Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS - 0006185-83.2020.2.00.0000
Requerente: CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA
Requerido: LUCIANO AMERICO GALVAO FILHO

 


EMENTA

 

 

 

PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. RESOLUÇÃO N. 135/CNJ. PAD. JUIZ DE DIREITO. VIOLAÇÃO DOS DEVERES DE CAUTELA E DE PRUDÊNCIA. DETERMINAÇÃO DE BLOQUEIO DE ATIVOS FINANCEIROS, HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO E EXPEDIÇÃO DE ALVARÁS SEM AS CAUTELAS BÁSICAS E MÍNIMAS. OMISSÃO QUANTO À NOTÍCIA DE FRAUDE. PENA DE ADVERTÊNCIA. FALTA DE ADEQUAÇÃO E PROPORCIONALIDADE DA PENALIDADE APLICADA. INSTAURAÇÃO, DE OFÍCIO, DE REVISÃO DISCIPLINAR.  

1. Pedido de providências instaurado para dar cumprimento ao disposto na Resolução CNJ n. 135/2011 em virtude de comunicação do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas – TJAL referente à abertura de PAD em desfavor de magistrado. 

2. Constatado que o magistrado, em um processo judicial, deferiu tutela antecipada determinando o bloqueio de valores, a despeito de incongruências na inicial e no instrumento de mandato, e homologou acordo extrajudicial sem citação da parte executada, fazendo expedir alvarás em número superior ao necessário, não adotando nenhuma providência para apurar eventual fraude em razão da notícia de que o executado falecera em data anterior ao ajuizamento da ação; em outro feito não deu impulso adequado, sem dar celeridade na apreciação de pedido de desistência da ação após ter deferido a constrição de quantias, prolatando ainda decisão sem fundamentação quanto ao pagamento das custas ao final do processo; e, em uma terceira demanda, determinou a penhora eletrônica de dinheiro mesmo após a desistência da execução, o TJAL julgou parcialmente procedente o PAD em decorrência de restar provado que o magistrado agiu com negligência, sujeitando-o à pena disciplinar de advertência, consoante o art. 43 da LOMAN e art. 4º da Res. CNJ 135/2011, por infração ao art. 35, I, da LOMAN, e arts. 1º, 24 e 25 do Código de Ética da Magistratura. A Corte local afastou, ainda, a incidência do art. 8º desse último diploma ante a ausência de demonstração da quebra da imparcialidade.  

3.  A jurisprudência deste Conselho Nacional de Justiça admite a instauração de revisão disciplinar, quando da análise das informações prestadas pelo órgão censor local constata-se que a sanção aplicada é inadequada ao contexto fático-probatório ventilado nos autos.  

4. A pena de advertência, aplicada em caráter reservado, restringe-se a situações de mera negligência isolada no cumprimento dos deveres do cargo. 

5.  A gravidade dos fatos apurados evidencia que a aplicação da penalidade de advertência, não obstante os fundamentos da decisão proferida, não parece a mais adequada à hipótese dos autos, tornando necessária a abertura de procedimento revisional para análise de uma possível readequação da sanção disciplinar à hipótese dos autos, nos termos do artigo 83, inciso I, do RICNJ. 

6. Conclusão pela necessidade de instauração, de ofício, da revisão de processo disciplinar, sem afastamento cautelar do magistrado, fundada no art. 83, inciso I, do RICNJ, para verificação da adequação e da proporcionalidade da penalidade aplicada ao juiz requerido, nos termos dos artigos. 82 e 86 do RICNJ. 

  

 

 

 ACÓRDÃO

O Conselho, por unanimidade, determinou a instauração de revisão disciplinar, nos termos do voto do Relator. Votou a Presidente. Presidiu o julgamento a Ministra Rosa Weber. Ausente, em razão da vacância do cargo, o representante do Ministério Público da União. Plenário, 22 de agosto de 2023. Presentes à sessão os Excelentíssimos Senhores Conselheiros Rosa Weber, Luis Felipe Salomão, Vieira de Mello Filho, Mauro Pereira Martins, Salise Sanchotene, Jane Granzoto, Richard Pae Kim, Marcio Luiz Freitas, Giovanni Olsson, João Paulo Schoucair, Marcos Vinícius Jardim Rodrigues, Marcello Terto, Mário Goulart Maia e Luiz Fernando Bandeira de Mello. Sustentaram oralmente: pelo Requerido, a Advogada Samara de Oliveira Santos Léda - OAB/DF 23.867; pela Interessada Associação dos Magistrados Brasileiros - AMB, o Advogado Alexandre Pontieri - OAB/SP 191.828; e, pela Interessada Associação Alagoana de Magistrados - ALMAGIS, o Advogado Lucas Almeida de Lopes Lima - OAB/AL 12623-A.

Conselho Nacional de Justiça

Autos: PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS - 0006185-83.2020.2.00.0000
Requerente: CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA
Requerido: LUCIANO AMERICO GALVAO FILHO


RELATÓRIO

 

O MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO, CORREGEDOR NACIONAL DE JUSTIÇA (Relator):  

  


Cuida-se de Pedido de Providências instaurado nos termos da Portaria CNJ n. 34, de 13.9.2016, a fim de cumprir o disposto nos artigos 9º, § 3º; 14, §§ 4º e 6º; 20, § 4º; e 28 da Resolução CNJ n. 135, de 13.7.2011, em razão da comunicação do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas à Corregedoria Nacional de Justiça, referente a processo administrativo disciplinar instaurado contra LUCIANO AMÉRICO GALVÃO FILHO, Juiz de Direito da 3ª Vara Cível da Comarca de Penedo.

O julgamento do Processo Administrativo Disciplinar foi finalizado, tendo sido aplicado ao magistrado pena de advertência, em acórdão assim ementado (ID 4376997):

 

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR CONTRA MAGISTRADO. NEGLIGÊNCIA NA CONDUÇÃO DE AÇÕES DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. FALTA DE DILIGÊNCIA E PRUDÊNCIA NA PROLAÇÃO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA, EXPEDIÇÃO DE ALVARÁS PARA LEVANTAMENTO DE VALORES, APRECIAÇÃO DE PEDIDO DE DESISTÊNCIA E TRATAMENTO DE NOTÍCIA DE FRAUDE. AFRONTA AO ARTIGO 35, INCISO I, DA LOMAN E ARTIGOS 1º, 24 E 25 DO CÓDIGO DE ÉTICA DA MAGISTRATURA. FALTAS DISCIPLINARES COMPROVADAS. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR PARCIALMENTE PROCEDENTE. APLICAÇÃO DE PENALIDADE DE ADVERTÊNCIA.

I – A negligência no cumprimento dos deveres funcionais perpassa a atuação do magistrado na sua função precípua de julgar; não se perquire o acerto ou desacerto da decisão, mas o proceder açodado, parcial ou desonesto do agente. Em outras palavras, não se pune a falibilidade humana, mas atos ímprobos, desvios éticos e negligência na forma de gerir o processo judicial.Não fosse assim, a lei não imporia ao juiz o dever de cumprir com exatidão as disposições legais (art. 35, I, da LOMAN). Precedentes do STJ.

