Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR EM FACE DE MAGISTRADO - 0000040-74.2021.2.00.0000
Requerente: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ
Requerido: MARILIA DE CASTRO NEVES VIEIRA

 

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR  DESEMBARGADORA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. LEVANTAMENTO DE SIGILO. QUESTÃO DE ORDEM APROVADA. PREJUDICIAIS REPELIDAS. REDE SOCIAL. MANIFESTAÇÕES E COMPARTILHAMENTO DE MENSAGENS DE ÍNDOLE POLITÍCO-PARTIDÁRIA, OFENSIVAS E DEPRECIATIVAS.  POSTAGENS QUE PODEM SER INTERPRETADAS COMO PRECONCEITUOSAS E DISCRIMINATÓRIAS.  BUSCA INJUSTIFICADA E DESMENSURADA POR RECONHECIMENTO SOCIAL. INOBSERVÂNCIA DO DEVER DE MANTER CONDUTA IRREPREENSÍVEL NA VIDA PRIVADA DE MODO A DIGNIFICAR A FUNÇÃO.  VULNERAÇÃO AO ART. 35, VIII, DA LOMAN, AOS ARTS. 8º, 13, 16 E 26, DO CÓDIGO DE ÉTICA DA MAGISTRATURA E AOS ARTS. 2º, §§ 1º E 3º, E 6º, DO PROV. CNJ Nº 71/2018 (SUCEDIDOS PELO ART. 4º, II E III, DA RES. CNJ 305/2019) CARACTERIZADA. PROCEDÊNCIA DAS IMPUTAÇÕES. GRAVIDADE DA CONDUTA. PENA DE DISPONIBILIDADE.

1.      À luz da nova ordem constitucional, a publicidade dos atos processuais (na seara judicial e administrativa) constitui princípio basilar do Estado Democrático de Direito, consubstanciando regra geral, afastável apenas quando a defesa da intimidade das partes e/ou o interesse público e social o exigem (art. 5º, LX, da Carta Magna), aspecto que não se amolda à hipótese concreta dos autos, impondo-se o levantamento do sigilo. Questão de ordem aprovada.

2.      Eventual manifestação em rede social, dissonante das restrições e exigências pessoais que recaem sobre os magistrados na prática dos atos da vida privada, distintas daquelas acometidas aos cidadãos em geral, pode, em tese, consubstanciar transgressão de ordem disciplinar, o que justifica a atuação concorrente deste Conselho na correspondente averiguação (art. 103-B, § 4º, III, do Texto Magno). Arguição de incompetência material rechaçada.

3.      Regularmente deflagrado o procedimento disciplinar por deliberação colegiada, compete igualmente ao Plenário – e não ao relator, pela via monocrática – ordenar eventual o arquivamento do feito, na hipótese de não comprovação da infração funcional (artigos 12, 20, e §§, e 21, § único, da Resolução CNJ nº 135/2011, e art. 4º, inciso VI do RICNJ). Prefacial repelida.


4.      A liberdade de manifestação, tal como consagrada na Carta Constitucional (art. 5º, incisos IV e IX, da Carta Magna), não ostenta conotação absoluta, nem tampouco ilimitada, porquanto passível de submissão a certas restrições, compatíveis com os pilares do Estado Democrático de Direito, implicando deveres e responsabilidades que visam a resguardar, no caso dos integrantes da magistratura, a necessária afirmação dos postulados e demais princípios inerentes à função judicante. Precedentes do STF e deste CNJ.

5.      Na hipótese dos autos, os ataques pessoais da representada a representante de liderança política, compartilhados em rede social de largo alcance, com o intuito de descredenciá-lo perante a opinião pública, em razão de suas ideias ou ideologias, ainda mais em um cenário de polarização exacerbada, refletiram a hipótese de militância político-partidária, vedada constitucionalmente a magistrados (art. 95, parágrafo único, III, da CF/1988).

6.      Sem demonstrar qualquer preocupação com a veracidade das informações veiculadas, a requerida promoveu sucessivas manifestações desrespeitosas e desabonadoras, dirigidas inclusive a integrante do poder legislativo municipal - inclusive já falecida à época dos fatos -, a quem se atribuiu a prática de grave delito, tudo a revelar que tais postagens ostentaram potencial lesivo incalculável, apto a atingir atributos da personalidade afetos às figuras públicas ali referidas, em detrimento da imparcialidade e da credibilidade do próprio Poder Judiciário.

7.      Paralelamente, na busca injustificada e desmensurada por reconhecimento social, a magistrada não se absteve de realizar outras publicações polêmicas, as quais podem ser interpretadas como discriminatórias de grupos historicamente estigmatizados (transexuais e portadores de síndrome de down), afrontando valores ínsitos à sociedade em geral e, particularmente, à magistratura, assim como os ideais de igualdade, justiça e cidadania vertidos pela Carta Magna.

8.      Os atos praticados pela representada, na relevante condição de integrante da Corte de Justiça Estadual, distanciando-se da prudência e da cautela que deveriam nortear as suas manifestações em mídia social, ainda que de índole privada, desbordaram os limites inerentes ao exercício do livre direito de expressão do pensamento. Nesse contexto, as condutas perpetradas consubstanciaram graves faltas funcionais, as quais não merecem a complacência deste Conselho, pois violadoras dos deveres insculpidos no art. 35, VIII, da LOMAN, nos arts. 8º, 13, 16 e 26, do Código de Ética da Magistratura e nos arts. 2º, §§ 1º e 3º, e 6º, do Prov. CNJ Nº 71/2018.

9.      Sopesados o elevado grau de reprovabilidade das condutas, o potencial lesivo dali decorrente e o efeito pedagógico/dissuasório da sanção, à luz da razoabilidade e da proporcionalidade, revela-se pertinente a aplicação da disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço, pelo prazo de 90 (noventa) dias (art. 93, VIII, da Carta Magna, arts. 42, inc. IV, e 57, parágrafo 1º, da LOMAN, c.c art. 6º, da Resolução CNJ nº 135/2011). Precedente desta Casa.

10. Imputações que se julgam procedentes, de modo a aplicar, à magistrada processada, pena de disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço.

 

 

 ACÓRDÃO

O Conselho, por unanimidade, aplicou a pena de disponibilidade à magistrada e, por maioria, fixou o prazo de 90 dias. Vencidos o Presidente e os Conselheiros Daniela Madeira e Pablo Coutinho Barreto, que fixavam o prazo de 180 dias. Ausente, justificadamente, o Conselheiro João Paulo Schoucair. Ausentes, em razão da vacância dos cargos, os representantes da Ordem dos Advogados do Brasil. Presidiu o julgamento o Ministro Luís Roberto Barroso. Plenário 21 de maio de 2024. Presentes à sessão os Excelentíssimos Senhores Conselheiros Luís Roberto Barroso, Luis Felipe Salomão, Caputo Bastos, José Rotondano, Mônica Autran Machado Nobre, Alexandre Teixeira, Renata Gil, Daniela Madeira, Guilherme Feliciano, Pablo Coutinho Barreto, Daiane Nogueira de Lira e Luiz Fernando Bandeira de Mello. Sustentaram oralmente: o Subprocurador-Geral da República José Adonis Callou de Araújo Sá; e, pela Requerida, a Advogada Samara de Oliveira Santos Léda - OAB/DF 23.867.

Conselho Nacional de Justiça

Autos: PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR EM FACE DE MAGISTRADO - 0000040-74.2021.2.00.0000
Requerente: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ
Requerido: MARILIA DE CASTRO NEVES VIEIRA


RELATÓRIO

 

O SENHOR CONSELHEIRO ALEXANDRE TEIXEIRA (RELATOR):

Trata-se de Processo Administrativo Disciplinar instaurado na 322ª Sessão Ordinária (24 de novembro de 2020), no julgamento da Reclamação Disciplinar nº 0000273-42.2019.2.00.0000 (que reuniu outros seis expedientes disciplinares), contra a Desembargadora MARÍLIA DE CASTRO NEVES VIEIRA, magistrada vinculada o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), sem afastamento das funções, diante de elementos indicativos de que teria afrontado, em tese, o comando extraído do art. 35, VIII, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, dos arts. 8º, 13, 16 e 26, do Código de Ética da Magistratura, e dos arts. 2º, §§ 1º e 3º, e 6º, do Provimento CNJ nº 71/2018, sucedidos pelo art. 4º, incisos II e III, da Resolução CNJ nº 305/2019, nos exatos termos da Portaria nº 13, de 18 de dezembro de 2020 (ids 4220112, 4220104 e 4220099).

Nos termos da portaria instauradora, a representada, ao veicular postagens na rede social "Facebook" (perfil “Marília Castro Neves”), deixou de manter conduta irrepreensível na vida pública e particular, bem assim deixou de comportar-se na vida privada de modo a dignificar a função, cônscia de que o exercício da atividade jurisdicional impõe restrições e exigências pessoais distintas das acometidas aos cidadãos em geral, adotando comportamento que pode refletir preconceito, além implicar a busca injustificada e desmensurada por reconhecimento social (id 4220099).

Ainda nos termos da portaria inaugural, a processada teria deixado de manter atitude aberta e paciente para receber argumentos ou críticas lançados de forma cortês e respeitosa, exercido atividade político-partidária, mediante a "participação em situações que evidenciem apoio público a candidato ou a partido político" e a prática de "ataques pessoais a candidato, liderança política ou partido político com a finalidade de descredenciá-los perante a opinião pública, em razão de idéias ou ideologias de que discorde o magistrado", bem assim deixado de "evitar, em redes sociais, publicações que possam ser interpretadas como discriminatórias de raça, gênero, condição física, orientação sexual, religiosa e de outros valores ou direitos protegidos ou que comprometam os ideais defendidos pela CF/88" (id 4220099).

Em 07 de janeiro de 2021, os presentes autos foram distribuídos por sorteio à relatoria da Eminente Conselheira Flávia Moreira Guimarães Pessoa. Na ocasião, atribuiu-se sigilo aos presentes autos, na forma da certidão de id 4221347, lavrada em 08 de janeiro de 2021, em virtude da tramitação sigilosa da reclamação disciplinar da qual se desdobrou este feito. 

A teor do despacho exarado em 08 de janeiro de 2021, a relatora de sorteio determinou a intimação primeira do Parquet, no intuito de que se manifestasse em 10 (dez) dias, na forma do art. 16, da Resolução CNJ nº 135/2021 (id 4221749).

Sobreveio a manifestação do Ministério Público Federal em 03 de fevereiro de 2021, com a solicitação de expedição de ofício à Exma. Sra. Ministra Laurita Vaz, para fins de compartilhamento da Ação Penal nº 912/RJ, em trâmite no Superior Tribunal de Justiça, com a remessa de cópia integral digitalizada dos respectivos autos (ids 4245370 e 4245371).

Aos 05 de fevereiro de 2021, a relatora, à época,  Eminente Conselheira Flávia Moreira Guimarães Pessoa, acatou a solicitação do MPF, deliberando pela expedição de ofício ao STJ, solicitando o compartilhamento integral, em meio digital, dos autos da Ação Penal nº 912 (id 4249139).

Expedido ofício ao STJ aos 10 de fevereiro de 2021 (Ofício nº 62/2021/GP), por intermédio do então Exmo. Sr. Presidente deste Conselho, Ministro Luiz Fux, no bojo do procedimento SEI/CNJ 1032967, conforme registrado nos expedientes de ids 4257267 a 4257270, com a solicitação de compartilhamento dos autos da ação penal em referência.

O compartilhamento das peças extraídas da Ação Penal nº 912 restou deferido pela  Relatora, Exma. Sra. Ministra Laurita Vaz, consoante dá conta a certidão de id 4353654, agregando-se aos autos os respectivos traslados em 11 de maio de 2021 (id 4353736, id 4353737 e ids 4356361 até 4356426).

Em 14 de maio de 2021, a então relatora ordenou a intimação do Parquet para ciência da documentação encartada aos autos e oportuna manifestação, no prazo de 05 (cinco) dias, a teor do disposto no já citado art. 16, da Resolução CNJ nº 135/2011 (id 4357530).

Novas exposições da Vice-Procuradoria-Geral da República, datadas de 20 de maio de 2021, acusando ciência quanto ao compartilhamento das peças extraídas da Ação Penal nº 912, bem assim informando que não havia interesse na realização de novas diligências probatórias (id 4363733).

Em 24 de maio de 2021, determinou-se a citação da magistrada processada, para que, no prazo de 05 (cinco) dias, apresentasse as razões de defesa, bem assim especificasse as provas que entendesse necessárias (art. 17, da Resolução CNJ nº 135/2011). Deliberou-se, ainda, pelo envio à requerida de cópia do acórdão que instaurou o presente feito, bem como da respectiva portaria (id 4366649).

Por ocasião da 87ª Sessão Virtual, finalizada em 28 de maio de 2021, o Plenário deste Conselho, à unanimidade, prorrogou o prazo para conclusão do presente procedimento por novo lapso de 140 (cento e quarenta) dias, a partir de 25 de maio de 2021 (ids 4373668 e 4373736).

Carta de Ordem Citatória nº 182/2021-SPR expedida em 31 de maio de 2021 (id 4367793).

Defesa apresentada aos 21 de junho de 2021, por meio da qual, em linhas gerais, a imputada ofertou os seguintes argumentos: i) Houve retratação quanto à publicação referente ao caso de Marielle Franco (lastreada em "fake news"), levando à extinção de punibilidade na Ação Penal STJ nº 912 - RJ;  ii) Eventual crítica ou posicionamento lançado em rede social foi realizado pela cidadã comum, em grupo restrito de amigos da rede social, tratando-se de contexto alheio à atividade judicante, sem qualquer conotação político-partidária; iii) O Provimento CNJ nº 71/2018, à época dos fatos, não se encontrava vigente e, portanto, não poderia servir de supedâneo para eventual responsabilização da magistrada na esfera administrativa. Protestou pela produção de todas as provas admitidas em direito, abarcando especialmente a oitiva de testemunhas, o interrogatório da ora requerida, a juntada de documentos e a realização de perícias e inspeções. Em caráter sucessivo, no tocante à aplicação de eventual penalidade, sustentou que devem observadas a razoabilidade e a proporcionalidade. Com tais razões, defendeu o "não conhecimento" do presente procedimento, em virtude da "incompetência" deste Conselho "ou de qualquer outro órgão correcional das atividades da magistratura nacional, por não haver previsão constitucional, legal, regimental, para apurar as condutas da vida privada da magistrada". Quanto ao mérito, aventou a manifesta improcedência das imputações, porquanto não caracterizada qualquer transgressão disciplinar, impondo-se, no seu entender, o arquivamento sumário da presente medida (ids 4397728 a 4397729).

Em 24 de junho de 2021, a então relatora ordenou à requerida que indicasse o rol de testemunhas, assim como as provas periciais ou documentais que pretendia produzir, tudo no prazo de 05 (cinco) dias (id 4401199).

