Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO - 0002978-71.2023.2.00.0000
Requerente: LUIS HENRIQUE EVANGELISTA
Requerido: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS - TJMG

 


EMENTA: 

PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA. CONCURSO PÚBLICO. ORGANIZAÇÃO DO QUADRO DE SERVIDORES. RESERVA DE VAGAS PARA CANDIDATOS NEGROS OU COM DEFICIÊNCIA. OBSERVAÇÃO DA TOTALIDADE DOS CARGOS, POR ESPECIALIDADE.

1. No âmbito da Administração Pública, a Constituição estipula que os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma legal (art. 37, inciso I).

2. Para atender ao princípio da isonomia, que visa conferir igualdade material entre os cidadãos por meio da distribuição equitativa dos bens sociais, a norma constitucional impõe a necessidade da reserva de determinado percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas com deficiência (VIII). Semelhante orientação é estabelecida na Lei n.º 12.990/2014, que reserva percentual das vagas oferecidas nos concursos aos candidatos negros.

3. A reserva de vagas para cargos públicos deve tomar por base de cálculo a quantidade total de vagas oferecidas no respectivo edital do certame, para cada cargo público, definido em função da especialidade. Precedentes dos Tribunais Superiores (STF e STJ) nesse sentido.

4. Procedimento de controle administrativo que se julga procedente.

 

 ACÓRDÃO

O Conselho, por unanimidade, julgou procedente o pedido, com determinações ao Tribunal, nos termos do voto do Relator. Presidiu o julgamento a Ministra Rosa Weber. Plenário Virtual, 16 de junho de 2023. Votaram os Excelentíssimos Conselheiros Rosa Weber, Luis Felipe Salomão, Vieira de Mello Filho, Mauro Pereira Martins, Salise Sanchotene, Jane Granzoto, Richard Pae Kim, Marcio Luiz Freitas, Giovanni Olsson, Sidney Madruga, João Paulo Schoucair, Marcos Vinícius Jardim Rodrigues, Marcello Terto, Mário Goulart Maia e Luiz Fernando Bandeira de Mello.

Conselho Nacional de Justiça

Autos: PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO - 0002978-71.2023.2.00.0000
Requerente: LUIS HENRIQUE EVANGELISTA
Requerido: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS - TJMG


RELATÓRIO

 

Trata-se de Procedimento de Controle Administrativo (PCA), com pedido liminar, proposto por Luís Henrique Evangelista contra o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG), no qual questiona a organização do Concurso Público para Provimento de Vagas e Formação de Cadastro de Reserva para Cargos Efetivos do respectivo quadro de servidores, regido pelo Edital n.º 01/2022.

Informa, inicialmente, que o referido concurso visa o preenchimento de diversos cargos existentes na estrutura de pessoal, dentre os quais: 59 (cinquenta e nove) vagas para Oficial Judiciário, Especialidade Oficial de Justiça; 105 (cento e cinco) vagas para Analista Judiciário, Especialidade Assistente Social e 22 (vinte e duas) vagas para Analista Judiciário, Especialidade Psicólogo.

Como candidato regularmente inscrito e concorrendo às vagas reservadas para as pessoas com deficiência, o requerente sustenta que o critério adotado pelo Tribunal para a reserva das vagas destinadas aos candidatos negros e com deficiência não atende aos comandos normativos aplicados para o referido procedimento.

Segundo argumenta, do total de vagas inicialmente ofertadas, “não houve a reserva de nenhuma vaga para pessoa com deficiência ou negro, ocasião em que, por subterfúgio do TJMG, todas as vagas existentes foram expressamente destinadas ao 1º candidato da lista da ampla concorrência de cada Comarca constante do Edital”. Como o edital estabeleceu a reserva de vagas para os candidatos negros e deficientes pelo critério de “cargo/especialidade/unidade”, aduz que o percentual estabelecido no próprio edital do certame não será alcançado.

Relata que o Tribunal fracionou a distribuição de todas as 59 (cinquenta e nove) vagas do cargo de Oficial de Justiça em 59 (cinquenta e nove) comarcas, distribuindo 01 (uma) vaga para cada unidade judiciária. Nesse contexto, diante da aplicação do critério de reserva de vagas por unidade de lotação, sem observação do total de vagas oferecidas no edital, aduz que o percentual mínimo imposto legalmente foi desrespeitado. Informa que semelhante procedimento foi aplicado para os demais cargos ofertados no concurso.

