Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS - 0005089-38.2017.2.00.0000
Requerente: DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SANTA CATARINA
Requerido: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA - TJSC

 


 

PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SANTA CATARINA. APREENSÃO DE MENORES EM FLAGRANTE DE ATO INFRACIONAL. APLICAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA. INCOMPATIBILIDADE COM O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. INVOCAÇÃO DA RESOLUÇÃO CNJ N. 213/2015. INAPLICABILIDADE. PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE.

1. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990) estabelece rito sumário para a liberação imediata de adolescentes apreendidos em flagrante de ato infracional, pela Autoridade Policial ou pelo Ministério Público, sem a necessidade de homologação judicial (artigos 107, 108 e 173 a 186).

2. A audiência de custódia de que trata a Resolução CNJ n. 213/2015 não é compatível o sistema de apuração de ato infracional atribuído a adolescente.

3. A aplicação da Resolução CNJ n. 213/2015 aos adolescentes apreendidos em flagrante configura sobreposição de rito especial – dotado de finalidade protetiva – delineado pela Lei n. 8.069/1990.

4. Pedido improcedente.

 

Brasília, 30 de abril de 2018.


Conselheira DALDICE SANTANA

Relatora

 

 ACÓRDÃO

O Conselho, por unanimidade, julgou improcedente o pedido, nos termos do voto da Relatora. Ausente, justificadamente, a Conselheira Iracema do Vale. Ausente, em razão da vacância do cargo, o representante do Ministério Público da União. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 5 de junho de 2018. Presentes à sessão os Excelentíssimos Senhores Conselheiros Cármen Lúcia, João Otávio de Noronha, Aloysio Corrêa da Veiga, Daldice Santana, Valtércio de Oliveira, Márcio Schiefler Fontes, Fernando Mattos, Luciano Frota, Arnaldo Hossepian, Valdetário Andrade Monteiro, André Godinho, Maria Tereza Uille Gomes e Henrique Ávila.

Conselho Nacional de Justiça

Autos: PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS - 0005089-38.2017.2.00.0000
Requerente: DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SANTA CATARINA
Requerido: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA - TJSC


RELATÓRIO


Trata-se de Pedido de Providências (PP) formulado pela Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina (DPESC) em face do Tribunal de Justiça do mesmo Estado (TJSC), com vistas à “implementação da audiência de custódia em relação aos adolescentes apreendidos em flagrante”.

A requerente relata duas situações ocorridas em 2017 na Comarca de Criciúma/SC, nas quais houve apreensão de adolescentes em flagrante de ato infracional e eles somente foram apresentados à autoridade judiciária mais de 4 dias depois da apreensão.

Informa que, por ocasião da apreciação desses casos pelos magistrados competentes, estes sustentaram não haver previsão legal para a realização da audiência de custódia nas apreensões de adolescentes, pois o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei Federal n. 8.069/1990 – “não exige que o adolescente apreendido em flagrante na prática de ato infracional seja imediatamente [ou seja, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas] encaminhado à autoridade judiciária, mas sim à autoridade policial” (...). E, conforme visto anteriormente, a autoridade competente para o caso era o Delegado de Polícia, para quem os adolescentes foram devidamente encaminhados”.

Entende haver necessidade de instituição da audiência de custódia para as situações de flagrante envolvendo adolescentes apreendidos, com a apresentação destes ao juiz competente – e não somente à autoridade policial e ao Ministério Público – no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas, em observância aos princípios da proteção integral da criança e do adolescente e da proibição de tratamento mais gravoso ao adolescente do que o conferido a adulto, garantidos pelo ECA.

Sustenta, ainda, que “a própria Resolução 213 de 15 de dezembro de 2015 do Conselho Nacional de Justiça, ‘dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas’” (grifo no original).

Argumenta que a necessidade de realização de audiência de custódia em relação aos adolescentes decorre de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário (Convenção Americana de Direitos Humanos e Convenção Sobre os Direitos da Criança).

Afirma que a finalidade essencial da implementação da audiência de custódia no Brasil é adequar o processo penal brasileiro aos tratados internacionais de direitos humanos, a fim de evitar e identificar prisões ilegais, arbitrárias e desnecessárias.

Informa, ainda, estar em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 5.876/2013, cujo objeto é a alteração do ECA, nele constando previsão para instituição da audiência de custódia nos casos de apreensões em flagrante de menores infratores.

Destaca já ter sido instituída a realização dessas audiências, em relação aos menores apreendidos em flagrante, em algumas comarcas de quatros Estados brasileiros – Maranhão, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro.

