Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS - 0006445-63.2020.2.00.0000
Requerente: CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA
Requerido: INÊS MARCHALEK ZARPELON

 

 

 

EMENTA

 

PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS ORIGINÁRIO. INSTAURAÇÃO DE OFÍCIO PELA CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA. JUÍZA DE DIREITO. SENTENÇA QUE GANHOU REPERCUSSÃO MIDIÁTICA NACIONAL. APARENTE MANIFESTAÇÃO DE PRECONCEITO EM RAZÃO DA COR DA PELE. REVISÃO DISCIPLINAR. DESCABIMENTO.

1. Pedido de Providências instaurado de ofício pela Corregedoria Nacional de Justiça, em razão de matérias jornalísticas, amplamente divulgadas nas mídias televisiva e virtual, acerca do teor de decisão proferida por magistrada que teria, em tese, utilizado de discriminação racial para majorar a pena-base de um dos corréus na ação penal.  

2. Uso de linguagem em sentença, conquanto possa ser interpretada como inadequada, ou tecnicamente equivocada, não configura caráter discriminatório em razão da cor da pele do acusado. 

3. Improcedência. Pedido de providências arquivado.    

 

 ACÓRDÃO

O Conselho, por maioria, determinou o arquivamento do feito, nos termos do voto do Relator. Vencidos os Conselheiros Mário Goulart Maia e Marcos Vinícius Jardim Rodrigues, que votavam no sentido da abertura de processo administrativo disciplinar. Ausentes, circunstancialmente, os Conselheiros Rosa Weber, Marcio Luiz Freitas e João Paulo Schoucair. Ausente, em razão da vacância do cargo, o representante do Ministério Público da União. Presidiu o julgamento o Ministro Luis Felipe Salomão. Plenário, 8 de agosto de 2023. Presentes à sessão os Excelentíssimos Senhores Conselheiros Rosa Weber, Luis Felipe Salomão, Vieira de Mello Filho, Mauro Pereira Martins, Salise Sanchotene, Jane Granzoto, Richard Pae Kim, Marcio Luiz Freitas, Giovanni Olsson, João Paulo Schoucair, Marcos Vinícius Jardim Rodrigues, Marcello Terto, Mário Goulart Maia e Luiz Fernando Bandeira de Mello. Sustentou oralmente pela Requerida, o Advogado Francisco Augusto Zardo Guedes - OAB/PR 35.303.

Conselho Nacional de Justiça

Autos: PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS - 0006445-63.2020.2.00.0000
Requerente: CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA
Requerido: INÊS MARCHALEK ZARPELON


RELATÓRIO

 

O SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO, CORREGEDOR NACIONAL DE JUSTIÇA:  

Trata-se de Pedido de Providências instaurado de ofício pelo então Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Humberto Martins, em razão de notícia que chegou ao conhecimento desta CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA acerca do teor de decisão proferida pela Magistrada INÊS MARCHALEK ZARPELON, Juíza de Direito da 1ª Vara Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba (PR), em 19 de junho de 2020, nos autos do Processo nº 0017441-07.2018.8.16.0013.

O seguinte excerto da decisão foi amplamente divulgado em redes sociais e pela mídia nacional (IDs4082754 – 4082762), destaca-se:

[...] Sobre sua conduta social, nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão de sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente. [...] Assim, considerando a existência de uma circunstância judicial desfavorável (conduta social), elevo a pena base em da diferença entre o mínimo e o máximo da pena prevista para o crime (o que resulta em 07 meses), fixando-a acima de seu mínimo legal, ou seja, em 03 (três) anos e 07 (sete) meses de reclusão e 12 (doze) dias multa, no valor de 1/30 do salário mínimo vigente à época dos fatos (ID 4082741, p.117). [Grifos para destaque]

Os autos do Pedido de Providências nº 0006471-61.2020.2.00.0000 e da Reclamação Disciplinar nº 0006641-33.2020.2.00.0000 foram apensados ao presente expediente, em 20 de agosto de 2020.

Esta Corregedoria Nacional determinou a apuração dos fatos pela Corregedoria-Geral da Justiça do Paraná, o que foi realizado na  Reclamação Disciplinar (TJPR) nº 0006505-40.2020.8.16.7000.

A questão foi levada a julgamento, ocasião em que os desembargadores membros do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, decidiram pelo arquivamento da reclamação disciplinar instaurada  em desfavor da magistrada (Id 4140876), nos termos do voto do Relator (Id 4140877).

Em petição, a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Paraná, embora entenda que a magistrada não tenha praticado crime de racismo, solicita:

[...] a expressa recomendação no sentido de advertir a impropriedade do uso de qualquer alusão a raça no capítulo reservado à análise do perfil social, ainda que diga a prolatora da decisão que não teve intenção de ofender, porquanto deve haver um compromisso efetivo e explícito, notadamente do Poder Judiciário, com o combate ao racismo sob todas as suas faces, bem como a implementação de políticas educativas a partir dos pronunciamentos judiciais (Id 4146667). [destaques no original]

 

Em seguida, a magistrada pugnou pela “confirmação do Acórdão de arquivamento prolatado pelo egrégio Tribunal de Justiça do Paraná, com o consequente arquivamento do presente Pedido de Providências” (Id 4151605, p.6).

Notificada para apresentar defesa acerca da pretensão revisional deliberada, de ofício, nestes autos (Id 4349260), a requerida apresentou suas razões. 

Ressaltou  que o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade, entendeu que não houve agravamento de pena por conta da raça do acusado na consideração das circunstâncias judiciais (Id 4401966). Nesse sentido, esclareceu que elevou a pena base de todos na mesma proporção, não tendo a sentença manifestado preconceito de raça ou dispensado tratamento indecoroso e discriminatório ao réu. Assim, entende que não violou qualquer dever de tratar com urbanidade as partes, nem os deveres de cortesia, prudência e cautela.

O processo foi incluído em pauta virtual (ID 4558644) e, na sequência, foi deferida sustentação oral, com remessa à pauta telepresencial (ID 4565173).

Sobrevieram petição e documentos de ID 4602030, noticiando o julgamento da apelação interposta em face da sentença proferida no processo judicial originário (0017441-07.2018.8.16.0013).

É o relatório.

 

 

 

J5/F29


Conselho Nacional de Justiça


Autos: PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS - 0006445-63.2020.2.00.0000
Requerente: CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA
Requerido: INÊS MARCHALEK ZARPELON



VOTO

 O SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO, CORREGEDOR NACIONAL DE JUSTIÇA

2. Trata-se de pretensão revisional iniciada, de ofício, nos autos deste Pedido de Providências instaurado pela Corregedoria Nacional de Justiça, em razão de notícia acerca do teor de decisão proferida pela Magistrada INÊS MARCHALEK ZARPELON, Juíza de Direito da 1ª Vara Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba (PR), em 19 de junho de 2020, nos autos do Processo nº 0017441-07.2018.8.16.0013.