Sustenta que o cálculo da reserva de vagas deve ocorrer a partir do número total de vagas oferecidas, com observação do quadro geral de servidores do Tribunal, e não de cada unidade. Considera que o procedimento adotado pelo TJMG “inviabiliza e suprime, por completo, a ação afirmativa da Lei de Cotas, obstruindo a efetiva participação e o direito constitucional de acesso aos cargos públicos aos candidatos com deficiência (art. 37, CIII, da CF)”.

A despeito de o edital registrar expressamente (itens 2.2 e 2.3) a reserva de 10% (dez por cento) das vagas para candidatos com deficiência e de 20% (vinte por cento) para candidatos negros, considera que o critério adotado limita a participação e o acesso aos cargos públicos pelos candidatos negros e/ou com deficiência, em evidente violação ao princípio da igualdade e às regras de inclusão social.

Aduz que o comando normativo é suficientemente claro ao afirmar que o percentual de vagas reservadas nos concursos públicos deve ser definido a partir do número total de vagas oferecidas no respectivo edital, na esteira do que dispõe a Lei Estadual n.º 11.867/95 e no Decreto Estadual n.º 42.257/2022. Considera inadmissível “qualquer processo hermenêutico que tenha por consequência, ao estabelecer indevido processo de contagem fracionada dos cargos, negar eficácia plena à norma que prevê a ação afirmativa da reserva de vagas”. Cita precedente[1] do Supremo Tribunal Federal (STF) nesse sentido.

Pelos fatos e fundamentos que apresenta, solicita a concessão de medida liminar para assegurar a reserva de 10% (dez por cento) e 20% (vinte por cento) do total de vagas oferecidas no certame, respectivamente, para os candidatos com deficiência e negros, inclusive com retificação do Edital n.º 01/2022. Ainda em caráter de urgência, requer a suspensão do ato de homologação e do respectivo prazo de validade do certame, até posterior decisão por este Conselho.

No mérito, pugna pela confirmação da medida de urgência requerida, inclusive para os demais cargos que vierem a vagar durante o prazo de validade do concurso.

Regularmente notificado, o Tribunal apresentou manifestação de defesa junto ao Id 5149445. Inicialmente, apresenta as seguintes preliminares: i) preclusão do direito de impugnar o regulamento do certame, que já se encontra em fase avançada de organização; ii) ausência de interesse geral, e iii) matéria afeta à autonomia do Tribunal. No mérito, o TJMG considera adequado o critério de reserva de vagas por unidade de lotação.

É o relatório. Passo ao voto.

 



[1] STF, RE 227.229/MG. Rel. Min. Ilmar Galvão, Plenário, DJ 06.08.2000).


 

 

VOTO

 

1.    Questões preliminares

 

Inicialmente, registre-se que a Constituição Federal (art. 103-B, § 4º, inciso II) assinala que compete ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) “zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei”.

A norma invocada assegura a atuação administrativa desde Conselho para, independentemente de provocação, avaliar a regularidade dos atos administrativos praticados no âmbito do Poder Judiciário e verificar, caso necessário, sua conformidade com os ditames legais e regulamentares aplicáveis, possuindo competência original, autônoma e concorrente que não constitui óbice para a autonomia dos Tribunais[1].

Assim, como órgão central de controle administrativo do Poder Judiciário, compete ao CNJ aprimorar o sistema judiciário nacional e contribuir para que a prestação jurisdicional seja realizada com moralidade, eficiência e efetividade em benefício da sociedade[2], podendo determinar a correção do ato questionado quando verificada a ocorrência de ilegalidade ou desvio de finalidade.

Nesse contexto, denota-se que a possível ausência de impugnação individual junto à respectiva comissão organizadora do certame não impede a Administração, aqui incluído o próprio CNJ, de exercer o poder dever de rever os seus atos ilegais, notadamente nas hipóteses em que o objeto suscitado envolve matéria de interesse público que pode ser conhecida de ofício, como no presente caso (Súmula 473 do STF[3]).

Relevante rememorar que a norma constitucional assegura proteção integral ao trabalhador portador de deficiência (art. 7º, XXXI[4]), cujo resguardo constitui direito fundamental que proíbe qualquer forma de discriminação e assegura, ainda, integração social de forma ampla (art. 24, XIV[5]). Para além da referida orientação, a tratada garantia está estreitamente ligada a outro direito igualmente fundamental, concernente à acessibilidade física e social para as pessoas com deficiência no serviço público, corolário do princípio da igualdade material.