Instado à manifestação, o TJSC encaminhou parecer elaborado pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização (GMF) daquele Tribunal (Id 2226733), no qual estão consignados, em resumo, os seguintes esclarecimentos:

(i) o Sistema Socioeducativo do Estado de Santa Catarina possui 4 (quatro) centros de atendimento socioeducativo, 15 (quinze) centros de atendimento socioeducativo provisório, 1 (um) centro de internação feminina e 1 (um) plantão de atendimento inicial. A capacidade atual de atendimento do Sistema é de 333 (trezentas e trinta e três) vagas – 121 (cento e vinte e uma) definitivas e 212 (duzentas e doze) provisórias –, e há extensas listas de espera para ingresso nas unidades, totalizando aproximadamente 540 (quinhentos e quarenta) adolescentes aguardando vaga para internação definitiva e 270 (duzentos e setenta), para internação provisória;

(ii) a Comissão Permanente da Infância e Juventude do Grupo Nacional de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça editou a Nota Técnica n. 2/2016, “contrária à proposta de extensão de audiência de custódia para adolescente autor de ato infracional por entender estar em desacordo com a Lei n. 8.069/1990”;

(iii) há Projeto de Lei em tramitação na Câmara dos Deputados para alterar o ECA e incluir a obrigatoriedade da realização de audiência de custódia para adolescentes apreendidos, sob a justificativa, em suma, de que, atualmente, o adolescente apreendido é ouvido apenas pelo representante do Ministério Público - que atua na qualidade de titular da ação penal –, sem a presença de Defensor e de autoridade judicial imparcial;

(iv) Em razão dos diversos “entendimentos acerca do cabimento da audiência de custódia no âmbito da justiça juvenil”, bem como das lacunas de infraestrutura e de organização do Sistema Socioeducativo do Estado de Santa Catarina, antes da adoção de qualquer medida é prudente e necessária a realização de discussões interinstitucionais, de abrangência nacional, “sobre a pertinência da implementação do procedimento”.

Após a manifestação do TJSC, os autos foram remetidos ao Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para elaboração de parecer, o qual encontra-se anexado a estes autos no Id 2389655.

Nos limites de sua competência, O DMF conclui, em síntese, que “aplicar a Resolução CNJ 213/2015 aos adolescentes apreendidos em flagrante seria sobrepor rito especial – dotado de finalidade protetiva – delineado por lei federal, de modo a interferir em competência do Ministério Público para o primeiro contato com o apreendido” e, a final, “opina pela não aplicabilidade do regramento afeto à audiência de custódia aos adolescentes apreendidos em flagrante”.

É o relatório.

 

Conselheira DALDICE SANTANA

Relatora

 

 


 

Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS - 0005089-38.2017.2.00.0000
Requerente: DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SANTA CATARINA
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VOTO

 

A parte autora recorre ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para obter pronunciamento favorável quanto à obrigatoriedade da realização da audiência de custódia pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina nos casos de apreensão em fragrante de adolescentes infratores.

Antes da análise do pleito formulado neste PCA, cabem algumas considerações a respeito da audiência de custódia.

O marco da implantação da audiência de custódia no Brasil é a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) proferida em 9 de setembro de 2015, no julgamento da medida cautelar formulada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 347, que tratava sobre providências para solução da crise no sistema prisional brasileiro. Na ocasião, o STF acolheu parcialmente o pedido para determinar aos juízes e tribunais a realização de audiência de custódia, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, para viabilizar o comparecimento do preso em flagrante, perante a autoridade judiciária, no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas, contadas do momento da prisão.

Posteriormente, o CNJ editou a Resolução n. 213/2015, para “determinar que toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão” (art. 1º).

A implantação desse procedimento teve como finalidade essencial assegurar o respeito aos direitos fundamentais do indivíduo preso em flagrante, mediante a garantia da presença física da pessoa presa perante o juiz, bem como o direito ao exercício pleno e efetivo do contraditório antes da deliberação acerca da conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva.

Dessa forma, prisões desnecessárias são evitadas, minimizando-se a superlotação carcerária e os gastos decorrentes da manutenção indevida de presos provisórios.

Além disso, as audiências de custódia permitem a apuração de eventual ocorrência de maus-tratos, prática de tortura e de outros tipos de abusos por parte de agentes do Estado no ato de execução da prisão.

Outro aspecto importante considerado na instituição da audiência de custódia foi o demasiado lapso temporal comumente transcorrido entre a data da prisão em flagrante de uma pessoa e a data de seu interrogatório perante o juiz, situação que se agravou após a alteração do Código de Processo Penal ocorrida em 2008 (Lei n. 11.719/2008), pois o interrogatório passou a ser o último ato da instrução processual penal.

Vê-se, portanto, que a audiência de custódia foi implantada tendo em conta, entre outros, os seguintes fatores: superlotação e crise no sistema penitenciário do Brasil, com cerca de 50% de sua capacidade ocupada por presos provisórios; demora demasiada entre a data da prisão em flagrante e a data da primeira apresentação do preso à autoridade judiciária; ocorrência de maus-tratos, torturas e outros abusos na execução da prisão, não conhecidos nem apurados pelas autoridades competentes; constantes violações aos direitos de presos encarcerados sem necessidade; imprescindibilidade de mudança da chamada “cultura do encarceramento”, com a instituição de maior rigor à entrada no sistema prisional e disseminação da ideia de aplicação de medidas cautelares diversas da prisão – ou, em outras palavras, tornar regra a aplicação de medidas cautelares alternativas e transformar a prisão em exceção.

Dessa forma, a instituição da audiência de custódia no processo penal fundamenta-se em premissas que não incidem no sistema socioeducativo de menores infratores, razão pela qual estender sua aplicação para adolescentes apreendidos em flagrante de ato infracional não se mostra, pelo menos em tese, adequada.