O seguinte excerto da decisão foi amplamente divulgado em redes sociais e pela mídia nacional (IDs 4082754 – 4082762), destaca-se:

 

[...] Sobre sua conduta social, nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão de sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente. [...] Assim, considerando a existência de uma circunstância judicial desfavorável (conduta social), elevo a pena base em da diferença entre o mínimo e o máximo da pena prevista para o crime (o que resulta em 07 meses), fixando-a acima de seu mínimo legal, ou seja, em 03 (três) anos e 07 (sete) meses de reclusão e 12 (doze) dias multa, no valor de 1/30 do salário mínimo vigente à época dos fatos (ID 4082741, p.117). [Grifos para destaque] 

Cinge-se a controvérsia em saber se a expressão "em razão de sua raça", utilizada na dosimetria da pena em sentença criminal pela Juíza reclamada (circunstância judicial - conduta social) deve ou não ser interpretada com conotação racista. Ainda, se este fato constante da fundamentação da sentença pode ou não ser punível na esfera administrativa.

Delegada a apuração dos fatos à Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Paraná, instaurou-se na origem a Reclamação Disciplinar nº 0006505-40.2020.8.16.7000. 

Em julgamento, os desembargadores membros do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos (totalizando 24 votos e uma ausência justificada), decidiram pelo arquivamento da reclamação disciplinar instaurada em desfavor da magistrada, nos termos do voto do Relator, Corregedor-Geral local. 

Nesse sentido, transcreve-se a ementa do acórdão de referido julgamento:    

RECLAMAÇÃO DISCIPLINAR. JUÍZA DE DIREITO. IMPUTADA UTILIZAÇÃO DE RAZÕES RACIAIS PARA CONDENAÇÃO E MAJORAÇÃO DA PENA DE CONDENADO. INEXISTÊNCIA. DECISÃO CONDENATÓRIA FUNDAMENTADA EM FARTO MATERIAL PROBATÓRIO. MAJORAÇÃO DA REPRIMENDA IDÊNTICA PARA TODOS OS CONDENADOS, INTEGRANTES DE ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA. COR DA PELE NÃO UTILIZADA COMO ELEMENTO DE CONVICÇÃO. MERA REFERÊNCIA A DEPOIMENTOS PRESTADOS NOS AUTOS EM ESTREITA RELAÇÃO COM O OBJETO DA CAUSA. ATUAÇÃO NOS LIMITES DA FUNÇÃO JURISDICIONAL. AUSÊNCIA DE CONTEÚDO OFENSIVO OU DE INTENÇÃO DISCRIMINATÓRIA. PROCEDIMENTO ARQUIVADO COM SUBMISSÃO DA DECISÃO AO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, NOS TERMOS DO ART. 28 DA RESOLUÇÃO 135/2011-CNJ. 1. “O Magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir, exceto se, ao agir de maneira abusiva e com o propósito inequívoco de ofender, incidir nas hipóteses de impropriedade verbal ou de excesso de linguagem” (STF-RTJ 178/523-524). 2. Sentença condenatória fundamentada em amplo material probatório (interceptações telefônicas, imagens de câmeras de segurança e depoimentos de vítimas e testemunhas) e sem qualquer alusão à cor da pele do condenado como elemento de convicção para a condenação ou para a majoração da pena. 3. Expressão proferida no julgamento da causa nos limites do contexto retratado pela prova dos autos, sem qualquer valoração pessoal. 4. A mera referência aos termos dos depoimentos prestados nos autos relativos às características físicas e ao modus operandi do condenado, dissociada de qualquer conteúdo ofensivo ou de intenção discriminatória, situa-se no âmbito da independência e da imunidade funcional dos magistrados (art. 41 da LOMAN). 5. Ausência de infração disciplinar. 6. Procedimento arquivado (Id 4140877, p. 1-3).  

O voto condutor, proferido pelo Corregedor-Geral da Justiça do Estado do Paraná, que determinou o arquivamento da Reclamação Disciplinar nº 0006505-40.2020.8.16.7000 instaurada em desfavor da magistrada, foi fundamentado nos seguintes termos: 

[...] Em momento algum a cor da pele do condenado NATAN foi utilizada como elemento de convicção para a condenação ou para a conclusão de integrar o grupo criminoso. A condenação foi fundamentada na apreciação do teor de todas as provas colhidas na instrução do processo (interceptação telefônica, imagens de câmeras de segurança e depoimentos de vítimas e testemunhas). 

[...] Do contexto total da sentença – proferida em 115 laudas e com criteriosa análise dos elementos probatórios – extrai-se que a menção à raça se deu com a única finalidade de apontar a forma de agir na divisão das tarefas do apontado grupo criminoso (“agia de forma extremamente discreta”), e não como fundamento ou conclusão da condenação ou majoração da pena final imposta ao condenado NATAN. 

Importante ressaltar que essa afirmação constante da sentença (de que o réu Natan agia de forma extremamente discreta em razão da cor de sua pele) não decorre da conclusão ou juízo pessoal da juíza requerida. Trata-se, em verdade, do conteúdo extraído do depoimento do policial civil Fabiano S. de Oliveira, que participou das investigações. Confira-se o depoimento prestado em juízo pelo mencionado policial civil: [...]. 

[...] Tem-se, portanto, que não foi utilizado qualquer fator racista ou discriminatório para a conclusão de que o condenado NATAN participou da empreitada criminosa. A alusão à cor da sua pele foi apontada pelas testemunhas colhidas em juízo e em total pertinência com a discussão da causa. 

Comprovação disso é que todos os demais réus, que também foram condenados, tiveram idêntica valoração das circunstâncias judiciais, a que alude o art. 59 do Código Penal, na primeira fase da aplicação da pena para o crime de organização criminosa. Para todos eles (Admilson, Rodrigo, Luiz, Eloir, Noeli, Eros e Natan) a pena-base do crime de organização criminosa foi elevada em 1/8 em razão das suas condutas sociais. Ou seja, não houve qualquer majoração da pena do condenado NATAN em razão da cor da sua pele. 

[...] Os elementos constantes dos autos não indicam qualquer violação dos deveres atinentes ao exercício da magistratura. A condenação, repita-se, foi fundamentada exclusivamente na prova constante dos autos e não houve qualquer influência da cor da pele do condenado NATAN na conclusão acerca da sua participação nos crimes imputados aos réus e muito menos na dosimetria da pena. 

[...] O contexto dos autos revela, portanto, a ausência de infração funcional, razão pela qual voto no sentido de determinar o arquivamento da presente reclamação disciplinar nos termos do § 2º do art. 9º da Resolução CNJ nº 135/2011, com posterior comunicação ao Conselho Nacional de Justiça, na forma do art. 28 da mesma Resolução (Id 4140877, p.5-13). 