II – Induvidosa a compatibilidade das imputações condensadas no acórdão de instauração do PAD e a apuração preliminar, tendo o investigado gozado de duas oportunidades para explicar e defender a sua conduta em conformidade com os ditames da Resolução CNJ 135/11.

III – A alegação de impedimento dos Juízes Auxiliares da Corregedoria não foi argüida na primeira oportunidade em que coube ao requerido se manifestar nos autos, conforme manda o artigo 148, § 1º, do CPC, sendo certo, por outro lado, que os atos decisórios são proferidos unicamente pelo Corregedor-Geral Justiça, por este Relator e por este Colegiado.

IV – O comentário obter dictum do Ministério Público, em denúncia criminal contra terceiros, sobre a indução em erro do juiz, não obsta esta apuração, pois as esferas penal e administrativas são independentes, daí porque o magistrado só se poderia valer, aqui, de uma absolvição penal que expressamente reconhecesse a inexistência do fato ou negasse a sua autoria.

V – Bem assim, a absolvição de tabelião e de outro magistrado por fatos relacionados à fraude processual perpetrada por advogados e partes nos feitos conduzidos pelo requerido não é a ele extensível. Este PAD não se presta a analisar a conduta de outrem, senão do requerido, sendo certo que o ofício do tabelião é completamente diferente da atividade jurisdicional e as imputações a que respondeu outro magistrado não são idênticas às que pendem contra o investigado.

VI – Em um dos feitos examinados, constatou-se que o magistrado deferiu tutela antecipada a despeito de incongruências na inicial e no instrumento de mandato que demandavam cautela; depois, sem citar a parte executada, homologou acordo extrajudicial e fez expedir alvarás em número superior ao necessário, sem justificativa nos autos. Por fim, não adotou nenhuma providência para apurar a notícia de fraude.

VII – Nos outros dois processo, o magistrado não atuou com a atenção e cautela devidas, inclusive não deu impulso adequado ao processo, constatando-se a prolação de decisões sem fundamentação e deferimento de tutela antecipada após pedido de desistência.

VIII – Restou provado que o magistrado requerido agiu com negligência, sujeitando-se a pena disciplinar de advertência, consoante artigo 43 da LOMAN e art. 4º da Res. CNJ 135/11, por infração ao art. 35, I, da LOMAN e arts. 1º, 24 e 25 do Código de Ética da Magistratura. Não incide o art. 8º deste último diploma, por não se ter comprovado quebra da imparcialidade.

IX – Processo Administrativo Disciplinar julgado parcialmente procedente para aplicar a penalidade de advertência.


 

Conforme consta nos autos, no julgamento do Processo Administrativo Disciplinar 0500604-81.2019.8.02.0073, contra LUCIANO AMÉRICO GALVÃO FILHO, o Tribunal de Justiça de Alagoas reconheceu a prática de falta grave em relação às seguintes condutas (Id 4376997, fls. 12/28):

 

Atribui-se concretamente ao magistrado a conduta de proceder com “falta de prudência, zelo e cuidado ao conceder medidas liminares nos Processos 0700713-57.2017.8.02.0049, 0701277-36.2017.8.02.0049 e 0700463-87.2018.8.02.0049, sem a devida cautela ou cuidados necessários ao resguardo das partes, do objeto da pretensão e do próprio exercício da jurisdição; expedição de alvarás em valores superiores aos bloqueados por meio da penhora on line; omissão em relação aos fatos noticiados pelo patrono da parte prejudicada nos autos do processo 0700713-57.2017.8.02.0049, mesmo tendo sido informado de que a parte que figurava como executado teria falecido em 03/06/2013; assinatura da Decisão concedendo a medida liminar rogada pela parte exequente no processo 0700463-87.2018.8.02.0049, mesmo tendo sido acostada anteriormente petição pedindo a desistência da ação”.

[...]

Como já relatado, desde a instauração da investigação preliminar o magistrado foi notificado para se manifestar, nos termos e prazo do art. 9º, § 1º, da Res. 135/11-CNJ, sobre possíveis irregularidades nos processos 0700713-57.2017.8.02.0049, 0701277-36.2017.8.02.0049, 0700463-87.2018.8.02.0049, 0700559-05.2018.8.02.0049, 0700581-63.2018.8.02.0049 e 0700610-16.2018.8.02.0049, conforme despacho do eminente Corregedor a fls. 446/447.

Após as informações do magistrado, a fls. 453 e seguintes, o Exmo. Corregedor prolatou decisão encaminhando o processo para deliberação do Plenário, determinando citação e abertura de prazo para defesa prévia do magistrado, nos moldes do art. 14 da Res. 135/11-CNJ (fls. 498/507). Essa decisão, também precedida por parecer, citando os mesmos seis processos já auditados, já discriminava, entre outras coisas, as imputações mais tarde formalizadas contra o magistrado: o deferimento de tutela de urgência sem justificativa e à míngua de provas a subsidiar as iniciais; a exígua tramitação inicial dos feitos; inação diante da notícia de fraude; demora na apreciação de pedidos de desistência; deferimento de tutela antecipada após pedido de desistência; e a expedição de alvarás em favor do exequente e de advogado cujo total supera o valor acordado na demanda. A defesa prévia foi juntada às fls. 515 e seguintes.

No acórdão, três dos seis processos (0700713-57.2017.8.02.0049, 0701277-36.2017.8.02.0049 e 0700463-87.2018.8.02.0049) foram destacados no objeto do PAD, não tendo havido omissão de nenhum feito desde o início destes autos, sendo certo que o requerido exerceu o contraditório duas vezes – apresentando, inclusive, duas peças em cada oportunidade – antes da instauração do PAD.

[...]

Na instauração deste PAD, delinearam-se as seguintes imputações, basicamente: nos três autos, concessão de liminares sem a devida cautela ou cuidados necessários e expedição de alvarás em valores superiores aos bloqueados por meio de penhora on line; omissão em relação aos fatos noticiados pelo patrono da parte prejudicada nos autos do processo 0700713-57.2017.8.02.0049; e assinatura da decisão concedendo medida liminar rogada pela parte exequente no Processo 0700463-87.2018.8.02.0049, mesmo tendo sido acostada anteriormente petição pedindo a desistência da ação.

O magistrado afirma que foi induzido em erro, mormente dada a sofisticação da fraude, que se valeu de falsificação de selo cartorário e ludibriou outros magistrados. Ressalta que as decisões liminares se limitaram a indisponibilidade de valores, que não foram sacados a maior. Afirma também que, quando noticiada a morte do executado, o processo já havia transitado em julgado e os autos não estavam em sigilo, não havendo óbice ao acesso pelo advogado da parte; e que quando teve conhecimento da fraude, pela imprensa, passou a adotar mais precauções em outros processos.