Sobre a situação do menor apreendido, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê procedimento específico hábil a permitir a liberação dele de forma bem mais flexível – comparado ao da prisão em flagrante do processo penal – e pela própria autoridade policial. Além disso, em caso de não liberação, o ECA determina a apresentação do menor apreendido ao representante do Ministério Público no mesmo dia da prisão ou, no máximo, no primeiro dia útil seguinte, o qual também poderá colocar o menor em liberdade.

A propósito, confiram-se os seguintes dispositivos da Lei n. 8.069/1990 (g. n.):

 

“Art. 107. A apreensão de qualquer adolescente e o local onde se encontra recolhido serão incontinenti comunicados à autoridade judiciária competente e à família do apreendido ou à pessoa por ele indicada.

Parágrafo único. Examinar-se-á, desde logo e sob pena de responsabilidade, a possibilidade de liberação imediata.

Art. 108. A internação, antes da sentença, pode ser determinada pelo prazo máximo de quarenta e cinco dias.

Parágrafo único. A decisão deverá ser fundamentada e basear-se em indícios suficientes de autoria e materialidade, demonstrada a necessidade imperiosa da medida.

[...]

Art. 174. Comparecendo qualquer dos pais ou responsável, o adolescente será prontamente liberado pela autoridade policial, sob termo de compromisso e responsabilidade de sua apresentação ao representante do Ministério Público, no mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato, exceto quando, pela gravidade do ato infracional e sua repercussão social, deva o adolescente permanecer sob internação para garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem pública.

Art. 175. Em caso de não liberação, a autoridade policial encaminhará, desde logo, o adolescente ao representante do Ministério Público, juntamente com cópia do auto de apreensão ou boletim de ocorrência.

§ 1º Sendo impossível a apresentação imediata, a autoridade policial encaminhará o adolescente à entidade de atendimento, que fará a apresentação ao representante do Ministério Público no prazo de vinte e quatro horas.

§ 2º Nas localidades onde não houver entidade de atendimento, a apresentação far-se-á pela autoridade policial. À falta de repartição policial especializada, o adolescente aguardará a apresentação em dependência separada da destinada a maiores, não podendo, em qualquer hipótese, exceder o prazo referido no parágrafo anterior.

[...]

Art. 179. Apresentado o adolescente, o representante do Ministério Público, no mesmo dia e à vista do auto de apreensão, boletim de ocorrência ou relatório policial, devidamente autuados pelo cartório judicial e com informação sobre os antecedentes do adolescente, procederá imediata e informalmente à sua oitiva e, em sendo possível, de seus pais ou responsável, vítima e testemunhas.

Parágrafo único. Em caso de não apresentação, o representante do Ministério Público notificará os pais ou responsável para apresentação do adolescente, podendo requisitar o concurso das polícias civil e militar.

Art. 180. Adotadas as providências a que alude o artigo anterior, o representante do Ministério Público poderá:

I - promover o arquivamento dos autos;

II - conceder a remissão;

III - representar à autoridade judiciária para aplicação de medida sócio-educativa.

[...]

Art. 183. O prazo máximo e improrrogável para a conclusão do procedimento, estando o adolescente internado provisoriamente, será de quarenta e cinco dias.

Art. 184. Oferecida a representação, a autoridade judiciária designará audiência de apresentação do adolescente, decidindo, desde logo, sobre a decretação ou manutenção da internação, observado o disposto no art. 108 e parágrafo.

[...]

Art. 186. Comparecendo o adolescente, seus pais ou responsável, a autoridade judiciária procederá à oitiva dos mesmos, podendo solicitar opinião de profissional qualificado.

§ 1º Se a autoridade judiciária entender adequada a remissão, ouvirá o representante do Ministério Público, proferindo decisão.

§ 2º Sendo o fato grave, passível de aplicação de medida de internação ou colocação em regime de semi-liberdade, a autoridade judiciária, verificando que o adolescente não possui advogado constituído, nomeará defensor, designando, desde logo, audiência em continuação, podendo determinar a realização de diligências e estudo do caso.

§ 3º O advogado constituído ou o defensor nomeado, no prazo de três dias contado da audiência de apresentação, oferecerá defesa prévia e rol de testemunhas.

§ 4º Na audiência em continuação, ouvidas as testemunhas arroladas na representação e na defesa prévia, cumpridas as diligências e juntado o relatório da equipe interprofissional, será dada a palavra ao representante do Ministério Público e ao defensor, sucessivamente, pelo tempo de vinte minutos para cada um, prorrogável por mais dez, a critério da autoridade judiciária, que em seguida proferirá decisão.”

 

Desses dispositivos, depreende-se a ação da regra da liberação imediata do adolescente apreendido em flagrante, estabelecida no artigo 107, parágrafo único.

Já a primeira parte do artigo 174 prevê a liberação do adolescente pela própria autoridade policial, independentemente do recolhimento de fiança (não previsto no sistema de apuração de atos infracionais), nos casos de reduzida gravidade do ato praticado.

Na hipótese de não liberação do adolescente pela autoridade policial, caberá ao Ministério Público (artigo 175), na qualidade de titular da representação por ato infracional, avaliar a existência ou não de necessidade imperiosa da manutenção da apreensão do menor, permitida a liberação do adolescente, mesmo em se tratando de atos infracionais de natureza grave, se não houver elementos que reclamem a internação provisória. Essa possibilidade de liberação do adolescente pelo Ministério Público prescinde de homologação judicial e da expedição de alvará de soltura.