Além disso, a respeito da sua atuação no caso em comento, cumpre transcrever excerto da defesa prévia apresentada pela magistrada (ID 4401966):  

[...] Em 11 de agosto, Dia do Advogado, a advogada recém constituída publicou no Instagram e no Facebook um trecho da página 107 da sentença que, de um total de 115 (cento e quinze) laudas. A publicação veio acompanhada de um texto, no qual a advogada expressa a esperança de repercussão. Afirma que a sentença teria associado “a questão racial à participação em organização criminosa”. Assevera que “pressupor que pertencer a certa etnia te levaria a associação ao crime demonstra que a magistrada não considera todos iguais, ofendendo a Constituição Federal”. Prossegue, afirmando que “um julgamento que parte dessa ótica está maculado”, para, ao final, demandar: “Exigimos providências!” [...]. 

10. Eros Grau ensina que “não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços”.4 De igual forma, as sentenças judiciais não podem ser lidas em fatias, senão mediante a leitura conjugada do relatório, fundamentação e dispositivo. 

No entanto, a publicação da advogada não menciona, por exemplo, o trecho da sentença a respeito do furto qualificado praticado contra o idoso Ademar Ferreira, no dia 3 de julho de 2018, às 10h, na Praça Tiradentes. A ação da organização criminosa foi filmada (Id. 4151606 - Pág. 1) e, segundo a sentença, “Vê-se nesse vídeo, quando o denunciado Eros ergue a vítima, lhe subtrai o dinheiro do bolso, e a vítima imediatamente percebe o furto, quando os demais denunciados que estão no mesmo vídeo, réus Natan Vieira da Paz, Eloir de Assis Correa Junior e Noeli Aparecida Alves, tentam dissuadir a vítima, tendo o denunciado Natan inclusive empurrado a vítima pelas costas. As imagens são claras e falam por si só” (p. 6-9). 

[...] A advogada alega que a sentença teria associado “a questão racial à participação em organização criminosa”. O eminente Corregedor-Geral, prudentemente, afirma que esta seria uma hipótese: “Parece dar destaque a expressão ‘em razão de sua raça’, ao colocar as palavras entre vírgulas na frase, hipoteticamente relacionando a cor da pele do acusado com o fato de integrar a organização criminosa” (Id. 4085672 - Pág. 2). 

Em seguida, assevera corretamente que “não há como estabelecer uma relação entre a raça do sujeito e o relacionamento social perante a comunidade em que vive [...]” (mov. 6.1). Prossegue, afirmando que, “em tese, a Magistrada, ao majorar a reprimenda do acusado, possivelmente por conta da sua cor, teria praticado preconceito de raça”

E conclui: “Assim, pelo exposto, é necessário apurar os fatos apresentados e inferir se a Magistrada Inês Marchalek Zarpelon, Titular da 1ª Vara Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, teria, ao menos em tese, violado as disposições contidas no art. 35, incisos I, IV e VIII da LOMAN, e artigos 8º, 9º e 39 do Código de Ética da Magistratura Nacional” (Id. 4085672 - Pág. 4).

13. A Juíza de Direito Inês Zarpelon apresentou defesa prévia, demonstrando que não majorou a pena de Natan por sua cor e jamais tratou o réu com preconceito, falta de urbanidade ou cortesia. Demonstrou ainda que todos os termos utilizados na sentença refletem a prova dos autos (p.10-11).

[...] A frase da sentença não se encerra como na manchete. Após a palavra raça há uma vírgula, que indica continuidade. A frase completa é: “Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente”.

Valorou-se negativamente a conduta causadora de desassossego e desesperança na população. Isso foi o que a sentença quis dizer e o que efetivamente disse. A pena de Natan não foi majorada pela cor de sua pele.

A prova cabal disso é que a sentença também considerou como circunstância judicial desfavorável a conduta social dos demais integrantes da organização criminosa (homens de cor branca e uma mulher), elevando a pena base de todos. E o fez na mesma proporção. Cada circunstância judicial desfavorável elevou a pena de todos em 1/8 da diferença entre o mínimo e o máximo da pena prevista para o crime.

17. Como afirma o Parecer Linguístico-Hermenêutico do Dr. Albino de Brito Freire, Juiz de Direito Aposentado, Filólogo e membro da Academia Paranaense de Letras, o trecho “em razão de sua raça” não está subordinado à oração antecedente, mas sim à oração subsequente: “[...] em razão de sua raça, agia de forma extremamente discreta (...)” (Id. 4151887). E os fundamentos para esta assertiva advêm da prova dos autos (p.13).

[...] A Juíza de Direito Inês Zarpelon não é racista. A sentença por ela proferida não manifestou preconceito de raça, não dispensou tratamento indecoroso e discriminatório ao réu, o qual foi tratado com urbanidade e cortesia, inclusive durante seu interrogatório (Id. 4151607 - Pág. 1).

Ao prolatar a sentença, amplamente fundamentada na prova dos autos, atuou com serenidade, prudência e cautela e, sobretudo, com independência, como preconiza a LOMAN (arts. 35, I, 40 e 41). E, como se não bastasse, demonstrou humildade em nota de esclarecimento publicada no site da AMAPAR: “Reafirmo que a cor da pele de um ser humano jamais serviu ou servirá de argumento ou fundamento para a tomada de decisões judiciais. O racismo é prática intolerável em qualquer civilização e não condiz com os valores que defendo. Peço sinceras desculpas se de alguma forma, em razão da interpretação do trecho específico da sentença (pag. 117), ofendi alguém” (Id. 4151891 - Pág. 9). Por fim, sempre manteve conduta irrepreensível, na vida pública e particular (p.23-24).

Ademais, nos autos da Reclamação Disciplinar instaurada na origem, a magistrada apresentou parecer linguístico-hermenêutico subscrito pelo Dr. Albino de Brito Freire, Juiz de Direito Aposentado, Filósofo e membro da Academia Paranaense de Letras, do qual extraem-se os seguintes excertos:

[...] A frase grafada entre vírgulas está fora de contexto. Examine-se cuidadosamente a decisão como um todo, e se verá que foi a organização criminosa – não a Juíza – quem praticou o preconceito, ao eleger Natan para executar um lance importante na ação criminosa. Mas, ele não podia aparecer, porque era o único negro do grupo e isso poderia facilitar o reconhecimento posterior de seus integrantes. Por isso, a função dele era ficar “na moita” e só aparecer no momento em que outro parceiro empurrava a vítima por trás e jogava uma jaqueta sobre aquele, para protege-lo das câmeras e gerar providencial confusão no entorno, com o objetivo de facilitar o roubo e dificultar a perseguição.

Entenda-se que a oração grafada entre vírgulas: em razão de sua raça não se refere à oração anterior, porque não teria sentido. Senão, vejamos: (É) seguramente integrante do grupo criminoso, em razão de sua raça...

