motivo apontado pelo IARA.

Note-se, ademais, que nenhum candidato requereu sua habilitação no feito.

A três, porque a demonstração de prejuízo concreto cabe à parte que suscita o vício. No mesmo sentido entendeu este Conselho:

[...]

Consoante este entendimento, o caso em comento não autoriza o reconhecimento da nulidade arguida pelo requerente, uma vez que a indicação de dano em potencial, sem a demonstração de prejuízos concretos, não é motivo para a anulação de atos administrativos, cuja manutenção atenderá aos princípios constitucionais da segurança jurídica, eficiência e satisfação do interesse público.

Observe-se que, em face da doutrina pas de nullité suns grief, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal pacificou-se no sentido ser necessária a concretização de prejuízos para declaração de nulidades relativas ou absolutas até mesmo em matéria penal, seara em que os direitos e garantias individuais são respeitadas ao máximo. Vejamos:

[...].

(CNJ - PCA - Procedimento de Controle Administrativo - 0004362-21.2013.2.00.0000 - Rel. Gisela Gondin Ramos - 179ª Sessão Ordinária - julgado em 12/11/2013) (grifo nosso)

 

Naquela oportunidade, o Plenário do CNJ assentou o entendimento de que seria descabido paralisar o certame no qual foram gastos recursos públicos e determinar o refazimento de atos diante de uma presunção que não se confirmou na prática (grifo nosso).

Por outro lado, não se vislumbra de que maneira seria possível inverter o ônus, de modo a obrigar o TJRJ a fazer prova negativa de prejuízo aos candidatos cotistas, como pretende o Recorrente.

Ora, impor tal obrigação ao Tribunal equivaleria a promover investigação na vida pessoal de cada um dos candidatos cotistas ausentes a fim de identificar quais fatos foram determinantes para o não comparecimento em alguma das etapas.

Por fim, a insurgência contra a não publicização de um calendário para o procedimento de heteroidentificação e para a 2ª fase do concurso revela clara tentativa de impugnação intempestiva do Edital.

Diante disso, considerando que não foram submetidos à análise novos fatos ou razões capazes de infirmar os fundamentos da Decisão monocrática, mantenho-a integralmente, com os acréscimos ora expendidos.

Ante o exposto, conheço do Recurso e, no mérito, nego-lhe provimento.

É como voto.

Após as comunicações de praxe, arquivem-se.

À Secretaria Processual para as providências. 

Brasília-DF, data registrada no sistema.

 

Conselheiro GIOVANNI OLSSON

Relator



[1] Art. 115. A autoridade judiciária ou o interessado que se considerar prejudicado por decisão do Presidente, do Corregedor Nacional de Justiça ou do Relator poderá, no prazo de cinco (5) dias, contados da sua intimação, interpor recurso administrativo ao Plenário do CNJ. § 1º São recorríveis apenas as decisões monocráticas terminativas de que manifestamente resultar ou puder resultar restrição de direito ou prerrogativa, determinação de conduta ou anulação de ato ou decisão, nos casos de processo disciplinar, reclamação disciplinar, representação por excesso de prazo, procedimento de controle administrativo ou pedido de providências.

 

Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO - 0007394-82.2023.2.00.0000
Requerente: INSTITUTO DE ADVOCACIA RACIAL E AMBIENTAL - IARA
Requerido: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - TJRJ e outros

 

VOTO CONVERGENTE

 

Adoto o relatório bem lançado pelo eminente Conselheiro Relator Giovanni Olsson.

Ao tempo em que acompanho o entendimento de Sua Excelência, permito-me tecer breves considerações que reputo pertinentes.

De fato, como bem apontou o Relator, não há elementos nos autos que demonstrem o suposto prejuízo suportado pelos(as) candidatos(as) cotistas, sendo digno de nota que um número expressivo de 315 candidatos(as) compareceu à entrevista perante a Comissão de Heteroidentificação.

Também não pude deixar de notar que nenhum dos(as) candidatos(as) supostamente prejudicados(as) se habilitou no feito como terceiro(a) interessado(a), não havendo notícias de irresignação por parte de qualquer deles(as) em outros procedimentos em curso neste Conselho ou em ações intentadas pelas vias judiciais ordinárias.

Nesse contexto, entendo que incumbiria aos(às) próprios candidatos, que se vissem supostamente prejudicados, o questionamento oportuno dos pontos levantados pela requerente.

Conforme salientado pelo ilustre Relator, o IARA não ostenta a qualidade de representante da categoria ou do grupo de indivíduos alegadamente afetado pelos atos questionados neste PCA, razão pela qual, na minha avaliação, o instituto sequer possui interesse processual para figurar como parte no presente procedimento, pois apresenta pretensão que não lhe aproveita nem alcançaria qualquer resultado que a ela pudesse interessar. 

À evidência, o IARA não possui legitimidade ampla e irrestrita para interferência na esfera jurídica de terceiros não associados ou por ela não representados.

Quanto a esse aspecto, embora não desconheça que a atuação do CNJ possa se dar inclusive de ofício, penso que há de haver especial cautela em casos como o presente, em que uma instituição se apresenta como parte legítima para a tutela de interesses de terceiros sem, contudo, demonstrar claramente seu respaldo e representatividade junto aos indivíduos supostamente afetados.

Caso contrário, estaríamos a desvirtuar o propósito do controle exercido pelo CNJ e abrindo margem para interferências indiscriminadas nas atividades dos tribunais, em notório prejuízo à autonomia administrativa e financeira que lhes é conferida pelo texto constitucional (arts. 96 e 99).

Com essas poucas observações, acompanho integralmente o voto do eminente Relator.

 

Brasília, 8 de fevereiro de 2024.

 

 

Conselheira Renata Gil