Por todo o contexto acima apresentado, conclui-se que o procedimento adotado para preenchimento dos quadros de servidores deve observar a adequada aplicação das determinações constitucionais que direcionam para a efetividade das ações afirmativas de promoção da igualdade material (art. 37, VIII); situação que enseja a atuação administrativa deste Conselho, independentemente, inclusive, de prévia provocação, ante a evidente caracterização do interesse público. Precedentes nesse sentido:

 

EMENTA: Recurso ordinário em mandado de segurança. Concurso público. Portadores de necessidades especiais. Isonomia. Proporcionalidade e alternância na distribuição das vagas. Inexistência de violação dos princípios do contraditório, da ampla defesa ou do devido processo legal. Preclusão do direito de contra-arrazoar o recurso ordinário. Lista de classificação. Conformação aos ditames da Constituição. Competência da Administração. Assunção de outro cargo público. Perda superveniente do objeto. Não ocorrência. Agravo regimental não provido.

1. Inviável falar-se em violação dos princípios do devido processo legal, do contraditório ou da ampla defesa, por ausência de intimação para contra-arrazoar o recurso ordinário, pois, embora devidamente intimada de todos os subsequentes atos processuais, a União só apresentou sua irresignação quando da prolação da decisão monocrática em sentido contrário à sua pretensão. Preclusão configurada.

2. Não se mostra justo, ou, no mínimo, razoável, que o candidato portador de deficiência física, na maioria das vezes limitado pela sua deficiência, esteja em aparente desvantagem em relação aos demais candidatos, devendo a ele ser garantida a observância do princípio da isonomia /igualdade.

3. O Supremo Tribunal Federal, buscando garantir razoabilidade à aplicação do disposto no Decreto 3.298/99, entendeu que o referido diploma legal deve ser interpretado em conjunto com a Lei 8.112/90. Assim, as frações, mencionadas no art. 37, § 2º, do Decreto 3.298/99, deverão ser arredondadas para o primeiro número subsequente, desde que respeitado o limite máximo de 20% das vagas oferecidas no certame. Precedentes: MS nº 30.861/DF, Relator o Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe de 8/6/12; MS nº 31.715/DF, Relatora a Ministra Rosa Weber, decisão monocrática, DJe de 4/9/14.

4. Agravo regimental não provido[6]. (Grifo nosso)

 

EMENTA: ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. RESERVA DE VAGAS PARA PORTADORES DE DEFICIÊNCIA. ARTIGO 37, INCISO VIII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. A exigência constitucional de reserva de vagas para portadores de deficiência em concurso público se impõe ainda que o percentual legalmente previsto seja inferior a um, hipótese em que a fração deve ser arredondada. Entendimento que garante a eficácia do artigo 37, inciso VIII, da Constituição Federal, que, caso contrário, restaria violado. Recurso extraordinário conhecido e provido[7]. (Grifo nosso)

 

Nesse contexto, diante do possível desatendimento do direito fundamental estabelecido na norma constitucional, afasto as preliminares suscitadas e passo à análise do questionamento proposto.

 

2.    Do mérito

 

O requerente se insurge contra o critério adotado pelo TJMG para convocação e preenchimento das vagas reservadas aos candidatos negros e/ou com deficiência no âmbito do concurso público para servidores do seu quadro de pessoal, regido pelo Edital n.º 01/2022 (itens 2.2 e 2.3). Considera que a mensuração das vagas reservadas aos candidatos cotistas, com especificação “por unidade de lotação” e desconsiderando o total de vagas ofertadas do concurso, não observa os preceitos legais aplicados para a concretização das ações afirmativas.

O regulamento do concurso ora questionado foi assim publicado, na parte que interessa:

 

Edital TJMG n.º 01/2022

(...)

2.1 - O concurso destina-se ao provimento de vagas existentes, por cargo/especialidade, discriminadas por unidade, e à formação de cadastro de reserva para provimento de vagas que vierem a surgir e que não forem preenchidas por remoção ou reversão, durante o prazo de validade do certame, dos cargos efetivos de Oficial Judiciário, das especialidades de Assistente Técnico de Controle Financeiro e de Oficial de Justiça, e de Analista Judiciário, das especialidades de Administrador, de Analista de Tecnologia da Informação, de Analista Judiciário, de Assistente Social, de Bibliotecário, de Contador, de Enfermeiro, de Engenheiro Civil, de Engenheiro Eletricista, de Engenheiro Mecânico, de Médico, de Psicólogo e de Revisor Judiciário.