Isso aí não faz o menor sentido. Trata-se, ao contrário, de uma oração subordinada adverbial causal que é dependente, no conceito sintático, da oração seguinte. Assim: em razão de sua raça, agia de forma extremamente discreta nos delitos.... Coloquemos os termos na ordem direta: agia de forma extremamente discreta nos delitos, em razão de sua raça. A oração agia de forma extremamente discreta nos delitos está apenas justaposta à primeira oração: (É) seguramente integrante do grupo criminoso. Sem qualquer dependência ou conjunção que conecte as orações. Por tal razão, denomina-se oração coordenada assindética (ou seja, sem conectivo). Dessa forma, é possível entender o significado do período sintático como um todo, e não em partes (ID 4151887, p.1-7).

Entendo que, conquanto possa eventualmente ter sido tecnicamente mal empregada na sentença, a expressão ‘raça’ não pode ter a conotação veiculada pela imprensa, imputando-se à juíza a prática de racismo, a autorizar a abertura da competência administrativa deste Conselho.

É certo que, considerando apenas o excerto "em razão de sua raça", a informação parece acessória e desconectada dos demais argumentos, além de gerar sim certa ambiguidade. Por isso, o trecho é dispensável do ponto de vista linguístico. Porém, de acordo com o contexto, possível uma leitura mais abrangente.

Desta forma, tomando-se apenas o excerto entre aspas, a informação "em razão de sua raça" gera ambiguidade: não se poderia afirmar categoricamente se está ligada à expressão anterior ou à oração seguinte. Nesta senda, a análise tanto semântica quanto sintática ficaria comprometida.

Da acurada leitura do texto, contudo, extrai-se com correção que a interpretação adequada é a trazida pela defesa da reclamada: “em razão da sua raça, (o acusado) agia de forma extremamente discreta”.

Veja-se o que examinou o Relator da apelação criminal interposta pelos acusados no Tribunal de Justiça do Paraná:

[...] Já a defesa de Natan Vieira da Paz alega que o processo teve prosseguimento questionável, já que o Juízo fundamentou a dosimetria da pena em argumentos racistas. Sustenta que a Magistrada não poderia ter expressado suas convicções pessoais/íntimas. Alega que o Juízo, representando o Poder Judiciário, não tratou Natan da mesma forma que os demais acusados, tanto na dosimetria da pena como ao longo de toda sentença, ofendendo os princípios da impessoalidade e da igualdade. Aduz que também houve ofensa à moralidade, eis que o Juízo se utilizou da cor do Apelante para fundamentar a sentença. Expõe ainda que embora a sentença tenha mencionado, em relação ao fato VII, que o recorrente teria empurrado a vítima pelas costas, a verdade é que não houve nenhum empurrão, o que pode ser conferido no vídeo de mov. 62.1. Dito isso, alega parcialidade na sentença, dado ao conteúdo racista, a qual acarreta em nulidade do processo desde o oferecimento da denúncia.  A detida análise da fundamentação global da sentença nos revela com clareza que o aumento de pena não se deu em razão da cor da pele do condenado, mas sim porque ele atuava de forma mais discreta que os demais integrantes da organização criminosa, geralmente não abordando diretamente as vítimas, porque era o único de pele negra e assim poderia ser facilmente identificado. Isso fica claro porque a sentença trouxe ao longo da fundamentação as seguintes considerações (pg 36/37 – mov. 855.1): “O policial civil Fabiano S. de Oliveira, relatou que nessa época a sua equipe trabalhava na Divisão de Polícia da Capital – DPCAP – e havia várias denúncias de que nas datas próximas aos saques de aposentadorias, quando os idosos saiam das agências bancárias, uma série de pessoas diferentes abordava-os, por motivos diferentes e subtraiam os valores; que havia denúncias anônimas e alguns BOs. Que de posse dessas informações, resolveram montar uma investigação, onde então conseguiram identificar e qualificar os partícipes da organização criminosa. Prosseguiu dizendo que “Aranha”, era o que mais participava dos furtos e roubos, e ligava constantemente para Eros; Natan, conhecido por “Neguinho” era um dos que jogava a blusa para acobertar o criminoso; relatou que o grupo tentava parecer e se identificar como pessoas com aparência comum da população. Que Djalma, era um “senhorzinho” com bigode. Eros usava óculos e parecia mais intelectual, tentando parecer um professor, e algumas mulheres que se vestiam bem; Fugindo desse padrão, estava Natan, que era magro e negro, e de fácil identificação, e por isso acredita que ele possuía o encargo de despistar, estando sempre na cobertura; que não viu ele furtando, mas era o primeiro que chegava no centro e chamava os demais; relatou que agiam de três formas, tendo preferencialmente como vítimas, idosos ou mulheres, que não reagem; recorda de outra ação, onde a vítima era um Pastor, fato que ocorreu na Praça Carlos Gomes, quando Natan jogou a jaqueta em cima do “Polaquinho”, que se deu na modalidade de “Chacoalho”, onde fica claro que eles cercam o idoso; que nessa situação todos os que estão na imagem fazem parte da organização criminosa e de repente, todo mundo dispersa; que pode dizer que Natan nunca abordava, ficando sempre na cobertura, bem como Tony, já que ambos fugiam do padrão das pessoas que não chamam a atenção;

Veja-se que, tanto nas informações da reclamada, quanto no pedido de providências na origem e no julgamento da apelação criminal, conclui-se no sentido de que a cor da pele não foi utilizada como elemento de convicção para a condenação do Sr. Natan Vieira da Paz, tanto menos com conotação racista.

Nesse contexto, não se pode olvidar que, ao redigir tal decisão, a magistrada não adotou a cautela necessária, o que causou repercussão entre os jurisdicionados na imprensa em razão da ênfase empregada à participação do réu em grupo criminoso, parecendo utilizar-se como fundamento a “sua raça”, [...] seguramente integrante do grupo criminoso, em razão de sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais [...].

Mas, repita-se, não há conotação discriminatória. A descrição utilizada pela polícia na investigação esclarece bem a circunstância, apontando que apenas Natan e outro indivíduo - de um grupo aproximado de nove indivíduos - tinham fenótipo diverso dos demais integrantes do grupo criminoso, e poderiam ser facilmente identificados, acaso não agissem de forma discreta.

A constatação da juíza e da polícia pode ter decorrido da observância do padrão físico majoritário da comunidade na qual inseridos à época dos fatos - estado do Paraná. A sentença foi proferida pela 1ª Vara Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba – PR. O estado do Paraná tem percentual aproximado de 28,5% da população que se autodeclara preto ou pardo [1]. Esta informação corrobora o que relatado tanto pela juíza representada quanto pela polícia, quando das investigações.

Repiso que é excepcional a responsabilização do magistrado pelo conteúdo de uma decisão. Possível a sanção do juiz nos casos de impropriedade ou excesso de linguagem, conforme previsto no próprio art. 41 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, mas não como regra.