Em 02 de agosto de 2021 a acusada apresentou rol de testemunhas e as respectivas qualificações (ids 4435969 e 4435970).

Decisão saneadora de 20 de agosto de 2021, à luz do art. 18, e parágrafos, da Resolução CNJ nº 135/2011, deferindo a produção de prova testemunhal requerida pela magistrada processada (id 4454033).

Delegou-se a inquirição das testemunhas e o interrogatório da requerida a Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, 

Aos 11 de janeiro de 2022, a então relatora, Eminente Conselheira Flávia Moreira Guimarães Pessoa, determinou a intimação sucessiva do MPF, na pessoa do Procurador-Geral da República, e da magistrada imputada, para apresentação das alegações finais, na forma do art. 19, da Resolução CNJ nº 135/2011 (id 4584030).

Por meio da manifestação exarada em 02 de fevereiro de 2022, o Parquet noticiou que, a par de não constar nos autos a intimação do Procurador-Geral da República para os atos instrutórios, as informações encaminhadas pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região e os arquivos contendo os depoimentos colhidos não se encontravam disponíveis para consulta no Sistema PJe pelo Órgão Ministerial. Nesse passo, o MPF solicitou a liberação de acesso aos arquivos digitalizados e aos demais elementos produzidos eventualmente gravados sob sigilo, além da renovação da vista e da reabertura do prazo para manifestação (id 4602542).

Em 07 de março de 2022, a requerida apresentou suas razões finais reverberando a inexistência de violação de dever funcional. Salientou que deve prevalecer a conclusão outrora adotada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no sentido de que as manifestações da requerida não refletiram excesso ou desrespeito à ética da magistratura. Reiterou as exposições defensivas de que ofertou retratação quanto à manifestação envolvendo a Vereadora Marielle Franco, embasada em fake news (objeto da Ação Penal nº 912/STJ), o que teria resultado na declaração de extinção de punibilidade da ora representada. Replicou que eventual crítica ou posicionamento lançado em rede social derivou do simples exercício do direito à livre manifestação de pensamento, na condição de cidadã comum, em grupo restrito a amigos do Facebook e, portanto, sem qualquer ligação à função judicante. Alinhavou que “não houve intenção de influenciar a formação de opinião das pessoas próximas que fazem parte de sua rede social, mas acabou por ser pega, por assim dizer, como bode expiatório”. Observou que o Provimento CNJ nº 71/2018, foi editado em 14 de junho de 2018, ou seja, posteriormente aos fatos averiguados, inviabilizando a imposição de qualquer sanção administrativa alicerçada em aludido ato normativo. Sucessivamente, quanto à dosimetria da pena, clamou pela aplicação da razoabilidade e da proporcionalidade, na eventual hipótese de responsabilização da ora defendente. Pugnou, ao final, pelo arquivamento do feito, bem assim pela concessão de nova vista, após o pronunciamento do MPF (id 4635687).

O presente processo administrativo disciplinar foi redistribuído por sorteio, em 04 de abril de 2022, à relatoria do Eminente Conselheiro Sidney Pessoa Madruga, em virtude da vacância do cargo ocupado pela relatora originária.

No dia 29 de julho de 2022, o novo relator sorteado, já suso nominado, deliberou pela intimação do MPF, para ciência e acesso aos documentos correspondentes à oitiva das testemunhas e ao interrogatório da imputada, fixando o prazo de 10 (dez) dias para manifestação derradeira (id 4796780).

Razões finais oferecidas pela Subprocuradoria-Geral da República aos 24 de agosto de 2022, no sentido de que as condutas atribuídas à magistrada na portaria inaugural estariam inseridas no contexto do seu direito constitucionalmente assegurado (livre manifestação e crítica), ainda que tenha se afastado da elegância esperada de um integrante do Poder Judiciário. Sob tal enfoque, o MPF reputou inexistente materialidade suficiente a caracterizar a violação dos deveres próprios da magistratura e, por fim, opinou pela improcedência das imputações, com consequente arquivamento deste feito (id 4839451).

Aos 13 de setembro de 2022, no intuito de conferir efetividade aos princípios do contraditório e da ampla defesa, o então relator, Eminente Conselheiro Sidney Pessoa Madruga, ordenou a intimação da representada para que se manifestasse sobre as alegações finais do MPF ou complementasse as apresentadas anteriormente, se o desejasse (id 4863832).

Ato contínuo, sobreveio a manifestação da requerida, datada de 05 de outubro de 2022, reiterando o teor das exposições finais e o pedido de arquivamento do feito (id 4891624).

Na 116ª Sessão Virtual, encerrada em 01 de dezembro de 2022, o Plenário deliberou, por unanimidade, pela prorrogação retroativa e sucessiva do prazo para conclusão do presente feito disciplinar, à luz do art. 14, § 9º, da Resolução CNJ nº 135/2011, no intuito de que fossem ultimados os demais atos processuais necessários ao oportuno julgamento do feito (ids 4960007 e 4962972).

Em 18 de setembro de 2023, os presentes autos foram redistribuídos por sorteio à relatoria da Conselheira Jane Granzoto, em razão da vacância do cargo outrora ocupado pelo então Conselheiro Sidney Pessoa Madruga.

Na 14ª Sessão Virtual de 2023, finalizada em 27 de setembro de 2023, o Colegiado decidiu: i) prorrogar o prazo para conclusão deste feito, por 02 (dois) novos períodos consecutivos de 140 (cento e quarenta) dias, sendo o primeiro correspondente ao lapso de 25/04/2023 até 11/09/2023; e o segundo com início a partir de 12 de setembro de 2023, sem afastamento cautelar da representada; ii) convalidar os atos processuais outrora praticados após o primeiro período de 140 (cento e quarenta) dias, contado da instauração deste PAD, consideradas todas as prorrogações retroativas e sucessivas já concretizadas ao longo do processado (ids 5304362 e 5308178).

Em despacho de 10 de outubro de 2023, admitiu-se no feito a ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS (AMB), na qualidade de terceira interessada, registrando-se que a entidade em questão receberia o procedimento no estado em que se encontrava, na forma do art. 119, do CPC (id 5318510).

Na 18ª Sessão Virtual (entre 07/12/2023 e 15/12/2023), diante da iminente superveniência do recesso e da suspensão dos prazos e das sessões de julgamento, o Plenário decidiu antecipadamente pela prorrogação do prazo para conclusão do presente processo administrativo disciplinar, por novo lapso de 140 (cento e quarenta) dias, a partir de 30 de janeiro de 2024, sem afastamento da magistrada requerida das respectivas funções, para o fim de ultimar o oportuno julgamento pelo Colegiado (ids 5396448 e 5396671).

Assumi a relatoria do feito em 5 de março de 2024. 

É o relatório.  

Brasília, data registrada no sistema.

 

Conselheiro ALEXANDRE TEIXEIRA

Relator


GCAT/2

 

 

 

Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR EM FACE DE MAGISTRADO - 0000040-74.2021.2.00.0000
Requerente: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ
Requerido: MARILIA DE CASTRO NEVES VIEIRA

 

VOTO


O EXCELENTÍSSIMO SENHOR CONSELHEIRO ALEXANDRE TEIXEIRA (RELATOR):


Conforme já registrado no relatório, o presente Processo Administrativo Disciplinar foi instaurado por este Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por ocasião da 322ª Sessão Ordinária (24 de novembro de 2020), no julgamento da Reclamação Disciplinar nº 0000273-42.2019.2.00.0000, em desfavor da Exma. Sra. Desembargadora MARÍLIA DE CASTRO NEVES VIEIRA, magistrada vinculada ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), sem afastamento das funções, diante de elementos indicativos de que teria violado, em tese, o teor do art. 35, VIII, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, dos arts. 8º, 13, 16 e 26, do Código de Ética da Magistratura, e dos arts. 2º, parágrafos 1º e 3º, e 6º, do Provimento CNJ nº 71/2018, sucedidos pelo art. 4º, incisos II e III, da Resolução CNJ nº 305/2019, nos exatos termos da Portaria nº 13, de 18 de dezembro de 2020 (ids 4220112, 4220104 e 4220099).

Por sua vez, a Reclamação Disciplinar nº 0000273-42.2019.2.00.0000 reunia outros 06 (seis) procedimentos deflagrados na esfera da Corregedoria Nacional de Justiça - Reclamações Disciplinares 0001797-11.2018.2.00.0000, 0001650- 82.2018.2.00.0000, 0001608-33.2018.2.00.0000, 0001605-78.2018.2.00.0000, 0001646-45.2018.2.00.0000 e 0000296-85.2019.2.00.0000 – (ids 4220344 e 4220343), enfocando as seguintes condutas imputadas à desembargadora representada:

i)               A Reclamação Disciplinar nº 0001797-11.2018.2.00.0000 foi apresentada por JEAN WILLYS DE MATOS SANTOS, diante das exposições da magistrada em rede social (Facebook), incentivando, em tese, a prática de homicídio, com apologia ao crime, para além da suposta prática de injúria em relação ao denunciante;

 i)             A Reclamação Disciplinar nº 0001650-82.2018.2.00.0000 foi proposta por WADIH NEMER DAMOUS FILHO e ERIKA JUCA KOKAY, denunciando a utilização de mídias sociais pela requerida em detrimento dos preceitos éticos estabelecidos aos magistrados;

iii)           A Reclamação Disciplinar nº 0001608-33.2018.2.00.0000 foi apresentada pelo DIRETÓRIO MUNICIPAL DO PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE – PSOL/RJ, EDMILSON BRITO RODRIGUES, GLAUVER DE MEDEIROS BRAGA, IVAN VALENTE, JEAN WYLLYS DE MATOS SANTOS e LUIZA ERUNDINA DE SOUSA, atribuindo às manifestações da requerida no Facebook, relativas à Vereadora Marielle Franco, a conotação de “falsas e criminosas”;


iv)           A Reclamação Disciplinar nº 0001605-78.2018.2.00.0000 foi proposta por CAROLINE PRONER, no bojo da qual a requerente questionou as manifestações da magistrada em rede social (Facebook), diante do conteúdo supostamente misógino, envolvendo inclusive a ofensa à honra e a dignidade da vereadora já suso mencionada (id 4220336, pág. 4);

v) A Reclamação Disciplinar nº 0001646-45.2018.2.00.0000 foi ofertada pelo INSTITUTO SER DE DIREITOS HUMANOS E DA NATUREZA, com objeto comum àquele veiculado nas Reclamações Disciplinares nº´s 0001650-82.2018.2.00.0000, 0001608-33.2018.2.00.0000 e 0001605-78.2018.2.00.0000, por força das manifestações da requerida no Facebook, cujo conteúdo, divulgado sem qualquer lastro probatório, em tese, revelou-se aviltante à dignidade e à honra da Vereadora Marielle Franco, vítima de homicídio no Rio de Janeiro (id 4220346, pág. 1/2 e id 4220336, pág. 5).

vi) A Reclamação Disciplinar nº 0000296-85.2019.2.00.0000 foi proposta pelo Ilmo. Sr. GUILHERME CASTRO BOULOS, recaindo sobre a desembargadora imputada a acusação de que, entre outras postagens tidas por ofensivas, teria publicado em sua página pessoal (Facebook), em 16 de janeiro de 2019, a imagem do requerente, seguida da seguinte frase: “A tristeza no olhar de quem vai ser recebido na bala depois do decreto do Bolsonaro”. A publicação teria sido realizada no contexto em que a mídia nacional repercutia um decreto que regulamenta a posse de arma de fogo no Brasil, incitando atos de violência em face do denunciante (id 4220359 e 4220360).

Cabe esclarecer, ainda, que a Reclamação Disciplinar nº 0000273-42.2019.2.00.0000 havia sido instaurada de ofício pelo Órgão Censor Nacional, consoante se depreende das deliberações datadas de 18 de janeiro de 2019, 15 de março de 2019 e 03 de agosto de 2020, exaradas pelo então Corregedor Nacional de Justiça em exercício, Exmo. Sr. Ministro Aloysio Corrêa da Veiga, bem assim pelo Corregedor Nacional de Justiça, à época, Exmo. Sr. Ministro Humberto Eustáquio Soares Martins. Na ocasião, a Corregedoria Nacional de Justiça foi cientificada por comunicações eletrônicas e notícias jornalísticas de que a magistrada representada teria incorrido em conduta vedada pela Constituição da República, pela LOMAN, pelo Código de Ética da Magistratura e pelo Provimento CNJ nº 71/2018, ao expressar, em suas mídias pessoais, postagens de opiniões pessoais de cunho ofensivo, envolvendo este próprio Conselho, o caso da Vereadora Marielle Franco, o Senador Renan Calheiros e o Sr. Guilherme Castro Boulos, entre outros cidadãos, instituições e fatos (id 4220380, id 4220372 e id 4220343).

De outro lado, consoante informações ofertadas pela desembargadora representada naqueles expedientes embrionários, todos reunidos para julgamento conjunto na Reclamação Disciplinar nº 0000273-42.2019.2.00.0000  (id 4220367, id 4220353 e id 4220336), longe de configurar quaisquer “ataques”, as postagens refletiriam meras críticas ao socialismo de um modo geral e aos partidos de extrema esquerda (como o PT, o PSOL e o PCdoB), sem destinatário específico, tanto que algumas realizadas por intermédio de “meme” (ferramenta produzia por terceiros e comumente utilizada por inúmeros sites). Defendeu que as publicações não denotariam atividade político-partidária e/ou participação em movimentos análogos, nem tampouco afrontariam a Carta Magna e/ou a LOMAN, de modo a caracterizar qualquer falta funcional.

Relativamente ao CNJ e ao CNMP, a magistrada deduziu que tão somente teria enaltecido seu posicionamento crítico (doutrinário e ético), contrário à criação, à existência e à forma de composição dos Órgãos de controle externo do Poder Judiciário e do Ministério Público.

Quanto à Vereadora Marielle Franco, deduziu que se cuidou de simples comentário externado em discussão de grupo privado, vinculado à página de um magistrado aposentado, ocasião em que outros interlocutores ali se manifestarem no mesmo sentido da imputada. Salientou que a rede social no Facebook é fechada e da referida mídia somente participariam integrantes do respectivo círculo de amigos. Afirmou que a postagem sobre o então Deputado Federal Jean Wyllys de Matos Santos estava inserida em uma conversa postada há vários anos com amigos, alinhada à situação em que se encontrava o Estado do Rio de Janeiro, com políticos investigados e presos por corrupção, não se revestindo da conotação que lhe foi atribuída pelo denunciante, ou seja, inexistindo qualquer incitação à violência.

Em relação à professora com Síndrome de Down, alega que a postagem não retrataria qualquer preconceito, mas apenas denotou a surpresa com o ineditismo do caso. Em síntese, sinalou que as publicações em nenhum momento constituíram críticas desmerecedoras a qualquer grupo minoritário, ponderando que os denunciantes atribuíram o sentido de “discurso de ódio” ao simples posicionamento adotado pela requerida, na linha de que todos são iguais independentemente do credo religioso, cor da pele, sexo ou orientação sexual.