Nessa esteira, infere-se a existência de procedimento mais benéfico para o adolescente, em comparação com o adotado pelo sistema da Lei Penal, consubstanciado no rito sumário para sua liberação imediata pela própria autoridade policial responsável pela prisão ou pelo Promotor de Justiça.

É importante observar que, com a obrigatoriedade de apresentação do menor ao representante do Ministério Público em até 24 (vinte e quatro) horas, contadas de sua apreensão (art. 175, § 1º), eventual ocorrência de maus-tratos e outros abusos por parte da autoridade policial na execução da apreensão poderão ser facilmente constatados e apurados pelo órgão responsável pelo controle da atividade policial.

Além do mais, a Constituição Federal estabelece que qualquer medida privativa de liberdade aplicada a adolescentes deve observar os princípios da “brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento” (art. 227, § 3º, V). Nessa perspectiva, a possibilidade de manutenção da prisão de menor apreendido por tempo além do necessário é consideravelmente diminuída, pois o ECA, na esteira dessa diretriz constitucional, estabelece o prazo máximo e improrrogável de 45 (quarenta e cinco) dias para a execução do procedimento de apuração de ato infracional, em caso de adolescente internado provisoriamente (Lei n. 8.069/90, art. 183).

Dessa forma, o sistema de apuração de ato infracional previsto no ECA é mais benéfico ao menor apreendido em flagrante do que o sistema de persecução penal em relação aos presos em flagrante de delitos penais, a revelar que a audiência de custódia não alcança a mesma efetividade em se tratando de adolescentes infratores.

Sobre esse assunto, é oportuna a citação de parte da Nota Técnica n. 2/2016 elaborada pela Comissão Permanente da Infância e Juventude (COPEIJ) do Grupo Nacional de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça (Id 2226733, p 5-6, g. n.):

 

“1. [...] além de não guardar consonância com o ordenamento jurídico em vigor, a extensão da prática da ‘audiência de custódia’ para os casos que envolvam adolescentes apreendidos em flagrante torna ainda mais gravoso para estes o tratamento já previsto na Lei Federal n. 8.069/1990.

[...]

5. Admitir a extensão das ‘audiências de custódia’ para adolescentes apreendidos em razão da prática de atos infracionais é fazer uma interpretação equivocada da Convenção Americana de Direitos Humanos e da Resolução nº 213/2015, do Conselho Nacional de Justiça - CNJ. O artigo 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos determina que ‘Toda pessoa presa, detida, ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais...’. Assim, o Estatuto da Criança e do Adolescente está em perfeita consonância com o citado artigo da Convenção Americana de Direitos Humanos (também denominada de Pacto de São José da Costa Rica) pois estabeleceu em seus artigos 107, e 173 a 181, um rito sumário para a liberação, pela Autoridade Policial, ou pelo próprio Promotor de Justiça, de adolescentes que praticam atos infracionais de menor gravidade, ou seja, o adolescente é conduzido para referidas autoridades imediatamente após sua apreensão e, posteriormente, sem demora, ao Magistrado, na forma dos artigos 184 e 186 do ECA.

[...]

8. Ademais, na forma da lei, a ‘liberação imediata’ do adolescente apreendido em razão da prática de ato infracional é a regra, e tal decisão poderá ser tomada - desde logo - tanto pela Autoridade Policial quanto pelo Ministério Público, independentemente de ‘autorização’ ou ‘ordem judicial’, valendo neste sentido observar o disposto nos itens 10.2, 11.1 e 11.2, das ‘Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude - Regras de Beijing’1, assim como o contido no art. 107, Parágrafo Único, da Lei Federal nº 8.069/1990;

[...]

17. É preciso ter extrema cautela para evitar que, a pretexto da ‘célere’ condução do adolescente apreendido à presença do Juiz, se inverta a regra legal que preconiza sua ‘liberação imediata’ (que pode ser efetuada tanto pela Autoridade Policial quanto pelo Ministério Público) e/ou deixem de ser colhidos os elementos necessários a avaliar o cabimento da remissão ministerial ou, se for o caso, a demonstrar a ‘necessidade imperiosa’ do decreto da internação provisória do adolescente.

Diante do exposto, a COPEIJ se posiciona contrariamente a qualquer proposta de normatização, seja pelo Conselho Nacional de Justiça seja pelos Tribunais de Justiça, das chamadas ‘audiências de custódia de adolescentes’, por considerá-la ilegal frente à Lei Federal nº 8.069 de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA)”.

 

A incompatibilidade da audiência de custódia para adolescentes infratores também foi registrada no parecer elaborado pelo Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do CNJ, o qual, após amplas considerações, “opina pela não aplicabilidade do regramento afeto à audiência de custódia aos adolescentes apreendidos em flagrante” (Id 2389655).

Diante da relevância da manifestação daquele órgão, convém transcrever suas razões, em inteiro teor:

 

“Trata-se de procedimento que objetiva providências por parte do Conselho Nacional de Justiça quanto à implementação da audiência de custódia em relação aos adolescentes apreendidos em flagrante.