2.2 - Em obediência ao disposto na Lei Estadual nº 11.867, de 28 de julho de 1995, 10% (dez por cento) das vagas destinadas à nomeação durante o prazo de validade deste certame, por cargo/especialidade/unidade, serão reservadas aos candidatos com deficiência inscritos e aprovados nesta condição.

2.3 - Em cumprimento à Resolução nº 203, de 23 de junho de 2015, do Conselho Nacional de Justiça, 20% (vinte por cento) das vagas destinadas à nomeação dentro do prazo de validade deste certame, por cargo/especialidade/unidade, serão reservadas aos negros inscritos e aprovados nesta condição. (Grifo nosso)

 

No âmbito da Administração Pública, a Constituição estipula que os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma legal (art. 37, inciso I[8]). Para atender ao princípio da isonomia, que visa conferir igualdade material entre os cidadãos por meio da distribuição equitativa dos bens sociais, a norma constitucional impõe a necessidade da reserva de determinado percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas com deficiência (inciso VIII[9]).

Para concretização do referido preceito constitucional, a Lei n.º 8.112/90, que estabelece o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, estabelece a reserva de até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso para as pessoas com deficiência, que serão direcionadas para o desempenho de atribuições compatíveis com a respectiva condição (art. 5º, § 2º)[10]. No âmbito do Estado de Minas Gerais, semelhante determinação está consignada no art. 1º do Decreto Estadual n.º 42.257/2002, que fixa o percentual mínimo de 10% (dez por cento) dos cargos e empregos públicos para as pessoas com deficiência, o qual deve incidir sobre o total de vagas oferecidas no concurso. Cite-se:

 

Decreto Estadual n.º 42.257/2002

Art. 1º O edital de concurso a ser realizado por órgão ou entidade da administração direta ou indireta deverá estabelecer o percentual de cargos ou empregos públicos reservado para provimento por pessoas portadoras de deficientes em cada categoria oferecida.

Parágrafo único - o percentual mínimo de cargos ou empregos reservado para pessoas portadoras de deficiência será de 10% (dez por cento) do total de vagas oferecidas no edital do concurso público. (Grifo nosso)

 

No tocante à reserva de vagas aos candidatos negros, o art. 1º Lei n.º 12.990/2014[11] apresenta idêntico direcionamento para a incidência da reserva de vagas (20%) sobre a totalidade das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.

Para estabelecer diretrizes de acessibilidade e inclusão de pessoas com deficiência nos órgãos do Poder Judiciário, como forma de consolidação das ações afirmativas, o CNJ estabeleceu, em suas Resoluções n.º 75/2009 (art. 73)[12] e n.º 203/2015 (art. 2º)[13], coerente orientação para a reserva de vagas destinadas, respectivamente, aos candidatos com deficiência e negros, cujo percentual deve observar o total de vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos nos órgãos do Poder Judiciário.

Denota-se que a diretriz normativa visa a efetiva aplicação das ações afirmativas voltadas para a concretização do princípio da igualdade material. Para tanto, relevante compreender que a concepção da política pública que ensejou a conformação da reserva de vaga para candidatos com deficiência e negros exige uma postura proativa do Estado, na intenção de diminuir as desigualdades e promover, de forma realmente eficaz, a esperada justiça social.

No exame de semelhante temática, o Supremo Tribunal Federal (STF) pontua a necessidade do desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a efetividade do princípio da igualdade. No julgamento da ADC n.º 41, o STF afirmou a constitucionalidade da reserva de vagas para negros em concursos públicos e estabeleceu o entendimento de que administração pública, nos três poderes, deve aplicar o que está estabelecido na Lei n.º 12.990/14. Referido julgamento consignou a seguinte tese:

 

TESE: É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa[14]. (Grifo nosso)

 

Semelhante orientação foi anteriormente estabelecida pela Suprema Corte no julgamento da ADPF n.º 186, cujo precedente consignou a importância das ações afirmativas de cunho universalista, voltadas para a real e efetiva concretização do princípio da igualdade material. Cite-se a ementa do respectivo julgado:

 

Ementa: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. I – Não contraria - ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares. II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade. III – Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa. IV – Medidas que buscam reverter, no âmbito universitário, o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico-raciais e sociais em nosso País, não podem ser examinadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros, devendo, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro. V - Metodologia de seleção diferenciada pode perfeitamente levar em consideração critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, de modo a assegurar que a comunidade acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado brasileiro, conforme dispõe o art. 1º, V, da Constituição. VI - Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes. VII – No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos. VIII – Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente.