Note-se, ainda, que, inicialmente, a apuração foi delegada pela Corregedoria Nacional de Justiça ao Tribunal de Justiça do Estado Rio de Janeiro, conforme deliberação proferida na Reclamação Disciplinar nº 0001650-82.2018.2.00.0000, desaguando na instauração do Procedimento Administrativo de Investigação Preliminar nº 0072097-32.2019.8.19.0000 junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

Por conta disso, em decisão de 29 de abril de 2019, o então Corregedor Nacional de Justiça, Exmo. Sr. Ministro Humberto Eustáquio Soares Martins, assentou que, no âmbito deste Conselho, estavam em cursos ao menos outros 07 (sete) expedientes envolvendo a requerida, alguns dos quais mantidos sobrestados, aguardando a apuração dos fatos pela Corte Local, conforme determinado na supracitada Reclamação Disciplinar nº 0001650- 82.2018.2.00.0000. Nesse contexto, ordenou o sobrestamento da reclamação disciplinar da qual derivou este PAD, por 60 (sessenta) dias, no intuito de aguardar o desfecho da apuração pela Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (id 4220365).

Na sequência, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro encaminhou à Corregedoria Nacional de Justiça o resultado da apuração local envolvendo as medidas disciplinares conexas já acima identificadas, noticiando a conclusão adotada pelo Órgão Especial, no sentido de que as condutas perpetradas pela Exma. Desembargadora Marília de Castro Neves Vieira não configuraram infração disciplinar, levando ao arquivamento do expediente prévio ali instaurado sob nº 0072097-32.2019.8.19.0000 (ids 4220351, 4220352 e 4220353).

A despeito do decidido pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em decisão de 03 de agosto de 2020, o Corregedor Nacional de Justiça, à época, Exmo. Sr. Ministro Humberto Eustáquio Soares Martins, houve por determinar a intimação da magistrada para apresentação de defesa prévia em todos os procedimentos acima elencados. Consignou que as conclusões do TJRJ no tocante à investigação anteriormente determinada não vinculava este Conselho Nacional de Justiça, porquanto delegada àquela Corte Estadual a simples apuração dos fatos, de modo que as asserções ali externadas não ostentariam caráter definitivo (id 4220343).

Dessa forma, vieram aos autos novas exposições da desembargadora representada em 24 de agosto de 2020, por meio das quais conclamou pelo arquivamento dos mencionados expedientes disciplinares, na forma do art. 68, do RICNJ (id 4220336).

Concluindo este resgate histórico, no julgamento da citada Reclamação Disciplinar nº 0000273-42.2019.2.00.0000  (bem assim das outras seis medidas ali apensadas), que esteve sobrestada aguardando o desfecho da averiguação realizada pela Corte Local, o Plenário desta Casa repeliu as ponderações defensivas, assentando que a decisão de arquivamento emanada do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro revelou-se contrária ao ordenamento jurídico quanto a determinadas imputações (art. 83, I, do RICNJ). Sobreveio, assim, nos termos do voto condutor apresentado pela Corregedora Nacional de Justiça, à época, Exma. Sra. Ministra Maria Thereza Rocha de Assis Moura, o v. acórdão que ordenou a instauração deste PAD (id 4220104), assim ementado:

 

RECLAMAÇÃO DISCIPLINAR. INFRAÇÃO DISCIPLINAR IMPUTADA A JUIZ DESEMBARGADORA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. MANIFESTAÇÕES EM REDE SOCIAL. EXERCÍCIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO POR MAGISTRADOS.  

1 Revisão do arquivamento de questão disciplinar, determinado pelo Colegiado do Tribunal (art. 103-B, § 4º, V, da CF). Contrariedade de parte da decisão ao ordenamento jurídico (art. 83, I, do RICNJ). Inexistência de necessidade de produção de provas para deliberação sobre a abertura de processo administrativo disciplinar. Oportunidade de manifestação perante o CNJ devidamente observada. Processo suficientemente maduro para que, desde logo, o CNJ decida entre a manutenção da decisão da origem ou a abertura de processo administrativo disciplinar, cumulando as fases do art. 86 e 88 do RICNJ. 

2 Direito à liberdade de expressão. Os magistrados gozam de direito à liberdade de expressão, assegurado pela Constituição da República (art. 5º, IV), pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (artigo 19) e pelo Pacto de San José da Costa Rica (artigo 13). No entanto, essa liberdade não é absoluta. A liberdade de expressão pode ser restringida por normas que buscam a concretização de princípios de mesmo status consagrados pelo ordenamento jurídico e que estejam em conformidade com os fins da magistratura em uma sociedade democrática. No caso dos membros da magistratura, um regime peculiar de restrições se justifica em razão da posição de, aplicando o direito, resolver conflitos.  

3 Há um conjunto de normas que limitam a liberdade de expressão dos magistrados. A Constituição da República a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, e as normas do Conselho Nacional de Justiça – Código de Ética da Magistratura Nacional, Provimento n. 71/2017 e Resolução n. 305/2019 – definem e aclaram os limites à liberdade de expressão. 

4 Manifestações de apoio ou de desaprovação a correntes político-partidárias. Art. 2º, §§ 1º e 3º, do Provimento n. 71/2018, sucedidos pelo art. 4º, II, da Resolução n. 305/2019 do CNJ. Em 11/12/2018, o CNJ arquivou uma série de reclamações disciplinares fundadas no Provimento n. 71/2018, ao entendimento de que o diploma era então “muito recente”. A restrição à liberdade de expressão ainda estaria em estágio de entronização pela cultura institucional, pelo que o Conselho preferiu não adotar punições. Entretanto, recomendou a “devida observância” da norma, “a fim de evitar a instauração de futuros pedidos de providências que resultem na adoção de medidas mais enérgicas por parte desta Corregedoria Nacional de Justiça” (CNJ - PP - Pedidos de Providências - Corregedoria - 0009542-42.2018.2.00.0000, 0009118-97.2018.2.00.0000, 0009116-30.2018.2.00.0000, 0009287-84.2018.2.00.0000, 0009119-82.2018.2.00.0000, 0009117-15.2018.2.00.0000, 0009071-26.2018.2.00.0000, 0009184-77.2018.2.00.0000, 0009252-27.2018.2.00.0000, 0009120-67.2018.2.00.0000, 0009321-59.2018.2.00.0000 e 0008542-07.2018.2.00.0000 - Rel. HUMBERTO MARTINS - 283ª Sessão Ordinária, julgados em 11/12/2018)”. Seguindo a linha jurisprudência estabelecida, este Conselho deve conter o impulso de apurar a responsabilidade disciplinar sobre as manifestações de apoio ou desaprovação a candidatos a cargos políticos realizadas até 11/12/2018.  

4.1 Postagens de cunho político-partidário realizadas até 11/12/2018. Ofensas ao então Deputado Federal Jean Wyllys de Matos Santos. Manifestações de aprovação ou desaprovação a líderes políticos. Manutenção do arquivamento. 

4.2 Postagens de cunho político-partidário realizadas após 11/12/2018. Ofensas ao candidato à Presidência da República Guilherme Castro Boulos. Instauração do processo administrativo disciplinar.

5 Críticas ao Conselho Nacional de Justiça e a seus membros. A legislação limita a liberdade de crítica aos membros Poder Judiciário apenas quanto a decisões judiciais e, ainda assim, com ressalvas (art. 36, III, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional). O direito de crítica à própria instituição é uma ferramenta importante para a fiscalização e o aperfeiçoamento institucional. Ainda que áspera e descortês, a crítica aos membros deste Conselho deve ser vista como parte da liberdade e expressão. Manutenção do arquivamento.

6 Mensagens com conteúdo discriminatório. Art. 6º do Provimento n. 71/2018, sucedido pelo art. 4º, III, da Resolução n. 305/2019 do CNJ É “dever de um juiz não apenas reconhecer e estar familiarizado com a diversidade cultural, racial e religiosa na sociedade, mas também estar livre de parcialidade ou preconceito baseado em razões irrelevantes” (Nações Unidas (ONU). Escritório Contra Drogas e Crime (Unodc). Comentários aos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial / Escritório Contra Drogas e Crime; tradução de Marlon da Silva Malha, Ariane Emílio Kloth. – Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2008. § 186).

6.1 Mensagens sobre o assassinato de Marielle Franco. Mensagens que parecem valorar a vida da vítima de acordo com suas posições na arena política e colocar o compromisso da Justiça com a apuração e resposta imparcial e proporcional ao fato criminoso em segundo plano. Abertura de processo administrativo disciplinar.

6.2 Mensagens discriminatórias a transexuais. A disputa por direitos dos transexuais é um tema recorrente no Poder Judiciário. A magistrada parece adiantar um posicionamento preconceituoso e indisposto a ouvir as demandas da minoria. Abertura de processo administrativo disciplinar.

6.3 Mensagens discriminatórias a pessoas com deficiência. A magistrada parece expressar posicionamento discriminatório em relação a pessoas com deficiência. Abertura de processo administrativo disciplinar.

6.4 Mensagens sobre o feminismo. Mensagem que, a despeito de aparentemente inadequada, não parece ter suficiente relevância para recomendar ação disciplinar. Arquivamento da representação.

7 Estão presentes indícios de que a magistrada reclamada deixou de manter conduta irrepreensível na vida pública e particular (art. 35, VIII, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional), adotou comportamento que pode refletir preconceito (art. 8º do Código de Ética da Magistratura Nacional), adotou comportamento que implica a busca injustificada e desmesurada por reconhecimento social (art. 13 do Código de Ética da Magistratura Nacional), deixou de comportar-se na vida privada de modo a dignificar a função, cônscia de que o exercício da atividade jurisdicional impõe restrições e exigências pessoais distintas das acometidas aos cidadãos em geral (art. 16 do Código de Ética da Magistratura Nacional) e deixou de manter atitude aberta e paciente para receber argumentos ou críticas lançados de forma cortês e respeitosa (art. 26 do Código de Ética da Magistratura Nacional), exerceu atividade político-partidária, mediante “a participação em situações que evidenciem apoio público a candidato ou a partido político” e a prática de “ataques pessoais a candidato, liderança política ou partido político com a finalidade de descredenciá-los perante a opinião pública, em razão de ideias ou ideologias de que discorde o magistrado” (art. 2º, §§ 1º e 3º, do Provimento n. 71/2018, sucedidos pelo art. 4º, II, da Resolução n. 305/2019 do CNJ), deixou de “evitar, em redes sociais, publicações que possam ser interpretadas como discriminatórias de raça, gênero, condição física, orientação sexual, religiosa e de outros valores ou direitos protegidos ou que comprometam os ideais defendidos pela CF/88” (art. 6º do Provimento n. 71/2018, sucedido pelo art. 4º, III, da Resolução n. 305/2019 do CNJ) ao veicular postagens na rede social Facebook. 

8 Revisão parcial da decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro no Procedimento Administrativo n. 0072097-32.2019.8.19.0000, em 19/12/2019, para determinar a instauração de Processo Administrativo Disciplinar em desfavor de Desembargadora, sem afastamento cautelar das funções jurisdicionais e administrativas, a ser distribuído a um dos membros do Conselho Nacional de Justiça. 

 

Por força da aludida decisão plenária, a DD. Presidência desta Casa editou a Portaria nº 13, aos 18 de dezembro de 2020, formalizando a instauração do presente feito para fins de aferição de eventual transgressão disciplinar, a teor dos seguintes fatos atribuídos à Exma. Sra. Desembargadora MARÍLIA CASTRO NEVES (id 4220099):

 

“(...)

 

Art. 1º Instaurar, sem afastamento do cargo de magistrado, processo administrativo disciplinar em desfavor de MARÍLIA CASTRO NEVES, Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), pela presença de indícios de que a magistrada deixou de manter conduta irrepreensível na vida pública e particular (art. 35, VIII, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional), adotou comportamento que pode refletir preconceito (art. 8º do Código de Ética da Magistratura Nacional), adotou comportamento que implica a busca injustificada e desmesurada por reconhecimento social (art. 13 do Código de Ética da Magistratura Nacional), deixou de comportar-se na vida privada de modo a dignificar a função, cônscia de que o exercício da atividade jurisdicional impõe restrições e exigências pessoais distintas das acometidas aos cidadãos em geral (art. 16 do Código de Ética da Magistratura Nacional) e deixou de manter atitude aberta e paciente para receber argumentos ou críticas lançados de forma cortês e respeitosa (art. 26 do Código de Ética da Magistratura Nacional), exerceu atividade político-partidária, mediante "a participação em situações que evidenciem apoio público a candidato ou a partido político" e a prática de "ataques pessoais a candidato, liderança política ou partido político com a finalidade de descredenciá-los perante a opinião pública, em razão de ideias ou ideologias de que discorde o magistrado" (art. 2º, §§ 1º e 3º, do Provimento nº 71/2018, sucedidos pelo art. 4º, II, da Resolução CNJ nº 305/2019), deixou de "evitar, em redes sociais, publicações que possam ser interpretadas como discriminatórias de raça, gênero, condição física, orientação sexual, religiosa e de outros valores ou direitos protegidos ou que comprometam os ideais defendidos pela CF/88" (art. 6º do Provimento nº 71/2018, sucedido pelo art. 4º, III, da Resolução CNJ nº 305/2019), ao veicular as seguintes postagens na rede social Facebook, pelo perfil Marília Castro Neves:

 

a)      Em 16/1/2019

 

“A TRISTEZA NO OLHAR DE QUEM vai ser recebido na bala, depois do decreto do Bolsonaro”

 

b) Em 17/1/2019:

 

“É esse o risco que o Boulos e o Stédile e quem mais pretender invadir propriedades correrão daqui por diante. Isso não é uma ameaça nem 'incitação à homicídio' (sic), o que está no vídeo é o exercício do direito à legítima defesa de sua propriedade! Algum 'jurista' 'especialista' do PSOL poderia tentar explicar o óbvio ao moçoilo indignado...”

 

c) Em 17/1/2019:

 

“Boulos ameaça invadir a casa do Presidente Bolsonaro e, quando confrontado com o vídeo, se desculpa dizendo que 'usou ironia'. Mas quando ele é o alvo de zoeira ele se diz ameaçado.”

 

d) Em 17/1/2019:

 

“Como facilmente de conclui (sic), o que Boulos pretende ao me acusar de 'incitar seu homicídio' é apenas promoção, que de outra forma não consegue.”

 

e) Em 17/1/2019:

 

“Na opinião de Reinaldo Azevedo — e na da maioria da população — Boulos é o chefe de uma facção terrorista. E está, mesmo, muito próximo de oficializar essa condição, uma vez que o Presidente Bolsonaro já se manifestou nesse sentido, assim como o Vice-Presidente, Gen. Mourão e o Secretário de Segurança Pública, Gen. Santos Cruz.

 

Para que o Brasil volte a ser um país sério e seguro, é preciso que Boulos e Stédiles sejam neutralizados e tenham suas condutas reconhecidas pelo que realmente são: criminosas!!!!”