Fartamente demonstrado, inclusive na esfera jurisdicional (julgamento da apelação criminal) que a fala da juíza na dosimetria da pena não teve conotação racial e discriminatória.

É que, uma vez refutada a tese da apelação no sentido de que a magistrada não agiu de forma parcial ou racista, com mais razão, no âmbito administrativo, não há que se falar em infração disciplinar punível.

Houve esforço argumentativo e até mesmo do parecer linguístico-hermenêutico juntado no sentido de que o excerto “em razão de sua raça” não está subordinado à oração antecedente, mas sim à oração subsequente: “[...] em razão de sua raça, agia de forma extremamente discreta [...]”, objetivando elucidar que a atuação discreta atribuída a Natan se dava pelos próprios membros da organização criminosa. Assim, entende-se remanescerem dúvidas de relevo disciplinar quanto ao trecho específico utilizado pela magistrada.

Não se olvida que são muito relevantes as consequências concretas de uma decisão judicial no meio social, especialmente em tempos em que a coletividade nunca esteve tão vigilante e conectada. Tanto que, não por acaso, o Código de Ética da Magistratura prevê:

Art. 25. Especialmente ao proferir decisões, incumbe ao magistrado atuar de forma cautelosa, atento às consequências que pode provocar.

No mesmo sentido é o que dispõe a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942):

             Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Nessa conjuntura, impende ressaltar que, ao redigir suas decisões, os magistrados devem observar os comandos normativos e os deveres de urbanidade (art. 35, IV, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional), de cortesia e uso de linguagem polida e respeitosa, de prudência e de cautela (arts. 22, caput e parágrafo único; 24 e 25 do Código de Ética da Magistratura Nacional).

Isso porque, além do “cenário de grave racismo estrutural e institucional[1] existente no país, caracterizado por um sistema penal e prisional aplicado eminentemente a pessoas negras, é dever do magistrado ser especialmente cauteloso em suas manifestações, evitando a utilização de termos discriminatórios e que possam indicar comportamento preconceituoso.

Acerca do tema, especialmente no que tange ao dever ético do juiz brasileiro de meditar sobre o consequencialismo voltado às decisões judiciais, José Renato Nalini leciona que:[2]

[...] O juiz pode investir na partilha de sensibilidades e intuições entre os membros de uma comunidade histórica. Ao apreciar o caso concreto ele é obrigado, na fundamentação, a sinalizar qual foi sua linha de raciocínio e quais os fundamentos encontrados para responder à indagação que as partes fizeram ao Estado-juiz. É obrigação sua ajustar as expectativas às exigências não apenas dos diretamente envolvidos, mas de todo o ambiente sobre o qual atua. O caráter preciso das decisões vai depender das interpretações compartilhadas entre os cidadãos, sobre o valor obtenível pela justiça, respeitada a diversidade cultural, a compreensão mais facilmente alcançável pelo público partícipe ou espectador. A interpretação levada a cabo pelo juiz é uma forma de argumentar com a comunidade e fazê-la assimilar melhor o que significa a justiça. Por isso é que a argumentação não pode refugiar-se no hermetismo da dicção técnica ininteligível. Argumentar, numa decisão judicial que afeta diretamente a alguns, mas indiretamente a todos, é apelar a significados comuns. Pois a justiça humana é um bem da vida apreensível e não um segredo confiado a uns poucos iniciados. O juiz precisa exercitar a sua comunicação não-distorcida. Não pode ele ignorar o significado concreto dos bens sociais. Daquilo que moveu as partes a recorrerem ao Judiciário. Se as pessoas em litígio forem consideradas meros sujeitos processuais, ou seja, seres abstraídos de suas qualidades e quiçá de sua dignidade, os bens por que se digladiam também serão abstraídos de seus significados e se prestarão a distribuições compatíveis com princípios abstratos (Grifos no original).


Mas não houve conotação racista no emprego das expressões pela juíza reclamada.

Desse modo, é caso de se manter o acórdão proferido pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, porquanto examinou com acuidade o procedimento administrativo, desnecessária a intervenção deste Conselho.

 

3.  Ante o exposto, determino o arquivamento deste Pedido de Providências. 

É como voto. 

 

Ministra LUIS FELIPE SALOMÃO 

 Corregedor Nacional de Justiça


 J5/F29



[1] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Demografia_do_Paran%C3%A1; acesso em 03/08/2023.


[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. “Relatório de Atividade: Igualdade Racial no Judiciário”. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/10/Relatorio_Igualdade-Racial_2020-10-02_v3-2.pdf>. Acesso em: 16 set. 2021.

[2] NALINI, José Renato. Ética da Magistratura: Comentários ao Código de Ética da Magistratura Nacional. Edição do Kindle. 4ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais – Thomson Reuters Brasil, 2019. P. 6335.






 

 

 

Pedido de Providências 0006445-63.2020.2.00.0000

Relator: Corregedoria

Item: 11 (11ª Sessão Ordinária)

Pauta: 08.08.2023

VOTO DIVERGENTE

O EXMO. SR. CONSELHEIRO MÁRIO GOULART MAIA: Trata-se de Pedido de Providências (PP) instaurado de ofício pelo então Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Humberto Martins[1], em face da Juíza de Direito Inês Marchalek Zarpelon, magistrada vinculada ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR).

O PP objetiva avaliar possível desvio de conduta praticado pela magistrada, consubstanciado em utilização de expressão com conotação racista, em tese, por ocasião da prolação da sentença criminal, nos autos do Processo 0017441-07.2018.8.16.0013.

Eis o trecho em debate:

[...] Sobre sua conduta social, nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão de sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente. [...] Assim, considerando a existência de uma circunstância judicial desfavorável (conduta social), elevo a pena base em da diferença entre o mínimo e o máximo da pena prevista para o crime (o que resulta em 07 meses), fixando-a acima de seu mínimo legal, ou seja, em 03 (três) anos e 07 (sete) meses de reclusão e 12 (doze) dias multa, no valor de 1/30 do salário mínimo vigente à época dos fatos (ID 4082741, p.117). [Grifos para destaque] 

Após análise detida dos autos, a douta Corregedoria Nacional de Justiça (CN) propõe ao Plenário do CNJ o arquivamento do PP.

Compreende que “tanto nas informações da reclamada, quanto no pedido de providências na origem e no julgamento da apelação criminal, conclui-se no sentido de que a cor da pele não foi utilizada como elemento de convicção para a condenação do Sr. [N.V.P], tanto menos com conotação racista”.

Não diviso dos registros lançados pelo nobre Relator quanto à imputação de racismo à juíza. De fato, não aparenta ser a hipótese dos autos. Mas aqui me parece ser necessário destacar um ponto importante: se não há conotação racista na expressão, por qual motivo a magistrada fez constar da sentença a expressão “em razão de sua raça”? Reproduzo uma vez mais:

Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão de sua raça, agia de forma extremamente discreta [...]