Para uma melhor compreensão do assunto, torna-se oportuno um breve histórico.

O Supremo nas ações ADPF 347/DF e ADI 5.240/SP assentou a legitimidade da audiência de custódia com fundamento no Pacto dos Direitos Civis e Políticos e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, porquanto os tratados internacionais que versam sobre direitos humanos ostentam status jurídico supralegal no ordenamento jurídico.

Indicou, à vista da aplicabilidade imediata das referidas normas convencionadas internacionalmente, a adoção da audiência de apresentação por todos os tribunais do país.

Aspectos como o contingente desproporcional de pessoas presas provisoriamente, a inobservância de medidas cautelares diversas do encarceramento e a necessidade de assegurar a integridade física e psicológica das pessoas submetidas à cautela estatal foram considerados na análise acerca da implementação da audiência de custódia.

Nesse cenário, o Conselho Nacional de Justiça, após ter firmado convênios com diversos estados para implementação da audiência de custódia e reunidos os aspectos positivos de cada normativo elaborado, editou a Resolução CNJ 213/2015 regulamentando a apresentação da pessoa presa, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente. Determina, portanto, o artigo 1º:

Determinar que toda a pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão’.

Certo que o referido dispositivo traz o termo apreensão, contudo, não se verifica ao longo do ato normativo e de seus protocolos, menção aos adolescentes apreendidos em flagrante e ao tratamento diverso exigido pelo texto constitucional – consubstanciado no postulado da proteção integral das crianças e adolescentes –, a indicar que a Resolução CNJ 213/2015 não abrange a apresentação dos adolescentes infratores, a qual possui regramento específico na Lei 8.069/1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

Da Audiência de Custódia

 

A audiência de custódia, também reconhecida como audiência de apresentação, é o procedimento consecutivo à prisão em flagrante delito, por meio do qual se possibilita o contato entre a pessoa presa e o juiz, diante de um representante do Ministério Público, de um advogado ou então um defensor público.

A providência, já em prática no país, dada política judiciária encampada neste Conselho Nacional de Justiça, é consentânea ao princípio de que o Poder Judiciário deve ocupar-se de um controle mais exigente da legalidade da constrição processual, alcançando com mais detalhes o conhecimento da pessoa presa submetida à persecução penal e sua respectiva versão sobre os motivos que a levaram àquela condição.

Não se pode abstrair que a audiência de custódia é um importante instrumento de prevenção e combate à tortura, garantindo a efetividade da dicção constitucional, no sentido de que a prisão ilegal deve ser, imediatamente, relaxada e de que ninguém seja levado à prisão ou fique nela mantido se a lei admitir a liberdade, notadamente, mediante alternativas à medida excepcional (art. 5º, LXV e LXVI, da Constituição Federal).

Outrossim, mesmo com o advento da Lei nº 12.403/2011, que ofereceu novos paradigmas para o sistema punitivo, a prisão não perdeu a condição de medida protagonista para os atores do sistema de justiça.

Com efeito, ampliar a prática da audiência de custódia, criar condições para sua ocorrência em todas as comarcas, dentro do prazo de 24 horas, com todos os presos em flagrante é, sobretudo, construir impacto direto no contingente de preso provisórios.

Ora, com a disseminação das audiências de custódia abre-se a possibilidade de calibrar melhor a necessidade da conversação das prisões em flagrante em provisórias; inaugura-se novo paradigma de condução do encarceramento pré-condenação.

Conforme a Resolução CNJ 213/2015, após a oitiva da pessoa presa em flagrante, o juiz deferirá ao Ministério Público e à defesa técnica, reperguntas compatíveis com a natureza do ato, afastados questionamentos acerca do mérito dos fatos que possam constituir eventual imputação permitindo-lhes, em seguida, requerer: o relaxamento do flagrante; a concessão da liberdade provisória sem ou com aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, previstas no artigo 319 do CPP; a decretação de prisão preventiva; a adoção de outras medidas necessárias à preservação de direitos da pessoa presa (art. 8º, §1º da Res CNJ 213).

Vê-se que o regramento afeto à audiência de custódia fia-se no rito do Código de Processo Penal; não se refere às etapas, termos e especificidades advindos do Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

Do regramento específico quanto à criança e ao adolescente

 

A Constituição de 88 estabeleceu no ordenamento jurídico pátrio o postulado da proteção integral da criança e do adolescente, assim o artigo 227 traz o entendimento da absoluta prioridade. De modo a consolidar tais diretrizes, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente, diploma legal que deixa clara essa diretriz já no art. 3º, conforme reproduzido abaixo:

‘Art. 3º - A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidade, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade’ (Grifo nosso)

Com efeito, as medidas adotadas em relação à prática do ato infracional devem ter potencial de coercibilidade, contudo, suas finalidades ultrapassam a prevenção especial e geral da sociedade quanto aos ilícitos cometidos, porquanto alcançam o ser humano em desenvolvimento. Trata-se de processo socioeducativo, que busca identificar a situação que levou o adolescente à prática do ato infracional.

É dizer: pela sistemática do ECA, não vigora o princípio da obrigatoriedade quanto à imposição de medida socioeducativa. A medida eventualmente imposta é apenas um dos mecanismos para o cumprimento do dever de proporcionar a proteção integral.