No processo 0700713-57.2017.8.02.0049, José Antônio Sanccinni, por meio do advogado João Paulo Duarte Pereira, propôs ação de execução de título extrajudicial contra Sebastião Ribeiro Barbosa. Requereu assistência judiciária gratuita e manifestou desinteresse em audiência de conciliação. Disse ser o credor de uma dívida confessada no valor de R$ 271.251,83, já tendo esgotado todos os meios amigáveis de recebimento do crédito, e pleiteou a antecipação dos efeitos da tutela para realizar bloqueio bancário, alegando que “possui informações de que o executado vendeu, recentemente, alguns grãos de sua propriedade” e “possui numerário em contas bancárias de sua titularidade”.

Inicialmente, o magistrado prolatou despacho em 13/09/2017, a fim de intimar a parte para comprovar sua hipossuficiência. O autor, então trouxe cópia de sua declaração de imposto de renda do ano anterior, que indica renda atual de R$ 28.545,00.

Em decisão de 27/09/2017, o magistrado deferiu pedido de tutela antecipada, determinando o bloqueio BACENJUD e a citação da parte executada. Tão logo o resultado do bloqueio, no montante de R$ 245.723,45, foi reportado nos autos, em 02/10/2017, o autor atravessou petição, em 04/10/2017, afirmando ter chegado a um acordo com o devedor.

Analisando a conduta do magistrado e atendo-nos à averiguação de error in procedendo, e não in judicando, observa-se que ele deferiu antecipação dos efeitos da tutela em ação em que o instrumento de mandato não tem assinatura do autor/outorgante; o contrato de honorários advocatícios também não tem assinatura; a inicial e o instrumento de confissão de dívidas silenciam quanto à origem do débito; e o perigo da demora não fora comprovado sequer com início de prova material.

Cumpre sublinhar que a procuração era apócrifa, sendo esse o primeiro sinal de irregularidade na demanda. A ele se soma a disparidade entre a renda declarada pelo autor (vinte e oito mil reais) e o valor da dívida, quase dez vezes maior. De mais a mais, a parte demandada não foi efetivamente citada como manda o artigo 829 do Código de Processo Civil, que preconiza que o executado será citado para pagar a dívida no prazo de três dias, regra essa que dificulta fraudes dessa natureza, pois visa dar conhecimento ao executado da existência da ação.

Na ordem cronológica, chama a atenção o fato de o autor subitamente, dois dias após a juntada do resultado do bloqueio BACENJUD, ter logrado chegar a um acordo com o requerido – quando até então afirmava repetidamente (na inicial e na petição em que juntou a declaração de IRPF) que já esgotara todas as tentativas de conciliação e que sequer tinha interesse em realização de audiência.

Importa sublinhar que não se trata de acordo de composição extrajudicial, para cumprimento voluntário da obrigação, a fim de extinguir o processo e a obrigação. Aqui, o acordo teve o efeito de tornar incontroverso o débito e avançar para expropriação/levantamento do valor penhorado, driblando a citação e a audiência de conciliação.

Prosseguindo, ainda nesse feito, o magistrado homologou o acordo e julgou o processo extinto em sentença de 11/10/2017. Foram expedidos dois alvarás, em 18/10/2017: o primeiro alvará de R$ 36.858,52 em favor do advogado e o segundo alvará de R$ 208.864,93, em favor do autor (fls. 47/48). Em seguida aparecem nos autos outros dois alvarás: o terceiro alvará do processo no valor de R$ 154.352,35 em favor do autor e o quarto alvará no valor de R$ 27.238,65 em favor do advogado.

Aqui, a prova testemunhal é crucial. O advogado João Paulo Duarte Pereira alegou que retirou o alvará em seu favor e o levou ao banco, mas não pôde levantar o numerário porque o alvará continha erro no ID, tendo retornado a vara e obtido novo alvará e, enfim, efetuado o saque. Essa explicação, obviamente, não faz nenhum sentido, sobretudo porque os alvarás tem valores diversos.

Mais verossímil foi o depoimento do chefe de secretaria, João Nildo de Jesus, segundo o qual, por algum motivo, que especula ter sido demora de processamento do banco, quando o advogado esteve na agência o valor bloqueado não estava inteiramente disponível para saque, o que fez com que ele voltasse a unidade judiciária, no afã de sacar o que quer que estivesse em conta, e solicitasse que um novo alvará fosse expedido, em valor inferior, que lhe permitisse levantar o que havia disponível. Tal alvará foi expedido, mas não foi entregue, pois antes disso o banco informara que o valor estava integralmente disponível, tendo o advogado levado de volta o alvará original.

Essa versão dos fatos é corroborada pela constatação de que os alvarás de fls. 51/52 não estão assinados. Demais disso, em tese não seria possível sacar os alvarás em duplicidade, pois superariam o montante bloqueado. O chefe de secretaria também afirmou que costumava confirmar todos os saques com a agência bancária e que o valor levantado correspondia ao bloqueio.

De notar, todavia, que os alvarás a menor foram expedidos por ordem oral do magistrado, sem que dos autos conste justificativa, a dificultar sobremaneira a compreensão do que se passou neste processo, e esse modo de proceder evidentemente não é correto.

Por fim, sucedeu que, em 23/05/2018, um advogado oriundo do estado do Rio de Janeiro peticionou nos autos dizendo ter sido contratado para realizar inventário extrajudicial do executado, Sebastião Ribeiro Barbosa, que teria falecido em 03/06/2013 – muito antes, portanto, da confissão de dívida e da ação. O advogado disse enfrentar dificuldades para acessar os autos e requereu a liberação de acesso.

Diante dessa espantosa notícia, o requerido não adotou nenhuma providência para apurar o fato, limitando-se a prolatar despacho, em 13/07/2018 – quase dois meses depois, aliás -, atestando que os autos eram públicos e determinando o seu retorno ao arquivo:

Indefiro o pedido formulado às fls. 64/65, pois em consulta ao sistema SAJ verifica-se que os autos não se encontram em segredo de justiça, não existindo qualquer óbice ao acesso destes pelo causídico.

Retornem os autos ao arquivo.

Por um lado, é certo que o advogado deveria desde logo ter comprovado o óbito do executado. Por outro lado, do ponto de vista do Judiciário, deveria o magistrado tê-lo intimado para que o fizesse, a fim de apurar a gravíssima denúncia, e, como bem salientou a Procuradoria-Geral de Justiça, incumbia-lhe notificar o Ministério Público diante da notícia de crime.

[...]

Vale destacar que o executado não foi encontrado no endereço fornecido para ser intimado da sentença homologatória. Depois disso, como faz ver a Procuradoria-Geral de Justiça, foi atravessado um insólito ofício do Tribunal de Justiça de São Paulo, a fls. 61 e 75/77, com o intuito de intimar o autor para regularizar representação processual, recolher taxas, etc.