A juíza explica que a frase grafada entre vírgulas está fora de contexto. Na verdade, “em razão de sua raça” trata-se “de uma oração subordinada adverbial causal que é dependente, no conceito sintático, da oração seguinte.

[Na ordem direta, seria ]: agia de forma extremamente discreta nos delitos, em razão de sua raça. A oração agia de forma extremamente discreta nos delitos está apenas justaposta à primeira oração: (É) seguramente integrante do grupo criminoso. Sem qualquer dependência ou conjunção que conecte as orações. Por tal razão, denomina-se oração coordenada assindética (ou seja, sem conectivo). Dessa forma, é possível entender o significado do período sintático como um todo, e não em partes (Id 4151887, p.1-7)”

Com a devida vênia aos que possam compreender de modo diverso, penso que a justificação apresentada não possui a densidade jurídica necessária a afastar a possível falta funcional cometida, ainda que a magistrada Inês Marchalek Zarpelon tenha razão quanto aos aspectos linguísticos e gramaticais.

O filósofo francês Etiénne de la Boétie (1530-1563) escreveu em 1549 a obra Discurso sobre a servidão voluntária, em que abordou o necessário posicionamento de não-submissão imposto às classes alijadas frente ao Absolutismo então vigente:

Verdade seja dita, é natural à patuleia, cujo número cresce cada vez mais nas cidades, desconfiar daquele que a ama e ser crédula com quem a engana. Não penseis que há pássaro mais dado ao chamariz ou peixe mais afoito em morder o anzol do que aqueles povos que, tão rapidamente, se entregam a servidão diante da menor isca que se balance, como se diz, diante de seu bico; e é extraordinário como se deixam levar com tanta facilidade, contanto que se lhes afague um pouco. (Discurso sobre a servidão voluntária,2017, Edipro Edições Profissionais, São Paulo, tradução Evelyn Tesche, Pág.44)

O professor Silvio Luiz de Almeida, em sua obra Racismo estrutural, também nos traz as seguintes concepções quanto ao racismo estrutural:

Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. O racismo é parte de um processo social que ocorre “pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição”. Nesse caso, além de medidas que coíbam o racismo individual e institucionalmente, torna-se imperativo refletir sobre mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas. (Almeida, Silvio Luiz de. Racismo estrutural, São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019).

Existem duas circunstâncias fáticas em evidência: i) a prática, em tese, de racismo, pelo possível agravamento de pena do acusado por conta da raça – questão afastada pelo Relator, a qual adiro à fundamentação, pois a “a cor da pele não foi utilizada como elemento de convicção para a condenação do réu”; e ii) a impropriedade ou excesso de linguagem lançado pela magistrada em sua sentença, dada a responsabilidade política e social dos juízes nas democracias modernas.

É sobre essa segunda perspectiva que a conduta da magistrada não pode (e não deve), a meu sentir, passar desapercebida pelo Plenário. Pelo contrário, deve ser examinada pela ótica do racismo estrutural que, como se sabe, passa de modo discreto por seu viés inconscientemente sedimentado.

Na publicação “Polícia Cidadã – parecer sobre o plano de redução de letalidade policial do Estado do Rio de Janeiro”, do Grupo de Trabalho instituído pela Presidência deste Conselho  (Portaria 422[2], de 21.12.2022), há importante consideração quanto à imprescindibilidade de que “o fenômeno do racismo estrutural seja reconhecido e enfrentado pelo Plano de Redução de Letalidade, uma vez que a população negra tem sido, por décadas, a mais atingida pelas ações policiais e, em ultima ratio, pela letalidade policial, não mais se podendo admitir uma atividade policial dissociada dos princípios e garantias fundamentais, sobretudo, no cumprimento de medidas cautelares de busca e cumprimento de mandados de prisão.” (Tópico 6, fl. 119).

Pode-se questionar a aplicação deste parecer à situação em concreto, por se tratar de estudo voltado à formalização de programas e ações que reduzam a letalidade em ações policiais (ADPF 635/RJ) . Mas se observarmos o caso jurisdicional examinado pela juíza no exercício de seu mister (Id 4082741) ver-se-á que a manifestação está em total sintonia.

Reforça essa compreensão a referência constante do voto condutor do Acórdão da RD TJPR 0006505-40.2020.8.16.7000, que determinou o arquivamento do feito disciplinar instaurado em desfavor da magistrada.

De acordo com o relator da aludida Reclamação, a afirmação de que o réu “agia de forma extremamente discreta em razão da cor de sua pele não decorre da conclusão ou juízo pessoal da juíza requerida. Trata-se, em verdade, do conteúdo extraído do depoimento do policial civil [...] que participou das investigações”:

[...] Do contexto total da sentença – proferida em 115 laudas e com criteriosa análise dos elementos probatórios – extrai-se que a menção à raça se deu com a única finalidade de apontar a forma de agir na divisão das tarefas do apontado grupo criminoso (“agia de forma extremamente discreta”), e não como fundamento ou conclusão da condenação ou majoração da pena final imposta ao condenado NATAN. 

Importante ressaltar que essa afirmação constante da sentença (de que o réu Natan agia de forma extremamente discreta em razão da cor de sua pele) não decorre da conclusão ou juízo pessoal da juíza requerida. Trata-se, em verdade, do conteúdo extraído do depoimento do policial civil Fabiano S. de Oliveira, que participou das investigações. Confira-se o depoimento prestado em juízo pelo mencionado policial civil: [...].

Nessa quadra, outra indagação pode ser formulada: a menção à raça com a finalidade de apontar a forma de agir do acusado seria utilizada pela juíza se o réu fosse branco?

Penso que a resposta não é tão rápida quanto aparenta ser. E não sendo, é de rigor reconhecer que a expressão externada pela magistrada inobserva, no mínimo, a cautela necessária; a utilização de linguagem escorreita e compreensível; e o dever de o juiz tratar com urbanidade todos quantos se relacionem com a administração da Justiça.

Ora, se fosse inevidente o (des)acerto da expressão não teríamos as Notas Públicas de repúdio emitidas pela Defensoria Pública do Estado do Paraná (Id 4082764) e pela Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Paraná (Id 4082765), além de inúmeras matérias jornalísticas sobre o caso (Id 4082754/4082762).

                                      

[...]

                                                                                          

[...]

[...]

[...]

A conclusão do Relator quanto a este ponto não destoa dessa compreensão:

Nesse contexto, não se pode olvidar que, ao redigir tal decisão, a magistrada não adotou a cautela necessária, o que causou repercussão entre os jurisdicionados na imprensa em razão da ênfase empregada à participação do réu em grupo criminoso, parecendo utilizar-se como fundamento a “sua raça”, [...] seguramente integrante do grupo criminoso, em razão de sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais

[...]