 

f) Em data não especificada:

 

Estou tão feliz com o novo governo que não tem Boulos nem CNJ que me aborreçam!!! Se esse é o preço a pagar por um Brasil Novo, decente, eu o pago de bom grado!!!

 

g) Em resposta a post de Paulo Nader, datado de 16/3:

 

“A questão é que a tal Marielle não era apenas uma "lutadora", ela estava engajada com bandidos! Foi eleita pelo Comando Vermelho e descumpriu 'compromissos' assumidos com seus apoiadores. Ela, mais do que qualquer outra pessoa "longe da favela" sabe como são cobradas as dívidas pelos grupos entre os quais transacionava. Até nós sabemos disso. A verdade é que jamais saberemos ao certo o que determinou a morte da vereadora, mas temos certeza de que seu comportamento, ditado por seu engajamento político, foi determinante para seu trágico fim. Qualquer outra coisa diversa é mimimi da esquerda tentando agregar valor a um cadáver tão comum quanto qualquer outro.”

 

h) Em momento não determinado:

 

"Paulo Nader, meu amigo, até a imprensa noticiar sua morte, eu sequer sabia da existência dessa moça, donde concluo, sem muita dificuldade, que a luta dela, seus estudos ou mesmo sua vida não eram mais relevantes que os meus ou os seus. Lamento sua morte como lamentaria a de qualquer outro ser humano — todos temos nossas lutas. Só isso."

 

i) Sem data especificada:

 

“A vereadora do PSOL morta ontem proveu (sic) o remédio que receitava a todos nós. Notabilizou-se por defender bandidos e está sendo pranteada heroína. Ocorre que seu motorista — que acabo de saber que era PM — também foi morto na mesma investida criminosa. Quem chora pelo PM morto??? Qual era o nome do PM morto??? Politizar a morte do PM — que "eles" nem sabiam ser PM — não interessa à esquerda, né...”

 

j) Sem data especificada:

 

“Meu marido disse que eu não poderia falar isso, mas não disse que eu não podia ADORAR quando os amigos dissessem.”

 

k) Em 12/3/2018, 10h03:

 

“Esse homem veste-se como Napoleão e acredita piamente que é Napoleão. Ele é Napoleão?

 

Esse homem veste-se como uma mulher e acredita piamente que é uma mulher.”

 

l) Em data indefinida, comentando a notícia que "o Brasil é o primeiro país a ter uma professora portadora de síndrome de down":

 

“o que será que essa professora ensina a quem???? Esperem um momento que eu fui ali me matar e já volto, tá?””

 

(...)”

 

Nesse quadrante, delimitados e contextualizados os fatos e circunstâncias relevantes que circunscrevem o presente procedimento, submeto inicialmente ao Plenário questão de ordem envolvendo o levantamento do sigilo atribuído ao presente PAD (art. 25-A, do RICNJ). Ato contínuo, adentrarei à análise dos temas prejudiciais suscitados pela defesa e, na sequência, aos demais debates travados neste PAD em seu âmago.

 

1.    Questão de ordem. Levantamento do sigilo (art. 25-A, do RICNJ).

 

 

Na forma da certidão de id 4221347, lavrada em 08 de janeiro de 2021, denota-se que, ao tempo da instauração, atribuiu-se caráter sigiloso ao presente feito, porquanto instruído com peças da Reclamação Disciplinar nº 0000273-42.2019.2.00.0000, cuja tramitação, à época, operava-se de forma sigilosa.

 

Entretanto, transcorridos mais de três anos da autuação deste PAD, a Resolução CNJ nº 536, editada aos 07/12/2023, introduziu ao Regimento Interno desta Casa o art. 25-A, e o respectivo parágrafo único, estabelecendo que o relator, ao receber o processo, deverá analisar a necessidade de manutenção ou atribuição de segredo de justiça ou sigilo, determinando, conforme o caso, a alteração da situação processual e/ou dos documentos encartados. Eis o teor do novel dispositivo normativo em questão:


 

Art. 25-A. Ao receber o processo, o Relator analisará a necessidade de manutenção ou atribuição de segredo de justiça ou sigilo, determinando, se for o caso, a alteração da situação do processo ou de documentos juntados. (incluído pela Resolução n. 536, de 7.12.2023)

 

Parágrafo único. Em processos eletrônicos que tramitem em sigilo ou tenham documentos juntados com sigilo atribuído, o Relator deverá: (incluído pela Resolução n. 536, de 7.12.2023)

 

a) aferir a extensão do acesso às partes cadastradas no processo eletrônico a todos os documentos do processo, em observância às garantias constitucionais relativas ao direito de defesa; (incluído pela Resolução n. 536, de 7.12.2023)

 

b) avaliar a possibilidade de publicação da ementa do julgado, o que consignará no dispositivo do seu voto, para deliberação do Plenário a respeito. (incluído pela Resolução n. 536, de 7.12.2023)


 

 

Nessa conjuntura, a despeito da fase processual em que se encontra este PAD, de modo a dar efetivo cumprimento à diretriz emanada do já citado art. 25-A, do RICNJ, verifica-se, a par do atento exame dos dados reunidos nos autos, que não se revela necessária a manutenção do sigilo.

 

Com efeito, nada obstante a reclamação disciplinar da qual se desdobrou este procedimento tenha tramitado de modo sigiloso (RD nº 273-42.2019), as peças aqui reproduzidas refletem fatos publicamente conhecidos, porquanto divulgados em ampla escala pelos sítios jornalísticos e demais mídias eletrônicas. Cuida-se de circunstâncias atreladas às reiteradas denúncias propostas por cidadãos e entidades diversas em face da requerida, levadas à ampla cognição pública, tudo culminando na autuação de sucessivos expedientes prévios no âmbito da Corregedoria Nacional de Justiça, os quais, conforme anteriormente relatado, foram reunidos já citada RD nº 273-42.2019, desaguando na deflagração deste PAD.

 

Os elementos dos autos também demonstram que a própria representada manifestou-se publicamente sobre fatos ligados à apuração disciplinar aqui vertida, tanto que, relativamente ao caso da Vereadora Marielle Franco, ofereceu ampla retratação em rede social aberta. Cabe frisar, ainda, que a Ação Penal nº 912/RJ, instaurada contra a imputada no STJ em razão dos ataques à citada vereadora (cujas peças foram compartilhadas neste procedimento), tampouco ostenta caráter sigiloso, acessando-se dados relativos à respectiva tramitação e ao conteúdo das decisões ali proferidas por simples consulta ao sítio eletrônico da Corte Especial.

 

Nesse contexto, não se vislumbra do processado a presença das hipóteses que justifiquem a continuidade da tramitação sigilosa, inclusive sob o prisma do sigilo constitucional (art. 5º, LX e XXXIII, da CF/1988, art. 189, do CPC, art. 792, § 1º, do Código de Processo Penal e arts. 112, § 2º e 116, do RICNJ), sendo certo que a publicidade relativa aos atos praticados neste procedimento não terá o condão de comprometer o curso das investigações, na medida em que já encerrada há tempos a fase instrutória (art. 18, da Resolução CNJ nº 135/2011), ou seja, os autos encontram-se maduros para amplo julgamento, tanto que o mérito será na sequência examinado por este Plenário.

 

De ser lembrado, apenas a título de reforço, que a era de tramitação secreta de processos e de julgamentos com portas fechadas sem justificativas ficou no passado (arts. 5º, LX, 37 e 93, IX, da CF/1988, arts. 2º, parágrafo único, V, e 46, da Lei 9.784/99 e art. 3º, da Lei 12.257/2011, e 189 do CPC). O sigilo não foi eliminado, porém, somente passou a ser admitido em hipóteses excepcionalíssimas, porquanto o já citado art. 5º, LX, da Lei Maior é claro ao estabelecer a regra da publicidade dos atos processuais (sem diferenciar entre a seara judicial e administrativa), afastada apenas quando a defesa da intimidade das partes e/ou o interesse público e/ou social o exigirem.

 

Nesse sentido, inclusive, no julgamento do Procedimento de Controle Administrativo nº 0006453-69.2022.2.00.0000 (Rel. Conselheira Jane Granzoto, 10ª Sessão Virtual de 2023ª, julg. 30/06/2023), o Plenário deste Conselho reafirmou a diretriz na linha de que, após a promulgação da Constituição Federal em 1988, a conduta dos agentes públicos passou a ser pautada pela transparência e satisfação dos interesses da coletividade. Logo, na atual ordem, não se admite qualquer retrocesso quanto à publicidade dos atos administrativos, por se tratar de princípio basilar do Estado Democrático de Direito, alçado ao patamar dos direitos fundamentais do cidadão. 

 

Destarte, a publicidade na tramitação dos procedimentos administrativos disciplinares constitui regra geral que somente pode ser mitigada em situações excepcionais e justificadas, às quais não se amoldam o caso vertente. Desse modo, não extraindo do atento exame dos autos qualquer risco ao interesse público e/ou social, nem tampouco à preservação do direito à intimidade da desembargadora requerida e/ou dos demais envolvidos nos fatos que constituem objeto de averiguação neste PAD, o levantamento do sigilo é medida impositiva.

 

Determino, portanto, com fulcro no art. 25-A, do RICNJ, o levantamento do sigilo relativamente à tramitação do presente procedimento administrativo disciplinar.

 

2.    Questões prejudiciais

 

2.1 Não conhecimento. Incompetência deste Conselho Nacional de Justiça. Atos praticados na esfera privada

 

Em suas razões de defesa, a desembargadora representada pugnou pelo “não conhecimento” do presente processo administrativo disciplinar, aventando a “incompetência” deste Conselho Nacional de Justiça ou “ou de qualquer outro órgão correcional das atividades da magistratura nacional, por não haver previsão constitucional, legal, regimental, para apurar as condutas da vida privada da magistrada”, o que se revela de todo impertinente.

 

Em primeira ordem, não se olvide que a competência originária e concorrente deste Conselho para receber, conhecer e processar investigações contra membros ou Órgãos do Poder Judiciário, independentemente da atuação das corregedorias e tribunais locais, à luz do art. 103-B, § 4º, inc. III, da Constituição Federal, foi expressamente reconhecida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal na apreciação da liminar na ADI no 4.638/DF, o que respaldou integralmente o processamento da medida investigativa perante a Corregedoria Nacional de Justiça (RD nº 273-42.2019 e apensos), dali desdobrando-se o presente feito, por força do quanto deliberado pelo Plenário desta Casa, considerados os indícios de cometimento de irregularidades funcionais pela representada.

 

Por outro lado, em virtude do próprio exercício da atividade jurisdicional, eventual manifestação veiculada por integrante da magistratura em suas redes sociais poderá consubstanciar, em tese, transgressão de ordem disciplinar, na hipótese de desatenção às peculiaridades das restrições e exigências pessoais que recaem sobre os membros do Poder Judiciário na prática dos atos da vida privada, distintas daquelas acometidas aos cidadãos em geral, o que evidentemente atrai a competência concorrente deste Conselho Nacional de Justiça para a correspondente averiguação. Inteligência do já citado art. 103-B, § 4º, III, do Texto Magno, c.c com os artigos 4º, incisos III, IV V, VI, VII e VIII, 8º, incisos I, II, III, IV, IX, e 60, 67, 73 e 79, parágrafo único, do RINCJ, e artigos 12, parágrafo único, e 13, da Resolução CNJ nº 135/2011.

 

 Na realidade, sob o pretexto de que não competiria a este Conselho Nacional de Justiça a apuração de atos praticados na seara privada, exsurge nítido que a pretensão da requerida (“não conhecimento” do PAD), embora pela via oblíqua, dirige-se à revisão da própria decisão colegiada que ordenou a deflagração deste procedimento administrativo disciplinar. Nesse sentido, também sob tal prisma tal pleito não comporta guarida, diante do óbice insculpido nos arts. 4º, § 1º e 115, §§ 1º e 6º, do RICNJ.

 

 Afasto.

 

2.2   Arquivamento monocrático sumário

 

Prosseguiu a defesa advertindo que, “caso conhecido o presente PADMag”, assomaria impositivo o “arquivamento monocrático quanto ao mérito”, em razão da “sua manifesta improcedência, porque nenhum dos fatos narrados na Portaria configura infração disciplinar cometida pela Requerida”, o que indiscutivelmente não merecia acatamento pela relatoria.

 

É que, deflui dos artigos 12, 20, e §§, e 21, § único, da Resolução CNJ nº 135/2011, bem assim do art. 4º, inciso VI do RICNJ, que compete ao Plenário deste Conselho a apreciação dos processos administrativos disciplinares regularmente instaurados contra magistrados em seu cerne. Logo, uma vez deflagrado o procedimento disciplinar por determinação do Colegiado, compete igualmente a esse último – e não ao relator pela via monocrática - deliberar por eventual arquivamento do feito, na hipótese de não comprovação da infração disciplinar delineada na portaria inaugural.

 

Nessa quadra, tratando-se de questão atrelada ao mérito – como admite a própria defesa - o enquadramento jurídico das condutas perpetradas pela desembargadora processada, à luz do Direito Administrativo sancionador e dos dispositivos legais e normativos delimitados no libelo acusatório, será enfrentado e dirimido pelo Plenário desta Casa – e não de outra forma – devendo ser repelido o almejado “arquivamento monocrático” do feito.

 

Igualmente afasto.

 

 

3.    Mérito

 

Nos moldes já explicitados nas exposições introdutórias, imputou-se à desembargadora processada o cometimento de infrações disciplinares decorrentes das publicações lançadas em rede social, revestidas, em tese, de cunho político-partidário, para além de refletirem possível conteúdo preconceituoso, discriminatório, depreciativo, desrespeitoso e descortês, tudo a revelar potencial ofensa ao teor do art. 35, VIII, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, dos arts. 8º, 13, 16 e 26, do Código de Ética da Magistratura, e dos arts. 2º, parágrafos 1º e 3º, e 6º, do Provimento CNJ nº 71/2018, sucedidos pelo art. 4º, incisos II e III, da Resolução CNJ nº 305/2019, nos exatos termos da Portaria nº 13, de 18 de dezembro de 2020 (ids 4220112, 4220104 e 4220099).

 

Pois bem. De partida, cabe ressaltar que, à luz das imputações delineadas no libelo acusatório e das exposições defensivas, as quais em momento algum refutaram o teor das transcrições reproduzidas na portaria inaugural, inexistiu qualquer controvérsia quanto ao conteúdo e à autoria das postagens que constituem objeto de averiguação neste feito, nem tampouco quanto à responsabilidade da requerida pelo perfil “Marília Castro Neves” na rede social Facebook. Nessa perspectiva, a discussão quanto à possível prática de transgressão funcional, com responsabilização disciplinar da magistrada imputada – se o caso -, assume conotação eminentemente jurídica e, como tal, será examinada.