Também convém notar que o advogado subscritor do acordo, representando a parte executada, figura como advogado dos exequentes nas duas outras ações a serem examinadas a diante (João Carlos Renovato Bezerra). Conquanto não se exija do magistrado atentar para a representação das partes em três processos, dentre tantos outros, após a notícia de fraude nos autos essa observação – de que o mesmo advogado que representa a parte ré neste processo é autor de ações similares – inspira maiores cuidados.

Veja-se que não se está acusando o magistrado de qualquer participação na fraude, mas o questionamento que cabe aqui é se ele foi induzido em erro em cada um dos atos equivocados ou se agiu com negligência e permitiu que a fraude tivesse êxito. Os autos confirmam a segunda hipótese: a desatenção do magistrado na prática de uma série de atos facilitou, em certa medida, a consumação da fraude e obtenção do proveito ilícito por seus autores.

Recapitulando, constatou-se que o magistrado deferiu tutela antecipada apesar de o instrumento de mandato e o contrato de honorários advocatícios não conterem assinaturas, a inicial e o instrumento de confissão de dívida silenciarem quanto à origem do débito e a renda declarada pelo autor ser quase dez vezes inferior ao valor da dívida. O magistrado, sem realizar audiência de conciliação e à míngua de citação, homologou acordo extrajudicial estranhamente travado logo após o bloqueio BACENJUD apesar da insistência do autor de que o bloqueio era necessário por ser impossível entrar em acordo com o executado. Em seguida foram expedidos quatro alvarás, em lugar dos dois devidos, sem justificativa nos autos. E, por fim, o magistrado não adotou nenhuma providência para apurar a notícia de fraude. Vale frisar que esse feito gerou prejuízo financeiro para o espólio/sucessores do executado, devido ao levantamento dos alvarás originais.

A ação de execução de título extrajudicial n 0701277-36.2017.8.02.0049 foi ajuizada por José Marcio de Oliveira, representado pelo advogado João Carlos Renovato (o mesmo que afirmava patrocinar o executado na ação anterior) e tinha como ré a aposentada Corina Luis da Silva. Afirmava o autor ter vendido mil sacas de 60 kg de arroz cada, totalizando R$ 37.650,00, pretendendo a execução de nota promissória no valor atualizado de R$ 42.929,09. Requereu assistência judiciária gratuita e, subsidiariamente, o diferimento das custas para o fim do processo e, liminarmente, a indisponibilidade da quantia.

O pedido liminar foi concedido no dia seguinte ao da propositura da ação (22/11/2017), acolhendo-se o pedido de diferimento de custas, determinando que, após o bloqueio, a devedora fosse intimada para o pagamento em três dias.

Conforme relatório juntado em 01/02/2018, a requisição de bloqueio não logrou localizar saldo em conta e, em 12/04/2018, o exeqüente pediu desistência. A desistência não foi homologada então, mas em 30/01/2019 o magistrado exarou despacho determinando que o oficial de justiça se dirigi-se ao endereço das partes para confirmar se lá residiam, devido a notoriedade das fraudes:

Ante os fatos notórios concernentes a fraudes processuais perpetradas em alguns processos de execução de título extrajudicial, determino como medida de cautela que o oficial de justiça dirija-se ao endereço das partes indicado na inicial para confirmar se de fato elas ali residem.

Em 21/02/2019, o oficial de justiça certificou que fora informado de que a executada se mudara há três meses para lugar incerto e não sabido. Somente um ano depois, em 16/03/2021, adveio novo ato judicial, determinando a expedição de carta precatória para averiguar o endereço do autor.

Aqui, observa-se falta de fundamentação para o deferimento do pedido de pagamento das custas ao final do processo, haja vista que se limitou a uma linha, no segundo parágrafo da decisão: “Defiro o pagamento das custas ao final do processo”. De outro lado, vê-se que, após o imediato deferimento do pedido liminar, o processo não recebeu impulso célere, pois entre o pedido de desistência e o ato jurisdicional seguinte passaram-se oito meses e entre a certidão do oficial de justiça e o ato seguinte passou-se mais de um ano. (A título de informação, o oficial de justiça no juízo deprecado, em 05/04/2021, aferiu que o autor nunca residiu no endereço indicado na inicial).

Como assevera a Procuradoria-Geral de Justiça, constata-se que, embora não se trate de faltas tão destacadas quanto no feito anterior, o magistrado não atuou com a cautela devida nem deu o impulso adequado ao processo.

O processo n. 0700463-87.2018.8.02.0049 é muito semelhante ao anterior. Em 18/05/2018, o exequente, Douglas Pinheiro dos Santos, representado por João Carlos Renovato, propôs a ação de execução de título extrajudicial contra Nelson da Silva. Afirmava o autor ser credor do valor atualizado de R$ 41.001,80, apresentando nota promissória. Requereu diferimento das custas para o final do processo e, liminarmente, a indisponibilidade da quantia. Ato contínuo, em 26/05/2018, requereu a desistência.

Sem atentar para a desistência, em 05/06/2018, o magistrado prolatou decisão deferindo o pedido de bloqueio de contas bancárias e acolhendo o pedido de diferimento das custas. Em 10/09/2018, chamou o feito a ordem para tornar a decisão sem efeito, sem, no entanto, homologar a desistência. Finalmente, em 31/01/2019, determinou que o oficial de justiça se diriji-se ao endereço das partes para confirmar se lá residiam, devido à notoriedade das fraudes.

O oficial de justiça certificou, em 15/02/2019, que não pôde localizar o paradeiro do executado e até o momento nenhuma outra providência foi adotada.

Mais uma vez, percebe-se que o processo caminhou morosamente, com intervalos de três meses até que o magistrado tornasse sem efeito a liminar, quatro meses até que mandasse diligenciar acerca do domicílio das partes e mais de um ano desde então. Bem assim, o deferimento do pedido de pagamento das custas no fim do processo careceu de fundamentação.

Sobre o deferimento de pedido de liminar após a petição de desistência, sabe-se que tais equívocos podem acontecer, mas esse fato se insere num panorama maior de desatenção e falta de cautela na condução do feito. Ainda que a minuta tenha sido elaborada antes do pedido de desistência, a decisão foi assinada quase dez dias depois e só foi tornada sem efeito três meses mais tarde.

De fato, após a notoriedade das fraudes, o magistrado passou a adotar cautelas em processos subsequentes, averiguando o domicílio das partes, contatando a CGJ  e outras autoridades e comunicando à administração tributária indícios de sonegação de impostos. Entretanto, nos feitos ora examinados é forçoso reconhecer que o magistrado não agiu com a prudência que as circunstâncias exigiam a todo tempo, sobretudo porque em nenhum momento adotou providência no processo em que efetivamente houve notícias de crime.

Nos três processos examinados, o magistrado por vezes falhou em cumprir com exatidão as disposições legais e atos de ofício e não atuou com prudência, diligência e cautela.