Não se olvida que são muito relevantes as consequências concretas de uma decisão judicial no meio social, especialmente em tempos em que a coletividade nunca esteve tão vigilante e conectada. Tanto que, não por acaso, o Código de Ética da Magistratura prevê:

Art. 25. Especialmente ao proferir decisões, incumbe ao magistrado atuar de forma cautelosa, atento às consequências que pode provocar.

No mesmo sentido é o que dispõe a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942):

Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Nessa conjuntura, impende ressaltar que, ao redigir suas decisões, os magistrados devem observar aos comandos normativos e aos deveres de urbanidade (art. 35, IV, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional), de cortesia e uso de linguagem polida e respeitosa, de prudência e de cautela (arts. 22, caput e parágrafo único; 24 e 25 do Código de Ética da Magistratura Nacional).

Isso porque, além do “cenário de grave racismo estrutural e institucional[1] existente no país, caracterizado por um sistema penal e prisional aplicado eminentemente a pessoas negras, é dever do magistrado ser especialmente cauteloso em suas manifestações, evitando a utilização de termos discriminatórios e que possam indicar comportamento preconceituoso.

Assim, não vejo como se determinar o arquivamento dos autos de antemão.

Outro aspecto que ouso discordar do voto apresentado pelo ilustre Corregedor Nacional de Justiça diz a ver com a assertiva de que “uma vez refutada a tese da apelação no sentido de que a magistrada não agiu de forma parcial ou racista, com mais razão, no âmbito administrativo, não há que se falar em infração disciplinar punível”.

Como se sabe, a independência entre as instâncias garante à Administração Pública, in caso ao CNJ, a apuração da conduta contrária, em tese, aos preceitos da Loman e do Código de Ética da Magistratura Nacional –, conforme pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Ementa: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NA RECLAMAÇÃO. ALEGADA AFRONTA AO QUE DECIDIDO NO HC 138.837 (Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI). INEXISTÊNCIA. INDEPENDÊNCIA ENTRE AS INSTÂNCIAS PENAL, CIVIL E ADMINISTRATIVA. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. Determinadas condutas podem ser classificadas, simultaneamente, como ilícito penal, civil e administrativo. Nesses casos, poderá haver condenações concomitantes em todas as esferas de apuração, valendo a regra da independência e autonomia entre as instâncias. [...]. Desse modo, considerando que a regra vigorante no sistema jurídico brasileiro é de que haja a independência entre as instâncias penal, civil e administrativa, não há se falar em comunicação do que ficou decidido no paradigma apresentado com a decisão tomada em sede administrativa. [...] (Rcl 6.880-AgR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Plenário, DJe de 22/2/2013). 5. Recurso de agravo a que se nega provimento. (Rcl 52364 AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 22/04/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-079  DIVULG 26-04-2022  PUBLIC 27-04-2022, grifo nosso)

Os entendimentos desta Casa seguem a mesma orientação.

PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. SINDICÂNCIA. INSTAURAÇÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR PARA APROFUNDAMENTO DAS INVESTIGAÇÕES. CONSTATAÇÃO DE EVENTUAIS IRREGULARIDADES PRATICADAS POR MAGISTRADO NO EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES. APRESENTAÇÃO DE PEDIDO DE APOSENTADORIA COM O OBJETIVO DE EVITAR A INSTAURAÇÃO DO PAD. INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE APOSENTADORIA VOLUNTÁRIA. AUSÊNCIA DE NULIDADE.

[...]

IV - A independência entre as instâncias cível, penal e administrativa viabiliza a investigação isolada nas três esferas. Apuração administrativa que se faz sob a perspectiva ético-disciplinar, visando, acaso confirmada a violação aos deveres de idoneidade, integridade e moralidade, a aplicação da sanção pertinente.

V – Pela improcedência do pedido e prosseguimento do PAD. (CNJ - PCA - Procedimento de Controle Administrativo - 0002395-38.2013.2.00.0000 - Rel. LUIZA CRISTINA FONSECA FRISCHEISEN - 183ª Sessão Ordinária - julgado em 25/02/2014, grifo nosso).

 

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. SERVIDOR PÚBLICO. AVOCAÇÃO. PRELIMINARES REJEITADAS. PROCESSO CRIMINAL. INDEPENDÊNCIA DAS INSTÂNCIAS. FATOS INCONTROVERSOS. AFIRMAÇÃO DE INTERFERÊNCIA EM DECISÃO JUDICIAL. CONDUTA INCOMPATÍVEL COM A MORALIDADE ADMINISTRATIVA. DEMISSÃO. 

1. O Processo Administrativo Disciplinar foi instaurado visando a apuração da conduta de servidor público, ocupante do cargo de Assistente Judiciário, vinculado ao Poder Judiciário estadual, consistente na solicitação de vultosa quantia em dinheiro, sob a promessa de interferência e reversão de decisão judicial desfavorável.

2. É cediço que o servidor público responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições. Na análise desta tríplice dimensão, ante a ilicitude imputada, a independência das instâncias (administrativa e penal) deve ser observada.

[...]

(CNJ - PAD - Processo Administrativo Disciplinar - 0003248-76.2015.2.00.0000 - Rel. CARLOS AUGUSTO DE BARROS LEVENHAGEN - 251ª Sessão Ordinária - julgado em 16/05/2017, grifo nosso).

Não é demais lembrar, outrossim, que a situação em apreço, insisto, não se espraia para a imputação de racismo à juíza, mas sim o uso impróprio de linguagem em sentença, para fins de análise descritiva dos acontecimentos e dosimetria da pena.

Logo, versando a questão sobre possível impropriedade ou excesso de linguagem (art. 41 da Loman), cuja questão de fundo (o racismo estrutural) reclama o combate permanente, não há falar em vinculação entre a seara administrativa e a penal. O arquivamento in limine, concessa venia, se mostra precipitado e dissociado das convenções internacionais, das iniciativas deste Conselho e do arcabouço normativo baixado por esta Casa para o enfrentamento de toda a forma discriminação. A respeito do tema, destaco:

§    O Decreto 65.810/1969, que Promulga a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial;

§    O Decreto 678/1992, que Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969;

§    A Declaração e Programa de Ação de Durban[3], no sentido de que os Estados devem intensificar a implementação de ações contidas na agenda de mudança transformadora para a justiça racial;

§    A Carta de Brasília entregue ao CNJ em 2018 pelo Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros (Enajun), a qual propunha a criação de um fórum permanente no Poder Judiciário visando à produção de conhecimento no apoio à adoção de ações concretas para a identificação, prevenção e superação da discriminação institucional;

§    O Decreto 10.932/2022, que Promulga a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmado pela República Federativa do Brasil, na Guatemala, em 5 de junho de 2013;

§    O Observatório dos Direitos Humanos do Poder Judiciário, instituído pela Portaria CNJ 190/2020;

§    A Recomendação CNJ 123/2022, que recomenda aos órgãos do Poder Judiciário brasileiro a observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos e o uso da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

§    A Resolução CNJ 490/2023, que institui o Fórum Nacional do Poder Judiciário para a Equidade Racial (Fonaer), destinado a elaborar estudos e propor medidas para o aperfeiçoamento do sistema judicial quanto ao tema.