A propósito, o artigo 35 da Lei 12.594/2012 (Sinase) ao delinear os princípios que regem a execução de medidas socioeducativas elenca:

‘II – a excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meios de autocomposição de conflitos;

(...)

III – prioridade a práticas e medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas;

(...)

VII – mínima intervenção, restrita ao necessário para a realização dos objetivos da medida;

(...)

IX – fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo’.

Em razão do citado princípio, o procedimento referente a apreensão em flagrante do adolescente observa rito específico, orientado por seu caráter socioeducativo com o envolvimento dos pais ou responsáveis e o Ministério Público.

O adolescente apreendido em flagrante de ato infracional, deverá, conforme o artigo 172 do ECA ser conduzido diretamente à autoridade policial para a tomada das providências indicadas nos artigos 106, 107, 173 e 174 também do Estatuto.

O artigo 107 do ECA dispõe que a apreensão de qualquer adolescente e o local onde se encontra recolhido serão incontinenti comunicados à autoridade judiciária competente e à família do apreendido ou à pessoa por ele indicada, não apenas isso, determina o pronto exame, sob pena de responsabilidade, da possibilidade de liberação imediata.

Nesse sentido, comparecendo qualquer dos pais ou responsável pelo adolescente apreendido em flagrante, esse será prontamente liberado pela autoridade policial sob termo de compromisso e responsabilidade de sua apresentação ao Ministério Público no mesmo dia ou, sendo impossível, bi primeiro dia útil imediato, exceto quando, pela gravidade do ato infracional e sua repercussão social, deva o adolescente permanecer sob internação para garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem pública (art. 174).

Em caso de não liberação, a autoridade policial encaminhará, desde logo, o adolescente ao representante do Ministério Público, juntamente com cópia do auto de apreensão ou boletim de ocorrência. Impossível a apresentação imediata, a autoridade policial encaminhará o adolescente à entidade de atendimento, que fará a apresentação ao órgão ministerial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas (Art. 175, §1º).

Frisa-se que a regra é a apresentação imediata do adolescente apreendido em flagrante ao Ministério Público, não sendo possível, abre-se o prazo de 24 (vinte e quatro) horas.

No que concerne ao flagrante de ato infracional:

‘As hipóteses de flagrante de ato infracional equivalem àquelas previstas para os crimes e, como se aplica subsidiariamente o Código de Processo Penal, tem-se que haverá apreensão em flagrante nos casos indicados em seu art. 302.

Uma vez apreendido em flagrante (e não preso em flagrante), o adolescente deverá ser imediatamente conduzido à autoridade policial.

Esta, por sua vez, ou liberará o adolescente aos seus pais ou responsável, ou o encaminhará ao Ministério Público (na impossibilidade de imediata liberação), conforme prevê o art. 174 do Estatuto.

É certo que a regra é no sentido de que o adolescente deverá responder ao procedimento em liberdade, como, aliás, encontra-se destacado na Regra 13, das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça e da Infância e da Juventude (Regras de Beijing) (...) [1] (Grifo nosso).

Quanto a análise da possibilidade de liberação do adolescente na hipótese de apreensão decorrente do flagrante:

’A análise do parágrafo único do art. 107 exige que seja feita a diferenciação da apreensão em razão de flagrante ou de ordem judicial.

Com efeito, será a própria autoridade policial que fará juízo, pautada no art. 174 do Estatuto, sobre a possibilidade de imediata liberação do adolescente aos seus pais ou responsável.

De acordo com esse dispositivo, a liberação do adolescente aos seus pais ou responsável constitui regra e, neste caso, será desnecessária a comunicação imediata ao magistrado. Em contrapartida, deverá ser encaminhada, imediatamente, ao Ministério Público, cópia dos autos de apreensão ou do boletim de ocorrência (art. 176), para que este adote as providências que entender pertinentes.

Porém, ante a gravidade do ato infracional e de sua repercussão social, bem como para garantia da segurança pessoal do adolescente ou manutenção da ordem pública, poderá a autoridade policial não liberar o adolescente aos seus pais ou responsável e encaminhá-lo diretamente ao Ministério Público, com remessa do expediente à autoridade judiciária.

Se a apreensão decorrer de ordem judicial, contudo, não competirá à autoridade policial examinar a possibilidade de imediata liberação, cabendo tal juízo exclusivamente ao magistrado.

Em razão disso, deverá a autoridade policial não só comunicar ao juiz a apreensão, como também (Grifos nossos) encaminhar-lhe o adolescente (art. 171)’ [2]

Observe-se que o ECA determina a apresentação do adolescente apreendido em flagrante ao Ministério Público (ainda que liberado sob a responsabilidade dos pais). Aliás é direito do adolescente privado de liberdade entrevistar-se pessoalmente com o representante do órgão ministerial (art. 124-I).