Em segunda ordem, impende destacar que a liberdade de manifestação de pensamento, assegurada constitucionalmente, reiteradamente enfocada pela magistrada processada, em nada beneficia a respectiva defesa. Com efeito, não se olvida que o direito à liberdade de expressão é assegurado pela Carta Cidadã (art. 5º, inciso IV), pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (artigo 19) e pelo Pacto de San José da Costa Rica (artigo 13). Também é certo que a Constituição Federal é taxativa ao preconizar no art. 5º, IX, ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença", ao passo que o art. 220, § 2º, da Carta Cidadã, ao disciplinar a comunicação social, dispõe que "é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Contudo, a liberdade de manifestação consagrada pelo Texto Magno não ostenta conotação absoluta, nem tampouco ilimitada, porquanto passível de submissão a certas restrições, compatíveis com os pilares do Estado Democrático de Direito, implicando deveres e responsabilidades que visam resguardar, no caso dos magistrados, a necessária afirmação dos postulados e demais princípios norteadores da judicatura.

Nessa quadra, convém repisar que o magistrado não está apenas vinculado aos ideais de justiça e verdade, mas igualmente compromissado à sua efetiva incorporação, de sorte que as qualidades pessoais projetadas pelo juiz, abarcando a própria imagem e conduta, afeta todo o sistema judicial e, portanto, a confiança e a credibilidade depositadas pelos cidadãos na instituição, a desafiar do aludido agente estatal – até em razão do significativo poder decisório que lhe foi atribuído - um padrão elevado de conduta e correção, concretamente irrepreensíveis, tanto dentro, quanto fora da jurisdição. Paralelamente, o fiel desempenho da relevante e árdua tarefa conferida aos juízes, no sentido de promover a resolução dos litígios e aplicar o direito, pressupõe uma posição de imparcialidade, sem prejuízo da plena aptidão para escuta e compreensão dos diversificados e conflitantes pontos de vista inerentes a uma sociedade plúrima.

Não por outras razões, de modo a dignificar a função e preservar o direito dos jurisdicionados de terem suas demandas julgadas de forma imparcial e independente, recaem sobre os magistrados restrições peculiares e exigências pessoais distintas daquelas direcionadas aos cidadãos em geral. Daí porque os juízes devem resguardar a sua imparcialidade, inclusive por ocasião das manifestações de índole privada, as quais devem ser balizadas pela prudência e cautela, com o escopo de resguardar não apenas a imagem pessoal, como também, é bom reiterar, a confiança e a credibilidade de todos os jurisdicionados no Poder Judiciário.  

Tal principiologia há muito se mostra consolidada nos denominados “Princípios de Bangalore de Conduta Judicial”, os quais, entre outras diretrizes, versam a indispensável responsabilidade dos magistrados no exercício da liberdade de expressão, de maneira a preservar a dignidade do ofício judicante e a independência do Judiciário, valendo a transcrição: 

 

4.2 Como objeto de constante observação por parte do público, um juiz deve aceitar as restrições pessoais que podem parecer limitações para os cidadãos comuns e deve fazê-lo de modo livre e com disposição. Em particular, um juiz deve conduzir-se de maneira consistente com a dignidade do ofício judicial. 

(...) 

4.6 Um juiz, como qualquer outro cidadão tem direito à liberdade de expressão, crença, associação e reunião de pessoas, mas ao exercer tais direitos, deve sempre conduzir-se de maneira tal que preserve a dignidade do ofício judicante e a independência do Judiciário. 

Comentário 

Um juiz goza de direitos em comum com os outros cidadãos 

134. Na nomeação, um juiz não renuncia aos direitos de liberdade de expressão, associação e assembléia usufruídos pelos outros membros da comunidade, nem abandona qualquer crença política anterior ou deixa de ter interesse em assuntos políticos. Todavia, parcimônia é necessário para manter a confiança do público na imparcialidade e independência do Judiciário. Ao definir o grau apropriado de envolvimento do Judiciário no debate público, há duas considerações fundamentais a se fazer. A primeira é se o envolvimento do juiz poderia razoavelmente minar a confiança na sua imparcialidade. A segunda é se tal envolvimento pode expor desnecessariamente o juiz ao ataque político ou ser incoerente com a dignidade do ofício judicante. Se qualquer uma das duas ocorrer, é o caso de o juiz evitar tal envolvimento. 

(...) 

O juiz não deve se envolver em debates públicos 

136. Um juiz não deve envolver-se inapropriadamente em debates públicos. A razão é óbvia. A verdadeira essência de ser juiz é ser hábil para abordar os vários problemas que são objetos de disputas de maneira objetiva e judicial. É igualmente importante que o juiz deve ser visto pelo público como exibindo um tipo de abordagem desinteressada, imparcial, não-preconceituosa, de mente aberta e justa, que é a marca distintiva de um juiz. Se um juiz entra na arena política e participa de debates públicos, expressa opiniões sobre assuntos controversos, entra em disputa com figuras públicas da comunidade ou crítica publicamente o governo, ele não será visto como atuando judicialmente quando presidir como juiz em uma corte e decidir litígios a respeito dos quais tenha expressado opiniões em público, ou talvez mais importante, quando as figuras públicas ou departamentos do governo que ele tenha criticado anteriormente sejam partes ou litigantes ou até mesmo testemunhas em casos sob sua atuação

(...)” 

(In: Comentários aos PRINCÍPIOS DE BANGALORE DE CONDUTA JUDICIAL, inserido no portal do CJF em 25/6/2008, Tradução de Marlon S. Maia e Ariane E. Kloth. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2008. 179p, https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/outras-publicacoes

 

No ordenamento jurídico pátrio, a própria Constituição Federal fixou diretrizes que têm por escopo compatibilizar a liberdade de expressão dos magistrados com as restrições ínsitas às suas elevadas e relevantes atribuições, ao mitigar a liberdade de manifestação política, dispondo textualmente que “aos juízes é vedado dedicar-se à atividade político-partidária” (art. 95, parágrafo único, inciso III).  

De outro norte, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, para além de impor o dever de conduta irrepreensível na vida privada (art. 35, VIII), ampliou o rol de limitações que envolvem a liberdade de manifestação crítica pelos integrantes do Poder Judiciário, ao preceituar expressamente no inciso III, do art. 36, que ao magistrado é “vedado manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério”.

A seu turno, o Código de Ética da Magistratura Nacional evoca os princípios que devem nortear o exercício da magistratura e, por corolário, as manifestações públicas dos magistrados - independência, imparcialidade, transparência, integridade pessoal e profissional, diligência e dedicação, cortesia, prudência, sigilo profissional, conhecimento e capacitação e dignidade, honra e decoro -. Tais postulados, em sua essência, consubstanciados, entre outros dispositivos normativos, nos artigos 1º, 2º, 7º, 8º, 13, 15, 16, 26 e 37 do Código de Ética da Magistratura [1], vão exatamente ao encontro dos padrões de conduta e dos demais valores enunciados pelos supramencionados “Princípios de Bangalore de Conduta Judicial”.

Aliando-se ao conjunto de normas que limitam a liberdade de expressão dos magistrados, este Conselho, no âmbito do seu poder regulamentar, editou o Provimento nº 71/2018, da Corregedoria Nacional de Justiça (DJe de 14/06/2021), que estabeleceu parâmetros relacionados à utilização do e-mail institucional pelos membros e servidores do Poder Judiciário e à manifestação nas redes sociais, conclamando os magistrados que evitem a violação dos deveres funcionais e a exposição negativa do Poder Judiciário nos perfis pessoais - arts. 2º, 3º e 4º, do citado ato normativo – [2]. 

Frise-se, ainda, que o Provimento nº 71/2018 foi objeto de impugnação junto ao Supremo Tribunal Federal, por meio do Mandado de Segurança 35.793, de relatoria do Exmo. Sr. Ministro LUIZ ROBERTO BARROSO, sendo certo que a pretensão cautelar ali formulada restou indeferida, sobrevindo a decisão monocrática definitiva, divulgada no DJe em 25/11/2021, denegatória da segurança. Eis o teor da ementa que sintetiza os robustos fundamentos ali externados por Sua Excelência ao denegar a concessão do writ: 

Ementa: DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. ATO DO CNJ. PROVIMENTO Nº 71/2018. MANIFESTAÇÃO POLÍTICO PARTIDÁRIA DE MAGISTRADOS EM REDES SOCIAIS. 

1. Mandado de segurança impetrado contra o Provimento nº 71/2018 da Corregedoria Nacional de Justiça, que dispõe sobre a manifestação de magistrados nas redes sociais. 

2. Como regra geral, o controle dos atos do CNJ pelo STF somente se justifica nas hipóteses de: (i) inobservância do devido processo legal; (ii) exorbitância das competências do Conselho; e (iii) injuridicidade ou manifesta irrazoabilidade do ato impugnado. Não se identifica qualquer dessas hipóteses.

3. A liberdade de expressão, com caráter preferencial, é um dos mais relevantes direitos fundamentais preservados pela Constituição. As restrições ao seu exercício serão somente aquelas previstas na Constituição.

4. A vedação ao exercício de atividade político-partidária por membros da magistratura (CF/1988, art. 95, parágrafo único, III), é, precisamente, uma das exceções constitucionais à liberdade de expressão plena. O fundamento dessa previsão repousa no imperativo de imparcialidade e distanciamento crítico do Judiciário em relação à política partidária.

5. Manifestações públicas em redes sociais com conteúdo político-partidário geram fundado receio de abalo à independência e imparcialidade do Judiciário. Magistrados não se despem da autoridade do cargo que ocupam, ainda que fora do exercício da função.

6. A nova realidade da era digital faz com que as manifestações de magistrados favoráveis ou contrárias a candidatos e partidos possam ser entendidas como exercício de atividade político-partidária. Tais declarações em redes sociais, com a possibilidade de reprodução indeterminada de seu conteúdo e a formação de algoritmos de preferências, contribuem para se alcançar um resultado eleitoral específico, o que é expressamente vedado pela Constituição.

7. O Provimento nº 71/2018 interpretou de maneira razoável e adequada o sentido da Constituição na matéria e é relevante para balizar a conduta dos seus destinatários.

8. Segurança denegada.


À parte do mencionado Provimento nº 71/2018, este Conselho Nacional de Justiça acabou por editar a Resolução nº 305/2019 (deliberação do Plenário do CNJ, no Procedimento de Ato nº 0004450-49.2019.2.00.0000, na 302ª Sessão Ordinária, realizada em 17 de dezembro de 2019 – DJe de 18/12/2019), considerado o necessário compromisso de fortalecer a legitimidade do Poder Judiciário frente aos desafios impostos pela realidade cambiante das comunicações sociais na seara digital. Dessa forma, o ato normativo em questão estabeleceu os parâmetros para o uso das redes sociais pelos membros do Judiciário, destacando, entre outros aspectos, o dever de moderação, decoro e respeito que deve orientar a atuação dos magistrados em referidas mídias, sendo digno de menção que a resolução em apreço constitui objeto de 02 (duas) ações direta de inconstitucionalidade, pendentes de apreciação (ADIs 6.293 e 6.310, Rel. Exmo. Sr. Ministro Alexandre de Moraes), diante do pedido de destaque da sessão virtual formulado pelo Exmo. Sr. Ministro Nunes Marques.

Convém destacar, ainda, que o art. 3º, inciso II, alíneas “a” e “b” da Resolução CNJ nº 305/2019, definiu que o magistrado, por ocasião da utilização das redes sociais (independentemente do emprego de nome real ou pseudônimo), deve evitar expressar opiniões ou compartilhar informações que possam prejudicar o conceito da sociedade em relação à independência, à imparcialidade, à integridade e a sua idoneidade ou que possam afetar a confiança do público no Poder Judiciário, assim como manifestações que busquem autopromoção ou superexposição. Por sua vez, à luz da alínea “f”, do dispositivo normativo em comento, o magistrado deve ser abster de compartilhar conteúdo ou a ele manifestar apoio sem convicção pessoal sobre a veracidade da informação, evitando a propagação de notícias falsas (fake news).

Já o art. 4º, inc. II, da Resolução CNJ nº 305/2019, é taxativo ao preceituar que constituem condutas vedadas aos magistrados nas redes sociais a emissão de opinião que demonstre atuação em atividade político-partidária [3], assim como a manifestação em apoio ou crítica públicos a candidato, lideranças políticas ou partidos políticos (art. 95, parágrafo único, inciso III, da Constituição Federal; art. 7º do Código de Ética da Magistratura Nacional).

Noutro giro, apenas a título elucidativo, é bom sublinhar que, em razão da notória escalada da intolerância ideológica, do ambiente eleitoral já conflagrado e dos atos violentos com motivação político-partidária que assolaram o país nas eleições de 2022, os quais refletiram potencial ameaça à estabilidade social e riscos à normalidade democrática e constitucional, a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento nº 135, de 02/09/2022 (DJe 02/09/2022), que dispõe sobre condutas e procedimentos dos magistrados e tribunais brasileiros no período eleitoral e posteriormente a ele. À luz do citado ano normativo, o Órgão Censor Nacional assentou que a singularidade do cenário político-democrático exigia o pleno alinhamento e a união de esforços entre magistrados, tribunais, Ministério Público e órgãos de segurança pública na construção de um ambiente pacífico e saudável, mediante a prevenção e a repressão de atos de violência político-partidária e, sob tal perspectiva, o inc. I, do respectivo art. 3º, dispõe textualmente que são vedadas aos magistrados sob jurisdição do CNJ, investidos ou não em função eleitoral, manifestações públicas, especialmente em redes sociais ou na mídia, ainda que em perfis pessoais próprios ou de terceiros, que contribuam para o descrédito do sistema eleitoral brasileiro ou que gerem infundada desconfiança social acerca da justiça, segurança e transparência das eleições.

 Vale acrescentar que a discussão envolvendo a possibilidade de restrição ao consagrado direito à liberdade de expressão pela legislação ordinária não é nova e já havia sido anteriormente reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal, a teor do julgamento proferido no Agravo no Mandado de Segurança nº 34493/BA, de relatoria do Exmo. Sr. Ministro Luiz Fux. Na ocasião, pelo exame da hipótese concreta, o Pretório Excelso manifestou-se sobre a conduta de membros do Parquet e, ao final, concluiu que, extrapolado o exercício do direito à liberdade de expressão, restou caracterizada violação aos deveres funcionais. Referido acórdão está assim ementado:

“AGRAVO INTERNO EM MANDADO DE SEGURANCA. DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CONSELHO NACIONAL DO MINISTERIO PUBLICO – CNMP. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PROCURADOR DE JUSTICA ESTADUAL. ENTREVISTA EM RADIO LOCAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. ABUSO DO EXERCÍCIO DE DIREITO. EXCESSO DE LINGUAGEM. VIOLACAO DE DEVERES FUNCIONAIS DE MEMBRO DO MINISTERIO PUBLICO. ATRIBUICOES CONSTITUCIONALMENTE ATRIBUIDAS AO CNMP. ART. 130-A, § 2º, III, DA CONSTITUICAO DA REPUBLICA. DEFERENCIA. CAPACIDADE INSTITUCIONAL. HABILITACAO TECNICA. APLICACAO DA PENALIDADE DE ADVERTENCIA. AUSENCIA DE DIREITO LIQUIDO E CERTO. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATORIA. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.