(ADPF 186, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-205  DIVULG 17-10-2014  PUBLIC 20-10-2014 RTJ VOL-00230-01 PP-00009)

 

Como se observa, todo o conjunto normativo e jurisprudencial norteia a atuação da administração pública para a concretização das ações afirmativas de igualdade material, devendo a reserva de vagas nos concursos públicos incidir necessariamente sobre a totalidade dos cargos ofertados no respectivo edital, observados de acordo com as respectivas especialidades, inclusive para os cargos que vierem a vagar durante o prazo de validade do certame.

Todavia, no caso em análise, a técnica adotada pelo Tribunal requerido, com segregação das suas várias unidades para, individualmente, aplicar os percentuais para a reserva de vagas, não atende aos preceitos constitucionais e regulamentares direcionados para efetivação do princípio da igualdade, em evidente descompasso no cômputo dos padrões mínimos exigidos pela norma.

Conforme informações apresentadas nos autos, pelo critério adotado pelo Tribunal, por “cargo/especialidade/unidade”, os percentuais mínimos impostos normativamente para reserva de vagas destinadas aos candidatos negros e com deficiência não serão alcançados. A título de exemplo, consta no Quadro de Vagas pontuado no Anexo IV do regulamento do certame (Id 5132890) a oferta de 59 (cinquenta e nove) vagas para o cargo de Oficial de Justiça, sendo 1 (uma) para cada comarca.

Como se observa, do total de vagas ofertadas para o referido cargo/especialidade, não foi reservada nenhuma vaga para candidatos negros ou com deficiência:

 

 

Semelhante fato pode ser constatado na organização dos demais cargos disponibilizados no mesmo concurso público. Essa circunstância, sobremaneira, demonstra o evidente equívoco no critério adotado pelo Tribunal para o cômputo das vagas que devem ser reservadas aos candidatos negros ou com deficiência.

Na esteira dos precedentes do STF e do STJ, o desmembramento uniforme das vagas por localidade constitui critério equivocado e pode levar, como no caso em análise, ao integral desatendimento do preceito da igualdade, constituindo obstáculo para a adequada efetivação do direito fundamental em exame.

No exame de semelhante questionamento, o STF tem considerado que a reserva de vagas para concorrência específica (deficientes e negros) encarta verdadeiro requisito de validade do ato administrativo, devendo a Administração Pública convolar esforços para a adequada reserva de vagas à concorrência específica, com observação do total de vagas oferecidas no respectivo concurso, para cada cargo público definido em função da especialidade. Confira-se:

 

CONSTITUCIONAL. DIREITO ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. RESERVA DE VAGAS À ESPECÍFICA CONCORRÊNCIA. ESTRUTURAÇÃO DE FASE DO CONCURSO EM DUAS TURMAS DE FORMAÇÃO. LEI 8.112/1990, ART. 5º, § 2º. DECRETO 3.298/1999. ESPECIFICIDADES DA ESTRUTURA DO CONCURSO. IRRELEVÂNCIA PARA A ALTERAÇÃO DO NÚMERO TOTAL DE VAGAS OFERECIDAS. MODIFICAÇÃO DO NÚMERO DE VAGAS RESERVADAS. IMPOSSIBILIDADE. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. 1. Recurso ordinário em mandado de segurança interposto de acórdão do Superior Tribunal de Justiça que entendeu ser plausível o cálculo da quantidade de vagas destinadas à específica concorrência de acordo com o número de turmas do curso de formação. 2. Os limites máximo e mínimo de reserva de vagas para específica concorrência tomam por base de cálculo a quantidade total de vagas oferecidas aos candidatos, para cada cargo público, definido em função da especialidade. Especificidades da estrutura do concurso, que não versem sobre o total de vagas oferecidas para cada área de atuação, especialidade ou cargo público, não influem no cálculo da reserva. (...)

(STF - RMS nº 25.666/DF, 2ª turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 03/12/2009) (Grifo nosso)

 

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. PORTADOR DE NECESSIDADE ESPECIAL. VAGAS SUPERVENIENTES. RESERVA. CRITÉRIO. TOTALIDADE. RECURSO PROVIDO.