 

 

No tocante à penalidade disciplinar, o eg. Tribunal Pleno decidiu, por maioria, aplicar a advertência, ao fundamento de que (Id 4376997, fls. 29):

 

Tornando a mencionar o Pedido de Providências em desfavor do Juiz de Direito Claudemiro Avelino Souza, anoto novamente que naquele caso a conduta do magistrado foi menos censurável e não recebeu uma penalidade disciplinar, mas o feito não foi simplesmente arquivado, tendo este plenário decidido por remeter ao juiz uma recomendação de mais diligência na atividade judicante; no caso em exame, o magistrado cometeu atos sucessivos de negligência de maior gravidade, razão porque se propõe aqui a imposição de advertência, que está no primeiro grau da escala de penalidades, não havendo disparidade nem afronta à isonomia no cotejo dos dois casos.

Em conclusão, restou provado que o magistrado requerido agiu com negligência, sujeitando-se à pena disciplinar de advertência, consoante art. 43 da LOMAN e art. 4º da Res. CNJ 135/2011, por infração ao artigo 35, I, da LOMAN e arts. 1º, 24 e 25 do Código de Ética da Magistratura. 

 

Discordando da conclusão da Corregedoria local em relação à penalidade aplicada, porque contrária à evidência dos fatos graves constatados no procedimento e insuficiente para reprimir as faltas praticadas pelo Magistrado e violadoras dos artigos 35, I, da Lei Complementar n. 35, de 14 de março de 1979, e 1º, 24 e 25 do Código de Ética da Magistratura Nacional, e considerando a possibilidade de instauração de ofício de revisão disciplinar para um possível redimensionamento da sanção disciplinar, foi determinada a intimação do magistrado, para que, no prazo de 15 (quinze) dias, querendo, apresentasse defesa prévia (ID 4593956).

Em sua manifestação prévia, o magistrado alega que não houve má-fé e nem falta de diligência em sua conduta.

É o relatório. 

 

 

 

 

 

J16/F33


 

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Autos: PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS - 0006185-83.2020.2.00.0000
Requerente: CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA
Requerido: LUCIANO AMERICO GALVAO FILHO

 


VOTO


        

 

O EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO, CORREGEDOR NACIONAL DE JUSTIÇA (Relator):  

 

O art. 82 do RICNJ estabelece que “poderão ser revistos, de ofício ou mediante provocação de qualquer interessado, os processos disciplinares de juízes e membros de Tribunais julgados há menos de um ano do pedido de revisão”. 

Assim, tem-se que a pretensão revisional do CNJ, seja por meio de procedimento próprio, seja mediante o prosseguimento da apuração originária, deve ser exercida sob o limite temporal de um ano, a partir do julgamento disciplinar pelo Tribunal local, à luz do art. 103-B, § 4º, inciso V, da Constituição Federal.

Na hipótese dos autos, não houve decadência. Isso porque a decisão da Corte local se deu em 18/05/2021 (sendo que os embargos de declaração interpostos contra a decisão foram apreciados em 31/08/2021) e em 27.01.2022 foi prolatada decisão expressa desta Corregedoria Nacional anunciando o exercício da pretensão revisora (decisão localizada no ID 4593956, com intimação do requerido em 14.02.2022, conforme ID 4615589).

Nesse sentido, aliás, já houve pronunciamento desse Conselho Nacional de Justiça indicando que o marco terminativo do prazo decadencial para a revisão disciplinar de ofício é a primeira manifestação formal de qualquer dos legitimados previstos no art. 86 do RICNJ que expresse o interesse público na sua instauração (CNJ - Pedido de Providências - 0003963-21.2015.2..00.0000 - Rel. Min. NANCY ANDRIGUI - j. 24/05/2016). 

Ultrapassa esta questão, vale lembrar que somente será admitida a revisão disciplinar nas estritas hipóteses previstas no artigo 83 do Regimento Interno do CNJ:


Art. 83. A revisão dos processos disciplinares será admitida:


I - quando a decisão for contrária a texto expresso da lei, à evidência dos autos ou a ato normativo do CNJ;

II - quando a decisão se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos;

III - quando, após a decisão, surgirem fatos novos ou novas provas ou circunstâncias que determinem ou autorizem modificação da decisão proferida pelo órgão de origem.

 

 

 No caso dos autos, foi imposta ao magistrado pena de advertência, entendida pelo Tribunal local como suficiente e adequada para punir suas infrações disciplinares.

Ao justificar a penalidade imposta, foi exposto que:

Tornando a mencionar o Pedido de Providências em desfavor do Juiz de Direito Claudemiro Avelino Souza, anoto novamente que naquele caso a conduta do magistrado foi menos censurável e não recebeu uma penalidade disciplinar, mas o feito não foi simplesmente arquivado, tendo este plenário decidido por remeter ao juiz uma recomendação de mais diligência na atividade judicante; no caso em exame, o magistrado cometeu atos sucessivos de negligência de maior gravidade, razão porque se propõe aqui a imposição de advertência, que está no primeiro grau da escala de penalidades, não havendo disparidade nem afronta à isonomia no cotejo dos dois casos.

Em conclusão, restou provado que o magistrado requerido agiu com negligência, sujeitando-se à pena disciplinar de advertência, consoante art. 43 da LOMAN e art. 4º da Res. CNJ 135/2011, por infração ao artigo 35, I, da LOMAN e arts. 1º, 24 e 25 do Código de Ética da Magistratura. 

 

 

A Lei Complementar n. 35/1979 estabelece que:

Art. 43 - A pena de advertência aplicar-se-á reservadamente, por escrito, no caso de negligência no cumprimento dos deveres do cargo.

 

Art. 44 - A pena de censura será aplicada reservadamente, por escrito, no caso de reiterada negligência, ou no de procedimento incorreto, se a infração não justificar punição mais grave.

 

Dessa forma, a advertência é uma penalidade que deve ser aplicada quando houver uma simples negligência no cumprimento dos deveres do cargo. Já a censura é cabível na hipótese de negligência reiterada e/ou procedimento incorreto.

A escolha da penalidade a ser aplicada deve levar em consideração a gravidade da infração, a intensidade do descumprimento dos deveres funcionais, o grau de reprovabilidade da conduta, a carga coativa da pena e a eficácia da medida punitiva aplicada.

No caso dos autos, as infrações disciplinares reconhecidamente praticadas pelo magistrado vão muito além de uma negligência isolada. Em verdade, o magistrado atuou, no mínimo, com clara desídia, aplicando procedimento incorreto de forma reiterada em processos de execução de título extrajudicial, causando grave prejuízo, em razão de sua omissão, em coibir golpes que somente se realizaram por conta de sua inação. Não bastasse, mesmo provocado, não tomou as providências necessárias para obstar de imediato as fraudes, mitigando os danos.

Para bem ilustrar a situação, vejamos a atuação do magistrado em cada um dos processos, conforme relatado na análise do TJAL.