1. A democracia funda-se na presunção em favor da liberdade do cidadão, o que pode ser sintetizado pela expressão germânica Freiheitsvermutung (presunção de liberdade), teoria corroborada pela doutrina norte-americana do primado da liberdade (preferred freedom doctrine), razão pela qual ao Estado contemporâneo se impõe o estímulo ao livre intercâmbio de opiniões em um mercado de idéias (free marktplace of ideas) indispensável para a formação da opinião pública.

2. A liberdade de expressão, a despeito de possuir uma preferred position nas democracias constitucionais contemporâneas, pode sofrer limitações, desde que razoáveis, proporcionais e visem a prestigiar outros direitos e garantias de mesmo status jusfundamental (e.g., a honra, a imagem, a vida privada e a intimidade).

[…]

5. A liberdade de expressão não pode ser invocado para excluir a possibilidade de responsabilização disciplinar dos membros do Ministério Público que se portem de forma a violar os direitos fundamentais de qualquer pessoa ou revelem, através de manifestações, absoluta inadequação aos vetores axiológicos e aos parâmetros éticos e jurídicos que regem a atuação dos membros do Parquet. 

[…]

11. Agravo interno DESPROVIDO.”

(27 STF-MS 34.493-AgR/BA, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 06/05/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-102 DIVULG 15-05-2019 PUBLIC 16-05-2019.)

Nesse mesmo sentido, colhe-se o seguinte precedente emanado do STF:

“Ação civil originária. Pedido de trancamento e anulação de processo administrativo disciplinar instaurado, perante o Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP, contra membro do Ministério Público Federal. Manifestação em rede social. Liberdade de expressão. Limites. Sanção proporcional. Pedidos julgados improcedentes. 1. O Supremo Tribunal Federal já decidiu (ADI 4.638-MC-REF/DF), em relação ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ, mas com motivos perfeitamente aplicáveis ao CNMP, que a competência correcional desse órgão é originária e concorrente à das corregedorias setoriais. Assim, eventual decisão da Corregedoria do Ministério Público Federal em nada afeta a competência do Conselho Nacional do Ministério Público. 2. No campo disciplinar, nenhum recurso ou impugnação está conectado aos votos vencidos, que não têm influência alguma sobre o conteúdo das decisões. Eventual falta de juntada de voto vencido escrito ao acórdão do CNMP não é motivo de nulidade. 3. O relator do PAD tem atribuição para ajustar o seu ritmo de produção à pauta do órgão, de modo que pode pedir a inclusão do feito em pauta enquanto paralelamente se dedica à conclusão da instrução, desde que, na data do julgamento, o trabalho esteja, de fato, concluído. 4. O autor foi punido fundamentalmente por um tweet de 09 de janeiro de 2019, em que disse o seguinte: “Se Renan for presidente do Senado, dificilmente veremos reforma contra corrupção aprovada. Tem contra si várias investigações por corrupção e lavagem de dinheiro. Muitos senadores podem votar nele escondido, mas não terão coragem de votar na luz do dia”. 5. A manifestação, se viesse de um cidadão não investido de autoridade pública ou do titular de um cargo eletivo, seria absolutamente compatível com a liberdade de expressão. Seria a opinião política do emissor, independentemente da procedência ou não do que afirmado. 6. Quando, porém, essa manifestação parte de uma autoridade que tem certas garantias e vedações constitucionais justamente para manter-se fora da arena política, então há um problema. O autor não emitiu uma opinião geral sobre a política, ou sobre a inconveniência do voto secreto no parlamento, ou sobre a persistência, na política, de pessoas contra as quais existem investigações criminais. Não. Ele emitiu opinião muito bem determinada, a respeito de uma eleição específica e contra um candidato claramente identificado. E fez isso numa rede social de amplo alcance, virtualmente acessível por qualquer pessoa. 7. A liberdade de expressão é um direito fundamental que, todavia, precisa ser compatibilizado com outros direitos e deveres estabelecidos na Constituição. No caso específico dos membros do Ministério Público, há uma cláusula constitucional que os remete ao regime jurídico da Magistratura (CF, art. 129, § 4º). Esse é o modelo brasileiro de Ministério Público, um órgão cujos membros têm os mesmos direitos, garantias e vedações da Magistratura. Portanto, a sua liberdade de expressão precisa ser ponderada com os deveres funcionais respectivos, de modo a não envolver indevidamente a instituição em debates políticos. 8. Qualquer manifestação na internet, especialmente em redes sociais abertas, tem potencial para atingir o mundo todo e permanecer disponível para acesso, em tese, por tempo indeterminado. Assim, objetivando evitar danos a outros direitos, deve ser considerada essa circunstância no que se refere à extensão da livre manifestação do pensamento, quando aplicada à realidade da internet. A garantia da liberdade de expressão foi pensada na era pré-internet e, mesmo àquela época, já se considerava que os magistrados precisariam ter prudência em suas manifestações. 9. Não cabe ao Judiciário revisar a fundo todo o contexto, as provas e o grau da sanção, quando ela não apresenta evidente desproporcionalidade com a situação de fato devidamente comprovada nos autos do processo administrativo disciplinar. 10. Pedidos julgados improcedentes. (Pet 9068, Relator(a): NUNES MARQUES, Segunda Turma, julgado em 08/04/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-074 DIVULG 19-04-2021 PUBLIC 20-04-2021)

 

Como se verifica, pouco importa eventual inexistência de norma jurídica coibindo a propagação de fakenews e/ou o desconhecimento do(a) titular de rede social acerca da veracidade ou não do conteúdo divulgado. Assim o é porque a discussão primordial diz respeito à conduta da própria magistrada representada, ao publicar as mensagens de sua autoria, reproduzir e/ou comentar o conteúdo de manchetes e/ou postagens, o que por si só poderá evidenciar a prática de infração funcional, visto que prevalece um conjunto de princípios e normas que limita a liberdade de expressão e o envolvimento dos magistrados na atividade político-partidária – a iniciar pela Constituição Federal de 1988, com subsequente percurso pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional e pelas normas editadas por este Conselho Nacional de Justiça –, para além de vedar a adoção de qualquer outro procedimento incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções. Em suma, as diretrizes normativas fixadas nesta Casa somente aclararam e ratificaram a interpretação dos comandos e deveres que há muito já decorrem do próprio Texto Magno e da LOMAN.

Desse modo, na busca pelo necessário equilíbrio envolvendo a atuação (enquanto agente político) e o pleno exercício da manifestação de pensamento e da liberdade de expressão (na condição de pessoa física – cidadão), o integrante da magistratura deve balizar as suas manifestações na cautela, na prudência, na discrição e na economia verbal, tanto na esfera pública, quanto na privada. Paralelamente, pelos mesmos fundamentos ora expostos, a aplicação de eventual penalidade, na hipótese de caracterização da incompatibilidade das manifestações da requerida em sua rede social com os seus respectivos deveres funcionais, resultará da simples e efetiva incidência do próprio texto constitucional e legal (LOMAN), interpretado e aplicado sistematicamente com os demais dispositivos e princípios que emanam do amplo arcabouço jurídico-normativo acima delineado.

Expostas tais premissas, passo ao exame das publicações que constituem objeto específico de averiguação neste PAD, já acima reproduzidas, delimitadas e agrupadas didaticamente na peça acusatória com base nos destinatários e/ou temas ali retratados (id 4220099).

Com efeito, as postagens realizadas pela imputada em sua página pessoal do Facebook, atreladas ao período de janeiro/2019, reproduzidas nos itens “a”, “b”, “c”, “d”, “e”, e “f”, da portaria inaugural, refletem ataques pessoais ao Sr. Guilherme Castro Boulos, então candidato à Presidência da República nas eleições de 2018, nitidamente ofensivos, cujo conteúdo teve notória e vasta repercussão, porquanto amplamente disseminado nas redes sociais. Note-se que, em uma primeira publicação (16/01/2019), levada a cabo no contexto em que a mídia nacional repercutia a edição de um decreto que regulamentava a posse de arma de fogo no Brasil, a magistrada postou a imagem do Sr. Guilherme Boulos, acompanhada de dizeres nitidamente jocosos, enaltecendo a suposta “tristeza” no “olhar” da figura pública ali mencionada, que seria recebida a “bala” após o “decreto do Bolsonaro”, tudo acompanhado da afirmativa “Eu apoio Bolsonaro (id 4220375 - Pág. 1 e id 4220360 - Pág. 4).

Prosseguindo, embora tenha ressalvado na publicação subsequente que não se tratava de “ameaça” ou “incitação ao homicídio” (17/01/2019), bem assim invocado o exercício do “direito à legítima defesa” da “propriedade”, depreende-se da mensagem ali exposta ter a magistrada exaltado subliminarmente que a “bala” configurava o “risco” – “que o Boulos e o Stédile e quem mais pretender invadir propriedades correrão daqui por diante” –. Destacou, ainda, que algum “jurista especialista” do “PSOL” deveria explicar o “óbvio” ao Sr. Guilherme Boulos, ao qual, também de modo irônico, atribuiu a conotação de “moçoilo indignado” (id 4220361 - Pág. 5).

Ainda por intermédio de postagens realizadas em 17/01/2019, a magistrada processada escreveu que o Sr. Guilherme Castro Boulos teria ameaçado invadir a casa do “Presidente Bolsonaro”, acrescentando que, confrontado com o suposto vídeo que retrataria tal ameaça, o Sr. Guilherme teria pedido escusas dizendo que “usou ironia”, mas paradoxalmente, quando constituía o “alvo de zoeira”, ele se diria “ameaçado” (id 4220361 - Pág. 5).



Dando continuidade às inadequadas provocações, a requerida registrou que, ao acusá-la de “incitar seu homicídio”, seria fácil concluir pela tentativa de “promoção” do Sr. Guilherme Castro Boulos – “que de outra forma não consegue” – (17/01/20219), olvidando-se que, ela própria, a teor das indigitadas postagens, demonstrou por seu comportamento a busca injustificada e desmensurada pelo reconhecimento social e/ou autopromoção, bem assim que deixou de manter atitude aberta e paciente para receber argumentos ou críticas, em total desprestígio ao posto ocupado e à própria instituição do Poder Judiciário (id 4220361 - Pág. 5).

Naquela mesma data (17/01/2019), aliás, a representada desbordou totalmente o conteúdo de mero apoio e/ou desaprovação a determinada corrente político-partidária, sem transparecer qualquer preocupação com a veracidade da afirmativa subsequente, restringindo-se vagamente a invocar a opinião de “Reinado Azevedo” e da “maioria da população”, para o fim respaldar a taxativa acusação desferida contra o Sr. Guilherme Castro Boulos, no sentido de que esse último atuava como “chefe de uma facção terrorista”.

 Nessa mesma direção, ainda sem qualquer lastro probatório, acrescentou que o Sr. Guilherme estaria “muito próximo” de “oficializar essa condição” (chefe de organização terrorista), pois o “Presidente Bolsonaro” já teria se “manifestado nesse sentido”, assim como o “Vice-Presidente, Gen. Mourão e o Secretário da Segurança Pública, Gen. Santos Cruz”. A seguir, sob o pretexto de que se trataria de “condição” para o “Brasil” retornar à condição de “país sério e seguro”, a magistrada reputou necessária a “neutralização” de “Boulos e Stédiles”, deduzindo que as suas condutas também deveriam ser reconhecidas “pelo que realmente são: criminosas!!!” (id 4220360 - Pág. 5 e id 4220361 - Pág. 5).

Distanciando-se, uma vez mais, do dever de prudência, diligência e cortesia, a representada também demonstrou total desrespeito e menoscabo a esta instituição, proferindo áspera opinião que nem de longe se coaduna com a conduta esperada de uma representante da judicatura, ao consignar o estado de “felicidade” com o “novo governo”, cuja composição não “teria” o Sr. Guilherme Castro Boulos, “nem CNJ” que “me aborreçam” (sic), arrematando que “se esse é o preço a pagar por um Brasil Novo, decente, eu o pago de bom grado!!!” (id 4220361 - Pág. 6).  

As exposições e provocações em referência falam por si, revelando nítido potencial lesivo à honra do Sr. Guilherme Castro Boulos, visto que a desembargadora processada defendeu a “neutralização” do específico destinatário destacado nas postagens, atribuindo-lhe textualmente a prática de condutas “criminosas” na condição de “chefe” de uma “facção terrorista”. Trata-se, portanto, de ataques pessoais e ofensivos à liderança política da figura representada pelo Sr. Guilherme Castro Boulos, em virtude de suas ideologias das quais nitidamente discorda e/ou discordava a desembargadora, com o intento de descredenciá-lo perante a opinião pública – independentemente da realização das postagens após o certame eleitoral de 2018 -, sem que se perca de vista a declaração expressa de apoio político à corrente sabidamente adversária do Sr. Guilherme Boulos, capitaneada pelo então recém empossado Presidente da República.

Por outro lado, para além do inadequado viés político-partidário e dos ataques aos atributos morais da figura pública mencionada nas postagens, sopesada a notória escalada da polarização e intolerância ideológica vivenciada ao tempo dos fatos, assoma intuitivo que, embora pela via reflexa, as manifestações públicas da requerida acabaram por fomentar a hostilidade dos cidadãos não alinhados aos posicionamentos do Sr. Guilherme Castro Boulos e incitar atos de violência desfavor desse último.

Logo, a conduta perpetrada pela representada à toda evidência colidiu com o regramento insculpido no art. 2º, §§ 1º e 3º, do Provimento CNJ nº 71/2018, cujas diretrizes foram posteriormente referendadas pelo art. 4º, II, da Resolução CNJ nº 305/2019. E aqui, não é demais ressaltar que, à luz dos atos normativos em questão, nesta seara disciplinar, pouco importa a ausência de habitualidade e/ou envolvimento em atos ligados à filiação partidária, porquanto a mera expressão de apoio público a candidato e/ou a partido político, assim como a concretização de ataques pessoais a candidato, liderança política ou partido político com a finalidade de descredenciá-los perante a opinião pública, por si só configuram a prática de atividade político-partidária constitucionalmente vedada aos magistrados, traduzindo efetiva ofensa ao dever de manter conduta ilibada e decoro.

De outra parte, os itens “g”, “h”, “i” e “j”, da portaria de instauração, referem-se ao lamentável episódio abarcando uma série de postagens também realizadas pela imputada em sua mídia pessoal (Facebook), em detrimento da honra e da reputação da Sra. Marielle Francisco da Silva – Vereadora Marielle Franco (assassinada na região central da cidade do Rio de Janeiro em março/2018).