I – A Constituição Federal assegura que a lei reservará percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão (art. 37, inciso VIII).

II – A Lei nº 8.112/90, por seu turno, estabelece que para aquelas pessoas será reservado, em cada concurso, o máximo de 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas (artigo 5º, § 2º, segunda parte).

III – Na espécie, o edital do certame para o provimento de cargos de Analista Judiciário do e. TRF da 1ª Região, com observância do percentual mínimo previsto no Decreto nº 3.298/99 (art. 37, § 2º), fixou em 5 % (cinco por cento) a reserva para deficientes. Mais ainda, dispôs que esse limite deveria observar as vagas disponibilizadas por localidade, e não a totalidade das vagas oferecidas no concurso.

IV - Tal circunstância, conforme restou definida, obstaculiza a efetivação do comando constitucional e legal pertinentes, sendo que o desmembramento uniforme das vagas por localidade poderia levar - como de fato ocorrera no caso - a situações em que todos os deficientes inscritos no concurso fossem alijados do acesso aos cargos, a despeito da nomeação, em número suficiente para a materialização da reserva, dos demais candidatos.

Recurso ordinário provido.

(STJ - RMS30.841/GO, Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, DJ de 21/06/2010). (Grifo nosso)

 

Destaque-se, por derradeiro, que as suscitadas peculiaridades na organização do concurso, com direcionamento da concorrência por região de escolha dos candidatos, não afetam o número total de vagas disponíveis para cada nicho de concorrência individualizada (ampla concorrência e vagas reservadas) em razão da especialidade de cada cargo público ofertado no respectivo certame, não constituindo razão suficiente para obstar o princípio da igualdade material.

Assim, independentemente do modelo organizacional aplicado no regulamento do certame, compete à administração do Tribunal adotar os mecanismos necessários para o integral cumprimento do preceito constitucional.

Ante o exposto, com fulcro no art. 25, VII, do Regimento Interno do CNJ, afasto as preliminares suscitadas e julgo PROCEDENTE o pedido formulado na inicial do presente procedimento administrativo para determinar ao Tribunal de Justiça requerido que, dentre a totalidade das vagas oferecidas aos candidatos para cada cargo público, definido em função da especialidade, reserve 10% (dez por cento) para os candidatos com deficiência e 20 % (vinte por cento) para os candidatos negros, conforme percentuais previamente estabelecidos no próprio edital do concurso público em testilha (itens 2.2 e 2.3).

Em razão da amplitude do questionamento formulado, determino ao Tribunal requerido que cientifique todos os demais candidatos habilitados no certame (Edital n.º 01/2022) acerca dos efeitos da presente decisão.

É como voto.

Brasília/DF, data registrada no sistema.

 

Conselheiro João Paulo Schoucair

Relator 

 



[1] Nesse sentido: STF, 2ª T., MS n.º 36055 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 27/02/2019.

[2] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/sobre-o-cnj-3/. Consulta em 1/6/2023.

[3] STF. Súmula 473: “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”.

[4] Art. 7º (...) XXXI - proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência.

[5] Art. 24 (...) XIV - proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência.

[6] STF. RMS 27710 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 28/05/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-128  DIVULG 30-06-2015  PUBLIC 01-07-2015.

[7] STF. RE 227299, Relator(a): ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 14/06/2000, DJ 06-10-2000 PP-00098  EMENT VOL-02007-04 PP-00757.

[8] Art. 37 (...) I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei.

[9] VIII - a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão.

[10] Art. 5º (...) § 2º  Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso.

[11] Art. 1º Ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito d a administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União , na forma desta Lei.

[12] Art. 73. As pessoas com deficiência que declararem tal condição, no momento da inscrição preliminar, terão reservados, no mínimo, 5% (cinco por cento) do total das vagas, vedado o arredondamento superior. (Grifo nosso)

[13] Art. 2º Serão reservadas aos negros o percentual mínimo de 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos do Quadro de Pessoal dos órgãos do Poder Judiciário enumerados no art. 92, I-A, II, III, IV, V, VI e VII, da Constituição Federal e de ingresso na magistratura dos órgãos enumerados no art. 92, III, IV, VI e VII. (Grifo nosso)

[14] ADC 41, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 08/06/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-180  DIVULG 16-08-2017  PUBLIC 17-08-2017.