De mais a mais, convém destacar que a avaliação de possível inobservância do art. 41 da Loman por magistrados não é nova no âmbito deste Conselho e milita no sentido de ser possível a abertura de PAD para a devida apuração dos fatos. Confira-se:

REPRESENTAÇÃO. DECISÃO MONOCRÁTICA. ARQUIVAMENTO. COISA JULGADA ADMINISTRATIVA. INOCORRÊNCIA. REVISÃO DISCIPLINAR. NÃO CABIMENTO. PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. DESCONSTITUIÇÃO DA DECISÃO. DELIBERAÇÃO PELO ÓRGÃO COLEGIADO COMPETENTE. NECESSIDADE.

[...]

2. A existências de críticas e comentários desairosos à atuação do Ministério Público desnecessários ao julgamento de Ação Civil Pública pode configurar quebra do dever de urbanidade e excesso de linguagem por parte do magistrado que proferiu a decisão.

3. Recebimento do feito como Procedimento de Controle Administrativo, o qual se julga procedente para desconstituir decisão da Corregedoria Geral de Justiça local, determinando que o procedimento seja submetido à deliberação colegiada para instauração ou não de Processo Administrativo Disciplinar.

 (CNJ - REVDIS - Processo de Revisão Disciplinar - Conselheiro - 0006919-15.2012.2.00.0000 - Rel. JORGE HÉLIO CHAVES DE OLIVEIRA - 169ª Sessão Ordinária - julgado em 14/05/2013, grifo nosso).

 

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR INSTAURADO EM DESFAVOR DE MAGISTRADA. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. VIOLAÇÃO DOS DEVERES IMPOSTOS PELOS ARTS. 35, IV E VIII, E 56, II, DA LOMAN, BEM COMO PELOS ARTS. 8º, 9º, 22 E 39 DO CÓDIGO DE ÉTICA DA MAGISTRATURA NACIONAL. PROLAÇÃO DE SENTENÇA COM CONTEÚDO DISCRIMINATÓRIO E ESTEREOTIPADO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. FALTA DE URBANIDADE, CORTESIA E RESPEITO COM A AUTORA DA AÇÃO. PROCEDÊNCIA DAS IMPUTAÇÕES. APLICAÇÃO DA PENA DE ADVERTÊNCIA.

1. Processo administrativo disciplinar instaurado em desfavor de magistrada do TJRJ, para apurar suposta afronta aos deveres do cargo, consubstanciada na prolação de sentença com conteúdo aparentemente preconceituoso e discriminatório em relação às pessoas com deficiência, suposta falta de urbanidade e cortesia, bem como possível inobservância do dever de uso de linguagem polida e respeitosa.

[...]

4. A qualificação profissional dos magistrados também não pode ser usada como meio de discriminação daqueles que leem/examinam o pronunciamento judicial, nem funcionar como óbice ao acesso à Justiça.

5. Comprovada a existência de considerações pejorativas na sentença, de conteúdo preconceituoso direcionado às pessoas com deficiência e de propagação da ideia de que o tratamento conferido a essas pessoas representa um privilégio/benefício, não há que se falar em imunidade funcional ou em equívoco interpretativo dos leitores, mas, sim, em patente inobservância dos deveres inerentes à magistratura. 

6. Cuidando-se de atos faltosos reprováveis, mas que indicam negligência pontual no cumprimento dos deveres do cargo, afigura-se adequada a aplicação da pena de advertência. (CNJ - PAD - Processo Administrativo Disciplinar - 0005237-10.2021.2.00.0000 - Rel. MAURO PEREIRA MARTINS - 348ª Sessão Ordinária - julgado em 05/04/2022, grifo nosso).

Nesse contexto, havendo indícios de cometimento de infração disciplinar pela Juíza de Direito Inês Marchalek Zarpelon, é obrigação deste Conselho prosseguir com a apuração dos fatos e, se confirmada a inobservância dos deveres do cargo, punir adequadamente a magistrada.

Em arremate, peço vênia ao eminente Relator para me apropriar das lições de José Renato Nalini[4] lançadas em seu voto, quanto “ao dever ético do juiz brasileiro de meditar sobre o consequencialismo voltado às decisões judiciais”:

[...] O juiz pode investir na partilha de sensibilidades e intuições entre os membros de uma comunidade histórica. Ao apreciar o caso concreto ele é obrigado, na fundamentação, a sinalizar qual foi sua linha de raciocínio e quais os fundamentos encontrados para responder à indagação que as partes fizeram ao Estado-juiz. É obrigação sua ajustar as expectativas às exigências não apenas dos diretamente envolvidos, mas de todo o ambiente sobre o qual atua. O caráter preciso das decisões vai depender das interpretações compartilhadas entre os cidadãos, sobre o valor obtenível pela justiça, respeitada a diversidade cultural, a compreensão mais facilmente alcançável pelo público partícipe ou espectador. A interpretação levada a cabo pelo juiz é uma forma de argumentar com a comunidade e fazê-la assimilar melhor o que significa a justiça. Por isso é que a argumentação não pode refugiar-se no hermetismo da dicção técnica ininteligível. Argumentar, numa decisão judicial que afeta diretamente a alguns, mas indiretamente a todos, é apelar a significados comuns. Pois a justiça humana é um bem da vida apreensível e não um segredo confiado a uns poucos iniciados. O juiz precisa exercitar a sua comunicação não-distorcida. Não pode ele ignorar o significado concreto dos bens sociais. Daquilo que moveu as partes a recorrerem ao Judiciário. Se as pessoas em litígio forem consideradas meros sujeitos processuais, ou seja, seres abstraídos de suas qualidades e quiçá de sua dignidade, os bens por que se digladiam também serão abstraídos de seus significados e se prestarão a distribuições compatíveis com princípios abstratos. (Grifo nosso).

Por essas singelas razões, e rogando vênia uma vez mais ao i. Relator, voto pela abertura de PAD em face da Juíza de Direito Inês Marchalek Zarpelon, magistrada vinculada ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, sem o afastamento das funções.

 

 

Mário Goulart Maia

Conselheiro



[1] Id 4092728

[2] Institui Grupo de Trabalho intitulado “Polícia Cidadã - Redução da Letalidade Policial”, em atendimento à decisão proferida nos autos da ADPF n. 635 do Supremo Tribunal Federal.

[3] https://brasil.un.org/pt-br/150033-declara%C3%A7%C3%A3o-e-plano-de-a%C3%A7%C3%A3o-de-durban-2001.

[4] NALINI, José Renato. Ética da Magistratura: Comentários ao Código de Ética da Magistratura Nacional. Edição do Kindle. 4ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais – Thomson Reuters Brasil, 2019. P. 6335.