Com efeito, deflui do vasto material probatório ter a representada, em reposta a post do Sr. Paulo Nader, de 16/03/2018, lançado comentários e críticas ofensivas no sentido de que a citada vereadora não seria “apenas uma lutadora”, pois estaria “engajada com bandidos”. Ainda pela simples leitura da citada mensagem eletrônica, depara-se com a afirmação de que a Sra. Marielle Franco foi eleita pelo “Comando Vermelho” e “descumprido” os “compromissos assumidos” com seus “apoiadores”.

Na sequência, referindo-se novamente à Sra. Marielle, a processada externou que “Ela, mais do qualquer outra pessoa ‘longe da favela’”, saberia como “são cobradas as dívidas pelos grupos entre os quais transacionava”, pontuando que “até nós sabemos disso”. Acrescentou, de forma exacerbada, que o “comportamento” da vereadora, ditado por seu “engajamento político”, teria sido “determinante” para seu “trágico fim”, ou seja, expressou convictamente que o homicídio teria sido motivado exatamente pelo fato de não terem sido “cumpridos” os supostos ajustes entabulados entre a Sra. Marielle e o Comando Vermelho. Ao final, verbalizou indiferença ao assassinado da vereadora, redigindo que “qualquer coisa diversa é mimimi da esquerda tentando agregar valor a um cadáver tão comum quanto qualquer outro” (id 4356361 - Pág. 14).


Ainda de modo a desprestigiar a figura pública da Sra. Marielle Franco e minimizar a repercussão do ato de violência que culminou na morte da vereadora, em data não delimitada pela portaria inaugural, a requerida postou que, até a imprensa noticiar o assassinato, “não sabia da existência dessa moça”, acompanhada da arrogante observação de que poderia “concluir” sem “muita dificuldade” que a “luta dela, seus estudos ou mesmo a sua vida não eram mais relevantes que os meus ou os seus” e, portanto, “lamentava” a sua morte como “lamentava a de qualquer outro ser humano”, pois todos teriam suas “lutas” – “Só isso” -.  

De outra senda, a investigação que se processou na Reclamação Disciplinar nº 0001605-78.2018.2.00.0000, cujas peças instruíram a medida preparatória da qual derivou o presente PAD, igualmente identificou, em data não especificada, postagem de conteúdo inadequado e debochado, por intermédio da qual a desembargadora apontou que a Sra. Marielle Franco – à qual se reportou como “A vereadora do PSOL morta ontem” – “proveu” (sic) o “remédio que receitava a todos nós”.  Nessa mesma publicação, a magistrada lançou crítica na linha de que a Sra. Marielle “notabilizou-se” por “defender bandidos” e, nada obstante, estaria sendo “pranteada como heroína”. Paralelamente, escreveu que teria “acabado” de “saber” que o motorista da Sra. Marielle, igualmente morto na investida criminosa, “era PM”, momento em que, inserindo novamente a questão no campo da polarização político-partidária, indagou o “nome” do referido profissional, questionou quem “choraria” pelo “PM morto” e, por fim, advertiu: “Politizar a morte o PM - que ‘eles’ nem sabiam ser PM” – não “interessa” à “esquerda, né...”.

Também sem data especificada, em post atrelado ao perfil “Marília Castro Neves”, por intermédio do qual a representada defendeu que “essa” (Marielle Franco) não vai “fazer falta alguma”, sobreveio nova manifestação de índole depreciativa, no sentido de que o marido da requerida “disse que eu não poderia falar isso, mas não disse que eu não podia ADORAR quando os amigos dissessem”.

Como se denota, as manifestações veiculadas pela processada permitem identificar com clareza o lapso temporal no qual teria ocorrido o “engajamento” e a propalada associação entre a então candidata a vereadora e o Comando Vermelho (certame eleitoral do Município do Rio de Janeiro em 2016). Além disso, consoante anteriormente destacado, a acusação da desembargadora - suficientemente grave – assentou-se igualmente na premissa de que a Sra. Marielle foi eleita com o apoio da organização criminosa em apreço, transacionou com o grupo e assumiu o compromisso de promover os interesses da facção no espaço legislativo municipal.

Nessa perspectiva, lastreada na taxativa alusão ao “engajamento político” da Sra. Marielle com “bandidos” – a indicar suposta manutenção da ação no tempo -, a desembargadora reverberou a integração e a participação não episódica da vereadora nos assuntos daquela facção, exclamando que o assassinato ocorreu, repita-se, justamente pelo fato de a vítima haver “descumprido” os ajustes pactuados com seus “apoiadores”, é dizer, proferiu juízo de certeza ao discorrer que o “comportamento” da vítima “foi determinante para seu trágico fim".

Em suma, conquanto desprovida de qualquer lastro probatório, a representada noticiou fato delitivo específico, indicativo do suposto vínculo entre a vereadora e a facção notoriamente conhecida no cenário nacional (atrelado ao apoio eleitoral da campanha de 2016) - "foi eleita pelo Comando Vermelho e descumpriu 'compromissos' assumidos com seus apoiadores". -, isto é, atribuiu convictamente à falecida vereadora a conduta de promover e/ou integrar pessoalmente organização criminosa, o que constituiria, em tese, a figura penal de que trata o art. 2º, da Lei nº 12.850/2013, de seguinte teor:


Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.


o por outras razões, aliás, o Vice-Procurador-Geral da República, em seu douto opinativo apresentado nos autos da Queixa-Crime ajuizada por (1º) MARINETE DA SILVA, (2º) ANTONIO FRANCISCO DA SILVA NETO, (3º) ANIELLE SILVA DOS REIS BARBOZA e (4º) MONICA TEREZA AZEREDO BENICIO, respectivamente, ascendentes (1.º e 2.º Querelantes), irmã (3.ª Querelante) e companheira (4ª Querelante) da ofendida, contra a desembargadora ora representada (a quem foi imputado o crime do art. 138, § 2.º, c.c. o art. 141, inciso III, ambos do Código Penal), opinou pelo recebimento parcial da medida, tudo convergindo à instauração da Ação Penal nº 912/RJ, por ter sido atribuída à vítima falecida o crime do art. 2º da Lei n.º 12.850/2013 (id 4356416, pág. 35/45 e pág. 94/113).

Os dados probatórios também evidenciam que a magistrada não adotou qualquer cautela previamente à realização das publicações, as quais, realce-se, contaram com maciça divulgação e ampla repercussão nas mídias. Mas diversamente, conforme acima registrado, de modo absolutamente precipitado e inadvertido, a requerida imputou falsamente à falecida vereadora a prática de grave delito capitulado na legislação penal com base em meros “boatos” compartilhados em redes sociais. Tanto assim que, em mais de uma oportunidade, a magistrada ofertou ampla retratação, consoante se extrai da publicação a seguir reproduzida, ocasião em que “retirou” tudo o que “havia ali afirmado”, solicitando novas desculpas à “memória” da Sra. Marielle e aos seus familiares. Admitiu, ainda, que expressou as suas opiniões com lastro em notícias falsas”, sob o registro de que “ao contrário do que os falsos boatos alegavam, a vereadora Marielle Franco não possuía vínculo com o Comando Vermelho, tampouco há provas do envolvimento da referida facção a sua morte” (id 4356426 - Pág. 1).



Consoante obtemperado com argúcia pela Corregedoria Nacional de Justiça no voto condutor do acórdão que resultou na abertura deste PAD, a par de se mostrar claramente ofensivo, o conteúdo das mensagens materializadas pela processada leva à conclusão de que circunstâncias ligadas à vida pessoal da vereadora (vítima de homicídio) foram valoradas e publicizadas de forma açodada e preconceituosa, sob o ponto de vista absolutamente particular da magistrada, a partir, notadamente, das suas próprias convicções na arena político-partidária. Nessa perspectiva, as mensagens em questão acabaram por exteriorizar verdadeira antecipação do posicionamento da desembargadora no tocante à motivação do crime – atribuindo à vítima a culpa pelo assassinato, ignorando o fato de que se tratava de um caso, em tese, inserido na esfera da competência da Justiça Comum, bem assim ocorrido na jurisdição da Corte à qual está vinculada a imputada – e que, hipoteticamente, poderia ser levado em dado momento processual à cognição jurisdicional da própria representada.

Sob tal enfoque, as manifestações públicas relacionadas à Sra. Marielle Franco, nos moldes em que concretizadas pela representada, lançaram dúvidas quanto à lisura e à credibilidade do Poder Judiciário, pois a linha de argumentação adotada pela desembargadora admite interpretação no sentido de que o homicídio em si foi relegado a segunda ordem, a fragilizar, portanto, o primordial compromisso institucional da Justiça com a apuração e resposta imparcial e proporcional ao fato criminoso que ceifou prematuramente a vida da vereadora.

É certo que o Superior Tribunal de Justiça, nos autos da referida Ação Penal nº 912/RJ, decretou a extinção da punibilidade da desembargadora querelada, na forma dos arts. 107, VI, e 143, do Código Penal, diante da retratação oferecida pelo mesmo meio (Facebook), anteriormente à prolação da decisão meritória naquela seara criminal (id 4356426 - Pág. 141/154). Todavia, a situação processual caracterizada naquela esfera não correspondeu à prolação de sentença de absolvição que tenha afastado a existência do fato ou negado a autoria da conduta, o que vale dizer que o comando emanado da Corte Especial, por si só, não tem o condão de elidir eventual responsabilização funcional da magistrada no âmbito deste Conselho Nacional de Justiça, à luz do princípio basilar norteador da persecução administrativo-disciplinar, qual seja, da independência das instâncias cível, penal e administrativa.

Vale ressaltar que o mesmo fato pode ensejar ofensa a bens jurídicos díspares, daí emergindo a independência na aplicação das sanções nas esferas penal e administrativa. Nessa quadra, é necessário ressaltar que a tipificação da conduta penal tem por escopo precípuo salvaguardar a ordem e os valores ínsitos ao convívio social em seu aspecto geral, ao passo que as infrações de índole administrativa traduzem aspectos ligados à ofensa aos deveres inerentes ao vínculo jurídico existente entre o indivíduo e a Administração Pública. Não por outros motivos, já está sedimentado jurisprudencialmente o entendimento de que as esferas penal e administrativa são independentes e autônomas, configurando-se a vinculação, insisto, somente na hipótese de sentença penal absolutória que negue a existência do fato ou da autoria.

Inócuas, portanto, as ponderações veiculadas pela defendente, embasadas na extinção da punibilidade decretada pelo Superior Tribunal de Justiça nos autos da Ação Penal nº 912/RJ.

Longe de retratar o mero exercício do consagrado direito constitucional à liberdade de expressão, a prática externada pela desembargadora representada, atribuindo falsamente a terceiros a prática de delito, em efetivo, violou frontalmente deveres e princípios que devem nortear a conduta dos magistrados, tanto na vida pública, quanto na vida particular. Dito de outra forma, também em relação às postagens relacionadas à Vereadora Marielle Franco, as alegações defensivas não lograram infirmar o valioso conjunto probatório, revelador de que a requerida deixou de comportar-se na vida privada de modo a dignificar a função, cônscia de que o exercício da atividade jurisdicional pressupõe que sejam acatadas distinções e restrições pessoais distintas das acometidas aos cidadãos em geral.

O STF, aliás, já se manifestou no sentido de que falsa atribuição de delito a terceiros não encontra guarida no propalado exercício do direito constitucional à liberdade de expressão, valendo a transcrição:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO (LEI Nº12.322/2010) – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO RECURSO DE AGRAVO – QUEIXA-CRIME – CONDENAÇÃO PENAL IMPOSTA A JORNALISTA – DELITO DE INJÚRIA (CP, ART. 140) – RECONHECIMENTO, NO CASO, PELO COLÉGIO RECURSAL, DA OCORRÊNCIA DE ABUSO NO EXERCÍCIO DA LIBERDADE DE OPINIÃO – DECISÃO DO COLÉGIO RECURAL QUE SE APOIOU, PARA TANTO, EM ELEMENTOS DE PROVA (INCLUSIVE NO QUE CONCERNE À AUTORIA DO FATO DEITUOSO) PRODUZIDOS NO PROCESSO PENAL DE CONHECIMENTO – PRETENDIDA REVISÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO DEPENDENTE DE EXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA, INSUSCETÍVEL DE ANÁLISE EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO (SÚMULA 279/STF) – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. – O direito à livre manifestação do pensamento, embora reconhecido e assegurado em sede constitucional, não se reveste de caráter absoluto nem ilimitado, expondo-se, por isso mesmo, às restrições que emergem do próprio texto da Constituição, destacando-se, entre essas, aquela que consagra a intangibilidade do patrimônio moral de terceiros, que compreende a preservação do direito à honra e o respeito à integridade da reputação pessoal.A Constituição da República não protege nem ampara opiniões, escritos ou palavras cuja exteriorização ou divulgação configure hipótese de ilicitude penal, tal como sucede nas situações que caracterizem crimes contra a honra (calúnia, difamação e/ou injúria), pois a liberdade de expressão não traduz franquia constitucional que autorize o exercício abusivo desse direito fundamental. Doutrina. Precedentes. – O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o apelo extremo, deve fazê-lo com estrita observância do conjunto probatório e da situação fática, tais como reconhecidos, soberanamente (RTJ 152/612 – RTJ 153/1019 – RTJ 158/693, v.g.), inclusive quanto à autoria do fato delituoso, pelo órgão judiciário “a quo”, a significar que o quadro fático-probatório pautará, delimitando-a, a atividade jurisdicional da Corte Suprema em sede recursal extraordinária. Precedentes. Súmula 279/STF.” (ARE 891647 ED, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 15/09/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-187 DIVULG 18-09-2015 PUBLIC 21-09-2015)

 

Não é demais repisar, ainda, a irrelevância da discussão embasada no suposto desconhecimento da representada quanto à natureza das informações reproduzidas nas postagens, notadamente das informações relacionadas à Vereadora Marielle Franco – fake news, falsos boatos e/ou informações falsas -. Isso porque, tais publicações foram efetivadas de forma contundente, sem qualquer ressalva, com consequente compartilhamento entre os demais usuários do Facebook, ou seja, a requerida chancelou o conteúdo dos dados ali replicados – independentemente da sua veracidade - reforçando, portanto, a natureza de publicação do texto disseminado.

 

Ora, a responsabilidade de quem propaga qualquer conteúdo nas mídias sociais não se esvai frente ao que exigível daquele que originariamente produziu ou divulgou qualquer notícia, informação e/ou material no ambiente digital. E, aqui, não se pode desprezar o fato de que a requerida, enquanto experiente operadora do direito, tinha pleno conhecimento de que nem mesmo matérias jornalísticas constituem fontes de informações necessariamente fidedignas, muito menos boatos disseminados em redes sociais, tudo levando à conclusão de que a magistrada, no mínimo, foi incauta, assumindo, com sua postura, o risco pelas falsas imputações delitivas concretizadas em meio público, que houve por bem divulgar.  

De outro lado, ainda que não tenha declarado expressamente, na rede social, a sua atividade funcional, o perfilMarília Castro Neves – em seu aspecto visual e ideológico - esteve indiscutivelmente vinculado à condição de magistrada da imputada.