Tem-se, portanto, o seguinte fluxograma do procedimento referente ao adolescente apreendido em flagrante (fase pré-processual): [3]

·        Apreensão em flagrante, condução à autoridade policial, que irá, de modo incontinenti, dar ciência ao juiz e comunicar a família ou pessoa indicada como responsável. Sendo possível a liberação do adolescente, conforme o artigo 174 do ECA, os pais ou responsáveis se comprometem a apresentá-lo ao representante do Ministério Público no mesmo dia ou no primeiro dia útil imediato;

·        Diante da impossibilidade de liberação do adolescente aos pais ou responsável, a autoridade policial o encaminhará a entidade de atendimento, que fará a apresentação ao representante do Ministério Público no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, nos exatos termos do artigo 175, §1º do ECA.

Apresentado o adolescente, o representante do Ministério Público procederá imediata e informalmente à sua oitiva e, em sendo possível, de seus pais ou responsável, conforme o artigo 179 do ECA. No que concerne a oitiva informal promovida pelo Ministério Público:

‘A oitiva informal, determinada pelo art. 179, consiste em oportunidade em que o promotor de justiça ouvirá o adolescente e, sendo possível, seus pais ou responsável, bem como vítimas e testemunhas.

Trata-se de importante oportunidade em que o Ministério Público poderá colher elementos que embasarão a tomada de uma das providências indicadas no art. 180 do Estatuto.

(...)

(...) a oitiva informal é ato do Ministério Público, existente para subsidiar-lhe na tomada da decisão sobre o passo seguinte’ (Grifo nosso). [4]

O rito posto coaduna-se com o disposto nas Regras de Beijing acerca do primeiro contato com o adolescente apreendido:

‘10. Primeiro contato

10.1. Sempre que um jovem for apreendido, a apreensão será notificada imediatamente a seus pais ou tutor e, quando não for possível tal notificação imediata, será notificada aos pais ou tutor no mais breve prazo possível.

10.2. O juiz, funcionário ou organismos competentes examinarão sem demora a possibilidade de pôr o jovem em liberdade.

10.3. Os contatos entre os órgãos encarregados de fazer cumprir a lei e o jovem infrator serão estabelecidos de modo a que seja respeitada a sua condição jurídica, promova-se o seu bem-estar e evite-se que sofra dano, resguardando-se devidamente as circunstâncias do caso’ (Grifos nossos).

Com efeito, acaso fosse replicada aos adolescentes apreendidos em flagrante o regramento da audiência de custódia retirar-se-ia dos pais ou responsáveis a possibilidade de guarda e apresentação ao órgão ministerial; o apreendido teria que aguardar sob custódia do estado a apresentação a autoridade judiciária.

Além disso, restaria invertida a ordem estabelecida pelo ECA, à vista da proteção integral, que determina a análise primeira por parte do Ministério Público, o qual, conforme o art. 180, poderá promover o arquivamento dos autos; conceder a remissão; representar à autoridade judiciária para aplicação de medida socioeducativa.

A remissão é medida fundamentada na necessidade de evitar-se a judicialização de casos menos graves; consoante a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, é possível a aplicação na fase pré-processual, aos casos em que o ato infracional é cometido sem violência ou grave ameaça, mas desde que haja indícios de autoria e materialidade. Eis o teor do artigo 126 do ECA: [5]

Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional.

Parágrafo único. Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo’ (Grifo nosso).

A remissão é aplicada única e exclusivamente aos adolescentes cujo perfil social e a natureza do ato infracional recomendem, de plano, seja descartado o processo socioeducativo, seja pela sua desnecessidade, seja pela proficuidade do aconselhamento do adolescente com o membro ministerial.[6] Conforme o artigo 127 do ECA a medida ‘não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes, podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semiliberdade e a internação’.

Tem-se que o acordo de remissão é atribuição do Promotor de Justiça, a depender da homologação judicial para sua validade. Na hipótese de discordância da autoridade judiciária os autos são encaminhados ao Procurador Geral de Justiça (art. 181, §2º do ECA).

Profícuo citar trecho do voto do Ministro Rogério Schietti no RESP 1.392-888, de modo ilustrar a [7] competência do órgão ministerial no que concerne à remissão que poderá ser concedida aos adolescentes apreendidos:

A remissão pré-processual é, portanto, atribuição legítima do Ministério Público, como titular da representação por ato infracional e diverge daquela previsto no art. 126, parágrafo único, do ECA, dispositivo legal que prevê a concessão da remissão pelo juiz, depois de iniciado o procedimento, como forma de suspensão ou de extinção do processo.

No caso sob análise, a remissão pré-processual foi cumulada com medida socioeducativa de prestação de serviços à comunidade, por dois meses, durante 4 horas semanais, no Centro Integrado de Proteção à Criança e Adolescentes. A proposta, oferecida pelo Ministério Público, foi aceita pelo adolescente e por sua genitora, os quais assinaram o termo do acordo e solicitaram, juntamente com o Parquet, a homologação judicial, sem reconhecer eventual responsabilidade por ato infracional e sem que a medida importasse na caracterização de antecedentes.

O juiz não era parte do acordo e não poderia oferecer ou alterar a remissão, como forma de exclusão do processo, pois a titularidade da representação por ato infracional pertence, com exclusividade, ao Ministério Público, a quem é facultado formular o perdão administrativo, por razões de conveniência e política de proteção às crianças e aos adolescentes.

(...)