Iniciemos pelo processo 0700713-57.2017.8.02.0049:

 

 

No processo 0700713-57.2017.8.02.0049, José Antônio Sanccinni, por meio do advogado João Paulo Duarte Pereira, propôs ação de execução de título extrajudicial contra Sebastião Ribeiro Barbosa. Requereu assistência judiciária gratuita e manifestou desinteresse em audiência de conciliação. Disse ser o credor de uma dívida confessada no valor de R$ 271.251,83, já tendo esgotado todos os meios amigáveis de recebimento do crédito, e pleiteou a antecipação dos efeitos da tutela para realizar bloqueio bancário, alegando que “possui informações de que o executado vendeu, recentemente, alguns grãos de sua propriedade” e “possui numerário em contas bancárias de sua titularidade”.

Inicialmente, o magistrado prolatou despacho em 13/09/2017, a fim de intimar a parte para comprovar sua hipossuficiência. O autor, então trouxe cópia de sua declaração de imposto de renda do ano anterior, que indica renda atual de R$ 28.545,00.

Em decisão de 27/09/2017, o magistrado deferiu pedido de tutela antecipada, determinando o bloqueio BACENJUD e a citação da parte executada. Tão logo o resultado do bloqueio, no montante de R$ 245.723,45, foi reportado nos autos, em 02/10/2017, o autor atravessou petição, em 04/10/2017, afirmando ter chegado a um acordo com o devedor.

Analisando a conduta do magistrado e atendo-nos à averiguação de error in procedendo, e não in judicando, observa-se que ele deferiu antecipação dos efeitos da tutela em ação em que o instrumento de mandato não tem assinatura do autor/outorgante; o contrato de honorários advocatícios também não tem assinatura; a inicial e o instrumento de confissão de dívidas silenciam quanto à origem do débito; e o perigo da demora não fora comprovado sequer com início de prova material.

Cumpre sublinhar que a procuração era apócrifa, sendo esse o primeiro sinal de irregularidade na demanda. A ele se soma a disparidade entre a renda declarada pelo autor (vinte e oito mil reais) e o valor da dívida, quase dez vezes maior. De mais a mais, a parte demandada não foi efetivamente citada como manda o artigo 829 do Código de Processo Civil, que preconiza que o executado será citado para pagar a dívida no prazo de três dias, regra essa que dificulta fraudes dessa natureza, pois visa dar conhecimento ao executado da existência da ação.

Na ordem cronológica, chama a atenção o fato de o autor subitamente, dois dias após a juntada do resultado do bloqueio BACENJUD, ter logrado chegar a um acordo com o requerido – quando até então afirmava repetidamente (na inicial e na petição em que juntou a declaração de IRPF) que já esgotara todas as tentativas de conciliação e que sequer tinha interesse em realização de audiência.

Importa sublinhar que não se trata de acordo de composição extrajudicial, para cumprimento voluntário da obrigação, a fim de extinguir o processo e a obrigação. Aqui, o acordo teve o efeito de tornar incontroverso o débito e avançar para expropriação/levantamento do valor penhorado, driblando a citação e a audiência de conciliação.

Prosseguindo, ainda nesse feito, o magistrado homologou o acordo e julgou o processo extinto em sentença de 11/10/2017. Foram expedidos dois alvarás, em 18/10/2017: o primeiro alvará de R$ 36.858,52 em favor do advogado e o segundo alvará de R$ 208.864,93, em favor do autor (fls. 47/48). Em seguida aparecem nos autos outros dois alvarás: o terceiro alvará do processo no valor de R$ 154.352,35 em favor do autor e o quarto alvará no valor de R$ 27.238,65 em favor do advogado.

Aqui, a prova testemunhal é crucial. O advogado João Paulo Duarte Pereira alegou que retirou o alvará em seu favor e o levou ao banco, mas não pôde levantar o numerário porque o alvará continha erro no ID, tendo retornado a vara e obtido novo alvará e, enfim, efetuado o saque. Essa explicação, obviamente, não faz nenhum sentido, sobretudo porque os alvarás tem valores diversos.

Mais verossímil foi o depoimento do chefe de secretaria, João Nildo de Jesus, segundo o qual, por algum motivo, que especula ter sido demora de processamento do banco, quando o advogado esteve na agência o valor bloqueado não estava inteiramente disponível para saque, o que fez com que ele voltasse a unidade judiciária, no afã de sacar o que quer que estivesse em conta, e solicitasse que um novo alvará fosse expedido, em valor inferior, que lhe permitisse levantar o que havia disponível. Tal alvará foi expedido, mas não foi entregue, pois antes disso o banco informara que o valor estava integralmente disponível, tendo o advogado levado de volta o alvará original.

Essa versão dos fatos é corroborada pela constatação de que os alvarás de fls. 51/52 não estão assinados. Demais disso, em tese não seria possível sacar os alvarás em duplicidade, pois superariam o montante bloqueado. O chefe de secretaria também afirmou que costumava confirmar todos os saques com a agência bancária e que o valor levantado correspondia ao bloqueio.

De notar, todavia, que os alvarás a menor foram expedidos por ordem oral do magistrado, sem que dos autos conste justificativa, a dificultar sobremaneira a compreensão do que se passou neste processo, e esse modo de proceder evidentemente não é correto.

Por fim, sucedeu que, em 23/05/2018, um advogado oriundo do estado do Rio de Janeiro peticionou nos autos dizendo ter sido contratado para realizar inventário extrajudicial do executado, Sebastião Ribeiro Barbosa, que teria falecido em 03/06/2013 – muito antes, portanto, da confissão de dívida e da ação. O advogado disse enfrentar dificuldades para acessar os autos e requereu a liberação de acesso.

Diante dessa espantosa notícia, o requerido não adotou nenhuma providência para apurar o fato, limitando-se a prolatar despacho, em 13/07/2018 – quase dois meses depois, aliás -, atestando que os autos eram públicos e determinando o seu retorno ao arquivo:

Indefiro o pedido formulado às fls. 64/65, pois em consulta ao sistema SAJ verifica-se que os autos não se encontram em segredo de justiça, não existindo qualquer óbice ao acesso destes pelo causídico.

Retornem os autos ao arquivo.

Por um lado, é certo que o advogado deveria desde logo ter comprovado o óbito do executado. Por outro lado, do ponto de vista do Judiciário, deveria o magistrado tê-lo intimado para que o fizesse, a fim de apurar a gravíssima denúncia, e, como bem salientou a Procuradoria-Geral de Justiça, incumbia-lhe notificar o Ministério Público diante da notícia de crime.

[...]

Vale destacar que o executado não foi encontrado no endereço fornecido para ser intimado da sentença homologatória. Depois disso, como faz ver a Procuradoria-Geral de Justiça, foi atravessado um insólito ofício do Tribunal de Justiça de São Paulo, a fls. 61 e 75/77, com o intuito de intimar o autor para regularizar representação processual, recolher taxas, etc.

Também convém notar que o advogado subscritor do acordo, representando a parte executada, figura como advogado dos exequentes nas duas outras ações a serem examinadas a diante (João Carlos Renovato Bezerra). Conquanto não se exija do magistrado atentar para a representação das partes em três processos, dentre tantos outros, após a notícia de fraude nos autos essa observação – de que o mesmo advogado que representa a parte ré neste processo é autor de ações similares – inspira maiores cuidados.

Veja-se que não se está acusando o magistrado de qualquer participação na fraude, mas o questionamento que cabe aqui é se ele foi induzido em erro em cada um dos atos equivocados ou se agiu com negligência e permitiu que a fraude tivesse êxito. Os autos confirmam a segunda hipótese: a desatenção do magistrado na prática de uma série de atos facilitou, em certa medida, a consumação da fraude e obtenção do proveito ilícito por seus autores.

Recapitulando, constatou-se que o magistrado deferiu tutela antecipada apesar de o instrumento de mandato e o contrato de honorários advocatícios não conterem assinaturas, a inicial e o instrumento de confissão de dívida silenciarem quanto à origem do débito e a renda declarada pelo autor ser quase dez vezes inferior ao valor da dívida. O magistrado, sem realizar audiência de conciliação e à míngua de citação, homologou acordo extrajudicial estranhamente travado logo após o bloqueio BACENJUD apesar da insistência do autor de que o bloqueio era necessário por ser impossível entrar em acordo com o executado. Em seguida foram expedidos quatro alvarás, em lugar dos dois devidos, sem justificativa nos autos. E, por fim, o magistrado não adotou nenhuma providência para apurar a notícia de fraude. Vale frisar que esse feito gerou prejuízo financeiro para o espólio/sucessores do executado, devido ao levantamento dos alvarás originais.

 

Vê-se, portanto, que: (a) o magistrado concedeu liminar para bloqueio de valores on line, antes mesmo de citar o devedor (CPC, art. 829), em valor quase dez vezes superior ao correspondente à renda anual do exequente (o que certamente deveria ter atraído sua atenção); (b) o instrumento de mandato sequer estava assinado pelo autor/exequente, tampouco o contrato de honorários; (c) o título executivo, um instrumento de confissão de dívida, sequer apontava a origem do débito; (d) não houve prova do perigo de dano que justificasse a medida liminar sem respeito ao contraditório prévio; (e) o magistrado homologou suposto acordo de reconhecimento do débito, sem a realização de audiência, nem sequer da citação do executado; (f) após a penhora eletrônica do dinheiro, o magistrado expediu alvarás em valores totais até mesmo superiores ao montante bloqueado; (g) os valores foram bloqueados, com enorme prejuízo ao espólio do suposto devedor; (h) mesmo após o alerta de advogado sobre a fraude, o magistrado não tomou nenhuma providência, determinando o retorno dos autos ao arquivo.

Também agiu com desídia o magistrado nos dois outros casos, também ajuizados pelo mesmo advogado do processo anterior, João Carlos Renovato, que atuou com o mesmo modus operandi. Vejamos a conduta do magistrado no processo 0701277-36.2017.8.02.0049:

 

 

A ação de execução de título extrajudicial n 0701277-36.2017.8.02.0049 foi ajuizada por José Marcio de Oliveira, representado pelo advogado João Carlos Renovato (o mesmo que afirmava patrocinar o executado na ação anterior) e tinha como ré a aposentada Corina Luis da Silva. Afirmava o autor ter vendido mil sacas de 60 kg de arroz cada, totalizando R$ 37.650,00, pretendendo a execução de nota promissória no valor atualizado de R$ 42.929,09. Requereu assistência judiciária gratuita e, subsidiariamente, o diferimento das custas para o fim do processo e, liminarmente, a indisponibilidade da quantia.

O pedido liminar foi concedido no dia seguinte ao da propositura da ação (22/11/2017), acolhendo-se o pedido de diferimento de custas, determinando que, após o bloqueio, a devedora fosse intimada para o pagamento em três dias.

Conforme relatório juntado em 01/02/2018, a requisição de bloqueio não logrou localizar saldo em conta e, em 12/04/2018, o exequente pediu desistência. A desistência não foi homologada então, mas em 30/01/2019 o magistrado exarou despacho determinando que o oficial de justiça se dirigisse ao endereço das partes para confirmar se lá residiam, devido a notoriedade das fraudes:

Ante os fatos notórios concernentes a fraudes processuais perpetradas em alguns processos de execução de título extrajudicial, determino como medida de cautela que o oficial de justiça dirija-se ao endereço das partes indicado na inicial para confirmar se de fato elas ali residem.

Em 21/02/2019, o oficial de justiça certificou que fora informado de que a executada se mudara há três meses para lugar incerto e não sabido. Somente um ano depois, em 16/03/2021, adveio novo ato judicial, determinando a expedição de carta precatória para averiguar o endereço do autor.

Aqui, observa-se falta de fundamentação para o deferimento do pedido de pagamento das custas ao final do processo, haja vista que se limitou a uma linha, no segundo parágrafo da decisão: “Defiro o pagamento das custas ao final do processo”. De outro lado, vê-se que, após o imediato deferimento do pedido liminar, o processo não recebeu impulso célere, pois entre o pedido de desistência e o ato jurisdicional seguinte passaram-se oito meses e entre a certidão do oficial de justiça e o ato seguinte passou-se mais de um ano. (A título de informação, o oficial de justiça no juízo deprecado, em 05/04/2021, aferiu que o autor nunca residiu no endereço indicado na inicial).

Como assevera a Procuradoria-Geral de Justiça, constata-se que, embora não se trate de faltas tão destacadas quanto no feito anterior, o magistrado não atuou com a cautela devida nem deu o impulso adequado ao processo.

 

Note-se que, mais uma vez, o magistrado deferiu com celeridade a penhora eletrônica de valores antes mesmo da citação do devedor e sem prova de perigo na demora. Não se logrou o bloqueio dos valores e, em seguida, houve pedido de desistência da ação. O magistrado somente buscou se informar sobre a existência das partes quase um ano depois desse pedido.

Nesse processo, as falhas constatadas não levaram a graves danos claramente pelo insucesso no bloqueio dos bens. Contudo, a desídia no dever de ofício de obstar o uso do Poder Judiciário como instrumento de golpes, adotando-se, para tanto, o devido processo legal teve o mesmo modus do caso anterior.

Vejamos, finalmente, como se comportou o magistrado no processo 0700463-87.2018.8.02.0049:

 

 

O processo n. 0700463-87.2018.8.02.0049 é muito semelhante ao anterior. Em 18/05/2018, o exequente, Douglas Pinheiro dos Santos, representado por João Carlos Renovato, propôs a ação de execução de título extrajudicial contra Nelson da Silva. Afirmava o autor ser credor do valor atualizado de R$ 41.001,80, apresentando nota promissória. Requereu diferimento das custas para o final do processo e, liminarmente, a indisponibilidade da quantia. Ato contínuo, em 26/05/2018, requereu a desistência.