A medida aplicada por força da remissão pode ser revista, a qualquer tempo, mediante pedido do adolescente, do seu representante legal ou do Ministério Público, mas, discordando o juiz dos termos da remissão submetida meramente à homologação, não pode modificar suas condições para decotar condição proposta sem seguir o rito do art. 181, §2º, do ECA’ (Grifos nossos).

De fato, o prazo de 24h da audiência de custódia revela-se incompatível com o regramento específico do ECA, porquanto este determina, como regra, a sequência imediata dos atos e a apresentação imediata do adolescente apreendido ao Ministério Público.

Ressalta-se que os artigos 127 a 129 da Constituição Federal – que delineiam o perfil constitucional do órgão ministerial – e os artigos 200 a 205 do ECA atribuíram ao Ministério Público encargo especial na defesa dos direitos das crianças e adolescentes.

Com relação a atuação do Ministério Público:

‘A atuação do Ministério Público para garantia do Direito da Criança e do Adolescente é extremamente ampla, devendo suas manifestações processuais serem sempre fundamentadas. Além dos casos em que atua como parte, o Ministério Público sempre atuará, consoante do disposto no artigo 202, em procedimentos que digam respeito aos interesses e direitos previstos no ECA, como custus legis, fiscal da lei. Sua ausência gera nulidade absoluta, podendo ser alegada por qualquer interessado e até mesmo declarada de ofício pelo juiz.

(...)

O Ministério Público promove e acompanha todas as ações e procedimentos da Infância e da Juventude, conforme artigo 201, III e VIII, da Lei 8.069/1990, zelando pela ordem jurídica, pelos interesses das crianças e adolescentes e afastando a necessidade de intervenção de qualquer outro órgão ou pessoa para suprir a referida atividade.

Estabelece ainda o inciso I que o Ministério Público poderá conceder remissão como forma de exclusão do processo. Trata-se de remissão distinta da concedida pelo juiz da Infância e Juventude. (...) o juiz poderá conceder a remissão como forma de suspensão ou extinção do processo. Já o Ministério Público poderá conceder remissão antes de iniciada a ação socioeducativa (...). Por isso, a remissão concedida pelo Ministério Público é forma de exclusão do processo [8] (Grifos nossos).’

De modo a corroborar a lógica delineada, revela-se oportuno citar a jurisprudência quanto a vocação constitucional do órgão ministerial para defesa dos interesses das crianças e adolescentes:

‘8. Começo pelo juízo de a Lei Republicana tem o Ministério Público em elevadíssima conta. Dele cuida, em sessão autônoma, no capítulo reservado às funções ‘essenciais à Justiça’ (Seção I do Capítulo IV), erigindo-o a uma instituição ‘permanente’. Instituição que tem por estratégica incumbência a defesa da Ordem Jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais, contanto que estes últimos sejam do tipo indisponível (art. 127 da CF).

9. Ao seu turno, o inciso IX do art. 129 da Carta Magna autoriza o Ministério Público a exercer outras ‘funções institucionais’ que não as antecipadamente listadas nos incisos de I a VIII desse mesmo art. 129, desde que tais incumbências se mostrem compatíveis com a ‘finalidade’ do órgão, ‘sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas’.

10. No fluxo dessa compreensão das coisas, infere-se que o rol de competências do Parquet não constitui numerus clausus ou enumeração taxativa, dele podendo constar funções compatíveis com as suas finalidades institucionais: a defesa da Ordem Jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

11. Muito bem. Entre os direitos constitucionais sob a vigilância tutelar do Ministério Público, sobreleva a defesa da criança e do adolescente conforme ressai desses dois dispositivos da nossa Constituição Federal, in verbis:

‘Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão’

(Sem destaques no original.)

‘Art. 129.

São funções institucionais do Ministério Público:

[...]

II - zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;

[...]. (Grifo nosso)”[9].

Feitas tais considerações, é possível concluir que aplicar o regramento da Resolução CNJ 213/2015 aos adolescentes apreendidos em flagrante seria sobrepor rito especial – dotado de finalidade protetiva – delineado por lei federal, de modo a interferir em competência do Ministério Público para o primeiro contato com o apreendido.

III – CONCLUSÃO

Considerado o regramento específico do Estado da Criança e Adolescente, este Departamento, no uso de suas atribuições contempladas pela Lei nº 12.106/2009, opina pela não aplicabilidade do regramento afeto à audiência de custódia aos adolescentes apreendidos em flagrante.

É o parecer.

Brasília, 11 de abril de 2018.

Maria de Fátima Alves da Silva

Juíza-Auxiliar da Presidência do CNJ

Coordenadora do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas – DMF”

 

Dessa forma, considerando-se que as razões que justificaram a implantação da audiência de custódia na justiça criminal não se aplicam, da mesma forma, à justiça da infância e juventude, bem como que o Estatuto da Criança e do Adolescente estipula procedimento específico para apreensão de menor em flagrante de ato infracional, conclui-se, com fundamento no parecer elaborado pelo DMF, pela inaplicabilidade da audiência de custódia aos adolescentes apreendidos em flagrante.

Diante do exposto, julgo improcedente o pedido.

É como voto.

 

Brasília, 30 de abril de 2018.

 

Conselheira DALDICE SANTANA 

Relatora 

 

          

 

 

Brasília, 2018-06-08.