Sem atentar para a desistência, em 05/06/2018, o magistrado prolatou decisão deferindo o pedido de bloqueio de contas bancárias e acolhendo o pedido de diferimento das custas. Em 10/09/2018, chamou o feito a ordem para tornar a decisão sem efeito, sem, no entanto, homologar a desistência. Finalmente, em 31/01/2019, determinou que o oficial de justiça se dirigisse ao endereço das partes para confirmar se lá residiam, devido à notoriedade das fraudes.

O oficial de justiça certificou, em 15/02/2019, que não pôde localizar o paradeiro do executado e até o momento nenhuma outra providência foi adotada.

Mais uma vez, percebe-se que o processo caminhou morosamente, com intervalos de três meses até que o magistrado tornasse sem efeito a liminar, quatro meses até que mandasse diligenciar acerca do domicílio das partes e mais de um ano desde então. Bem assim, o deferimento do pedido de pagamento das custas no fim do processo careceu de fundamentação.

Sobre o deferimento de pedido de liminar após a petição de desistência, sabe-se que tais equívocos podem acontecer, mas esse fato se insere num panorama maior de desatenção e falta de cautela na condução do feito. Ainda que a minuta tenha sido elaborada antes do pedido de desistência, a decisão foi assinada quase dez dias depois e só foi tornada sem efeito três meses mais tarde.

De fato, após a notoriedade das fraudes, o magistrado passou a adotar cautelas em processos subsequentes, averiguando o domicílio das partes, contatando a CGJ  e outras autoridades e comunicando à administração tributária indícios de sonegação de impostos. Entretanto, nos feitos ora examinados é forçoso reconhecer que o magistrado não agiu com a prudência que as circunstâncias exigiam a todo tempo, sobretudo porque em nenhum momento adotou providência no processo em que efetivamente houve notícias de crime.

Nos três processos examinados, o magistrado por vezes falhou em cumprir com exatidão as disposições legais e atos de ofício e não atuou com prudência, diligência e cautela.

 

Note-se que o magistrado, novamente, deferiu medida liminar sem prova do preenchimento dos requisitos legais e determinou a realização de penhora eletrônica de dinheiro mesmo após a desistência da execução.

Da comparação entre os feitos, percebe-se claramente a utilização de um expediente fraudulento por parte do advogado, que buscava o bloqueio e a apropriação de valores pertencentes a vítimas incautas. Ele somente poderia ser bem-sucedido nessa estratégia – como foi, em um dos casos – se contasse, no mínimo, com a desídia do magistrado. E foi o que efetivamente se constatou, nos três processos examinados. O magistrado não tomou cautelas básicas e mínimas, desrespeito o devido processo legal e proporcionou sucesso à fraude.

A gravidade da infrações cometidas traz prejuízos para a confiança do jurisdicionado no Poder Judiciário. Dessa forma, a penalidade de advertência, não obstante os fundamentos da decisão proferida, não parece a mais adequada à hipótese dos autos, tornando necessária a abertura de procedimento revisional para análise de uma possível adequação da sanção disciplinar à hipótese dos autos, nos termos do artigo 83, inciso I, do RICNJ.

A propósito, a jurisprudência deste Conselho Nacional de Justiça admite a instauração de revisão de processo disciplinar, quando da análise das informações prestadas pelo órgão censor local, constata-se que a sanção aplicada é inadequada ao contexto fático-probatório ventilado nos autos. Confira-se:

 

PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. CUMPRIMENTO AO DISPOSTO NO ART. 28 DA RESOLUÇÃO 135/CNJ. REVISÃO DE PROCESSO DISCIPLINAR. INSTAURAÇÃO DE OFÍCIO, SEM AFASTAMENTO CAUTELAR DO MAGISTRADO. JUIZ DE DIREITO. INDICAÇÃO DE ADVOGADO QUE ATUAVA NO ESCRITÓRIO DO PRÓPRIO FILHO. CONDUÇÃO DE POSTERIOR PROCESSO E DECISÃO EM FAVOR DA PARTE A QUEM SE INDICOU ADVOGADO. VIOLAÇÃO A IMPEDIMENTO LEGAL. PENA DE ADVERTÊNCIA. APLICAÇÃO INADEQUADA. BUSCA PELA ADEQUAÇÃO E PROPORCIONALIDADE DA PENALIDADE APLICADA. REVISÃO DISCIPLINAR INSTAURADA DE OFÍCIO.

1. A jurisprudência do Conselho Nacional de Justiça admite a instauração de revisão de processo disciplinar, quando, da análise das informações prestadas pelo órgão correcional local, constata-se que a sanção aplicada é inadequada ao contexto fático-probatório ventilado nos autos.

2. A pena de advertência deverá ser aplicada reservadamente, por escrito, no caso de negligência no cumprimento dos deveres do cargo.

3. A aplicação da pena de advertência é aparentemente insuficiente e desproporcional em relação à gravidade do fato apurado nos autos, em que o requerido indicou advogado pertencente ao escritório jurídico do qual fazia parte seu filho, despachou no processo  e deferiu pedido de liminar à sociedade empresária autora, quando manifestamente impedido.

4. Quando a conduta do magistrado indicar o descumprimento de deveres intransponíveis impostos aos magistrados e um indevido favoritismo na sua decisão, a gerar uma repercussão extremamente negativa à imagem do Poder Judiciário e uma inegável perda da confiança dos jurisdicionados na sua atuação, deve-se verificar a adequação e proporcionalidade da penalidade aplicada ao caso.

5. Conclusão pela necessidade de instauração, de ofício, da revisão de processo disciplinar, sem afastamento cautelar do magistrado, fundada no art. 83, inciso I, do RICNJ, para verificação da adequação e proporcionalidade da penalidade aplicada ao juiz requerido, nos termos dos arts. 82 e 86 do RICNJ.   

(CNJ - PP - Pedido de Providências - Corregedoria - 0002712-55.2021.2.00.0000 - Rel. LUIS FELIPE SALOMÃO - 3ª Sessão Virtual - julgado em 10/03/2023).

       

 Por derradeiro, malgrado já tenha sido aplicada a pena de censura ao requerido, como se vê do Pedido de Providências 0009681-91.2018.2.00.0000, e haja outros processos administrativos disciplinares instaurados em seu desfavor pelo TJAL, ainda sem conclusão, conforme se depreende dos Pedidos de Providências 0000026-41.2023.2.00.0802, 0000030-78.2023.2.00.0802 e 0000047-17.2023.2.00.0802, entendo não ser o caso de afastamento cautelar do magistrado ante a ausência de contemporaneidade dos fatos objeto deste procedimento.

Dessa forma, com fundamento no que dispõem os artigos 82 e 86 do RICNJ, voto pela instauração, de ofício, da revisão de processo disciplinar para verificação da necessidade de modificar a penalidade aplicada ao Juiz de Direito Luciano Américo Galvão Filho, garantidos, evidentemente, o contraditório e a ampla defesa.

É como voto.

 


Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO   

Corregedor Nacional de Justiça