Assim o é, a uma, em virtude da diretriz defensiva externada pela própria representada, embasada na premissa de que a rede social era fechada e, portanto, restrita a usuários próximos, os quais, por certo, tinham plena ciência do cargo de desembargadora exercido pela processada. A duas, porquanto o magistrado é pessoa pública, devendo pressupor o conhecimento de sua condição pela sociedade em geral. E, a três, considerando que os integrantes da magistratura não se despem da autoridade e do cargo que ocupam, ainda que não estejam no exercício da respectiva função, o que certamente conferiu maior credibilidade às mensagens veiculadas pela requerida.  

Também não socorre à defesa o argumento centrado no caráter privado da rede social, revelando-se pueril a suposta expectativa de privacidade da magistrada relativamente às publicações que constituem objeto de apuração neste PAD. Isso porque, embora realizadas originariamente no espaço virtual de uma conta formalmente fechada, não se pode atribuir a conotação genuinamente privada às indigitadas postagens, levando-se em conta que o titular do perfil não detém qualquer controle sobre a conduta dos respectivos seguidores, dos quais não se espera nem é possível exigir qualquer tipo de reserva. Assim, uma vez disponibilizado na esfera digital, em plataforma de amplo alcance (Facebook), o conteúdo das publicações pode ser amplamente replicado, como de fato o foi no caso concreto, dispensando maiores incursões nesse aspecto.  

Não deve se perder de vista, portanto, que posicionamentos, como os externados pela imputada – até em função da relevante função exercida –, ostentam maior peso e influência na formação de opinião, cabendo assinalar que, diante do alcance amplificado, difuso e indefinido, os impactos das opiniões e notícias que circulam na multiplicidade de tecnologias digitais – positivos e/ou negativos – são imprevisíveis, de modo que, em determinadas ocasiões, a depender da forma como são coletadas, divulgadas e assimiladas, tais publicações revestem-se de potencialidade danosa incalculável.  

Prosseguindo, pelo atento exame das postagens reproduzidas nos itens “k” e “l”, da portaria de instauração, constatam-se o sarcasmo, a ironia e a conotação discriminatória das mensagens, as quais estão completamente dissociadas das balizas ditadas pelo item5.1, dos “Princípios de Bangalore”, no sentido de que o magistrado “deve ser ciente e compreensivo quanto à diversidade na sociedade e às diferenças que surgem de várias fontes, incluindo (mas não limitadas à)raça, cor, sexo, religião, origem nacional, casta, deficiência, idade, estado civil, orientação sexual, status social e econômico e outras causas (“razões indevidas”), impondo-se ao juiz, na forma do item 5.2, o dever de não se manifestar, por palavras ou conduta, externando parcialidade ou preconceito dirigido a qualquer pessoa ou grupo com base em “razões indevidas”.  

Com efeito, à luz dos preceitos legais, normativos, éticos, principiológicos e dos demais vetores que orientam o exercício da judicatura no Estado Democrático de Direito, já acima ampla e reiteradamente enfocados, é dever do juiz não apenas reconhecer e estar familiarizado com a ampla diversidade cultural, étnica, racial, religiosa, sexual e social, mas também estar livre de qualquer parcialidade ou preconceito. Nesse trilhar, visando aclarar e reforçar tais diretrizes, o art. 6º, do Provimento CNJ nº 71/2018, dispõe que o magistrado deve evitar nas redes sociais publicações que possam ser interpretadas como discriminatórias de raça, gênero, condição física, orientação sexual e religiosa e de outros valores ou direitos protegidos ou que comprometam os ideais defendidos pela CF/88. Por sua vez, o inc. III, do art. 4º, da Resolução CNJ nº 305/2019, sucedeu tal disposição normativa sem solução de continuidade, porquanto veda aos magistrados, nas mídias sociais,“emitir ou compartilhar opinião que caracterize discurso discriminatório ou de ódio, especialmente os que revelem racismo, LGBT-fobia, misoginia, antissemitismo, intolerância religiosa ou ideológica, entre outras manifestações de preconceitos concernentes a orientação sexual, condição física, de idade, de gênero, de origem, social ou cultural (art. 3º, inciso IV, da Constituição Federal; art. 20 da Lei nº 7.716/89)”.  

Por outro lado, é cediço que a histórica discriminação e a violência física constituem práticas perversas desfechadas diariamente contra as pessoas transexuais, ou seja, são marcas ainda fortes e renitentes em nossa sociedade. Apesar disso, a representada redigiu mensagem que reflete posicionamento ostensivamente desrespeitoso em relação ao aludido grupo social, olvidando-se que a litigiosidade nas questões alusivas aos direitos dos transexuais constitui, efetivamente, debate recorrente no Poder Judiciário. Portanto, quanto a este particular, deveria se abster de realizar qualquer postagem passível de ser interpretada como discriminatória.  

Observe-se que, valendo-se de simbologia, ao citar a figura de “Napoleão”, personagem histórico polêmico, a imputada ironicamente indagou: – “Esse homem veste-se como Napoleão e acredita piamente que é Napoleão. Ele é Napoleão?”. Na sequência, a representada estabeleceu pronto paralelo com as pessoas do sexo masculino que utilizam a indumentária feminina, questionando: “Esse homem veste-se como uma mulher e acredita piamente que é uma mulher, ou seja, associou o tema psíquico à discussão relativa à identidade de gênero e, por via transversa, descredenciou o próprio indivíduo que não se identifica com sexo biológico e/ou não se sente adequado ao gênero que lhe foi outorgado por ocasião do nascimento.  

Nesse mesmo sentido, ou seja, longe de propagar os ideais e valores ínsitos à aplicação da justiça e à defesa do pleno exercício da cidadania, os quais abarcam a adoção de condutas que prestigiam a inclusão e a acessibilidade, a representada comentou a notícia de que “o Brasil é o primeiro país a ter uma professora portadora de síndrome de down”, exclamando, de forma absolutamente insensível e desairosa, o seguinte: “o que será que essa professora ensina a quem???? Esperem um momento que eu fui ali me matar e já volto, tá?”.  

Como se verifica, em relação à aludida profissional da educação, a representada extrapolou completamente os limites do bom senso – para dizer o mínimo – ao questionar publicamente a capacidade de uma pessoa com síndrome de down para a prática da docência. Assim, a denotar posicionamento igualmente discriminatório, em rota de colisão com os valores exigíveis dos que integram a magistratura, assim como com os princípios proclamados pela Constituição Cidadã, voltados à defesa dos direitos e interesses dos grupos que, há muito, são estigmatizados e socialmente segregados.  

Exaurida a análise do inteiro teor das publicações reproduzidas no libelo acusatório, ressalto que as testemunhas inquiridas a convite da defesa apresentaram declarações de índole nitidamente abonatória. Restringiram-se a atestar dados genéricos – em grande parte pretéritos - ligados à trajetória e à conduta profissional/pessoal da requerida, além de outros fatos específicos das relações interpessoais mantidas entre as próprias testemunhas e a magistrada imputada e, portanto, irrelevantes para o deslinde da controvérsia (ids 4495571 a 4495574, ids 4495576 a 4495578, id 4495579, ids 4495579 a 4495580 e ids 4495580a 4495584).

Dito de outro modo, os testemunhos não descreveram aspectos cruciais, relacionados objetiva e concretamente às circunstâncias que constituem o efetivo objeto de apuração neste PAD, vinculados primordialmente ao conteúdo e ao contexto de concretização das postagens.

Nesse sentido, a testemunha Luis Felippe Brito, servidor do Gabinete da representada, indagado pela advogada da defesa, declarou que “eventualmente pode até ser” que siga a magistrada em suas redes sociais, mas não acompanha as postagens das “pessoas”. Acrescentou não gostar e nem ser adepto das redes sociais, de modo que as mídias de sua titularidade ficam inativas por semanas e meses(id 4495572, a partir de 02min10seg e id 4495573).

Já a testemunha e, também, Desembargador Bernardo Moreira Gacez Neto, questionado se participava das redes sociais da requerida, foi além, ao declarar que, na condição de “homem” do“século XX” (“século passado”), nem sequer “entra” e não “sabe” o que é uma rede social, à qual atribuiu a conotação de “rede de intrigas, futricas e fuxicos”, “imaginando” o que seriam o“Facebook” e o “Instagram” pelo que lê nos jornais (id 4495581, a partir de 04min45seg), a reforçar a conclusão de que os testemunhos colhidos não ostentam qualquer força probatória em prol dos interesses da defesa.  

Da mesma forma,  os argumentos esposados pela desembargadora em seu interrogatório não ultrapassaram o campo da mera retórica, mostrando-se completamente inaptos à descaracterização das faltas funcionais acima delineadas (ids 4495584 a 4495588).

Em linhas gerais, a requerida reputou inverídicas as acusações que lhe foram desfechadas, sinalizando que as postagens teriam sido analisadas de modo isolado, porquanto retiradas do contexto próprio das discussões travadas internamente nos grupos fechados e privativos do Facebook (morte da vereadora Marielle Franco, pautas do Partido PSOL, desmilitarização, esvaziamento de cadeias, legalização do uso de drogas, políticas de inserção, etc). Acrescentou que outros profissionais da área jurídica (advogados, procuradores de justiça, magistrados, conselheiro do CNJ, entre outros) também participavam dos debates e ali externaram as suas próprias opiniões, bem assim que apenas replicou o teor de algumas informações veiculadas naqueles grupos. Aduziu que seu padrão de conduta jamais denotou qualquer parcialidade, preconceito, discriminação ou atuação político-partidária, tanto que já teria proferido julgamentos contrários às suas próprias convicções pessoais, observando que não houve qualquer intenção de macular a honra da vereadora Marielle Franco e a imagem do Sr. Guilherme Boulos (cuja atividade principal sabidamente corresponderia à “invasão de terras”), nem tampouco ofender gratuitamente e/ou diminuir a professora portadora de síndrome de down citada em uma das publicações, além do que algumas das postagens (privadas), levadas a cabo nos idos de 2015, foram maliciosamente lançadas à cognição pública por alguns usuários do grupo privado, com o objetivo de prejudicar a ora representada, tudo culminando na sua completa execração no meio social.

Todavia, conquanto vastas, as justificativas e os pretensos esclarecimentos apresentados na fase instrutória, tem-se que eles não resistem à mera intelecção das mensagens redigidas e/ou postagens que a própria requerida admitiu haver replicado, as quais, repise-se, falam por si, convergindo, a par dos amplos fundamentos anteriormente apresentados e do correspondente enquadramento jurídico, à hipótese de patente infringência a diversas normas e princípios que orientam o exercício da magistratura.  

Em síntese, tal como já afirmado alhures, a teor da própria literalidade das postagens, assim como das narrativas defensivas, a discussão exposta acabou por assumir conotação nitidamente jurídica e, como tal, a controvérsia restou dirimida. Assim, as transgressões funcionais e a reprovabilidade das condutas em averiguação restaram plenamente caracterizadas, o que vale dizer que os dados meramente abonatórios e informativos extraídos da prova oral, assim como os esclarecimentos da magistrada em seu interrogatório, não se revelaram suficientemente aptos para elidir as possíveis repercussões daquelas publicações nesta seara administrativo-disciplinar.  

De resto, também ressoou estéril a direção argumentativa externada pela magistrada, centrada na inaplicabilidade das diretrizes oriundas do Provimento CNJ nº 71/20218 (DJe 14/06/2018), à luz das regras e princípios norteadores do direito intertemporal, na vã tentativa de afastar eventual responsabilização administrativa.  

Com efeito, não se olvida que a jurisprudência emanada deste Conselho, no final de 2018, assentou que as balizas ditadas pelo já citado Provimento CNJ nº 71/20218, quanto ao uso do e-mail institucional e à manifestação nas redes sociais por membros e servidores do Poder Judiciário, à época, seriam recentes. Assim, diante das novas tecnologias de comunicação e informação, mostrava-se factível que, no contexto do pleito eleitoral ocorrido naquele período, alguns magistrados carecessem de compreensão quanto ao alcance das limitações normativas das postagens em mídias sociais. Sob tal enfoque, mediante interpretação ponderada da norma e previamente a qualquer apuração disciplinar, o Plenário concluiu ser necessária a delimitação de um lapso de transição normativa que viabilizasse a adaptação dos membros da judicatura às restrições ali impostas.  

Nesse contexto, em relação a fatos ocorridos já na vigência do Provimento CNJ nº 71/20218 e anteriores à edição da Resolução CNJ nº 305/2019 (DJe 18/12/2019), envolvendo as hipóteses capituladas, em tese, como manifestações inapropriadas nas redes sociais, por refletirem posicionamento público dos magistrados sobre disputa eleitoral, o Colegiado estabeleceu um regime transitório para mitigar a aplicação efetiva do Provimento CNJ nº 71/20218. Desse modo, em diversos casos, deliberou-se pela não instauração de procedimento administrativo persecutório, com consequente arquivamento dos expedientes embrionários, mediante recomendação de que sobredito Provimento fosse integralmente observado, a fim de evitar a adoção de providências mais rígidas e enérgicas no âmbito da Corregedoria Nacional.  

Citem-se, nessa direção, os seguintes precedentes, relatados pela Órgão Censor Nacional, apreciados na 283ª Sessão Ordinária realizada em 11 de dezembro de 2018: PP nº 0009542-42.2018.2.00.0000; PP nº 0009118-97.2018.2.00.0000; PP nº 0009116-30.2018.2.00.0000; PP nº 0009287-84.2018.2.00.0000; PP nº 0009119-82.2018.2.00.0000; PP nº 0009117-15.2018.2.00.0000; RD nº 0009071-26.2018.2.00.0000; PP nº 0009184-77.2018.2.00.0000; PP nº 0009252-27.2018.2.00.0000; PP nº 0009120-67.2018.2.00.0000; PP nº 0009321-59.2018.2.00.0000; RD nº 0008542-07.2018.2.00.0000.  

Também é certo que, ao delinear parâmetros pormenorizados para o uso das redes sociais pelos membros do Poder Judiciário, a Resolução CNJ nº 305/2019 (DJe 18/12/2019), em seu art. 10, definiu que os juízes que já possuíssem páginas ou perfis abertos nessas redes deveriam adequá-las às exigências do correspondente ato normativo, observado o prazo de até 06 (seis) meses contados da respectiva publicação.  

Nessa ordem, em algumas hipóteses abarcando postagens ocorridas no supracitado lapso de transição, o Colegiado também deliberou por flexibilizar a aplicação da norma, de maneira a tolerar o uso inadequado das mídias sociais em razão de manifestações político-partidárias ali realizadas em detrimento das vedações normativas. Por conseguinte, concluiu pela não instauração do correspondente processo administrativo disciplinar ou pela rejeição das imputações, em se tratando de PAD já deflagrado.  

Nesse contexto, em uma primeira análise, a desatenção às restrições impostas pela mencionada Resolução CNJ nº 305/2019 somente ensejaria consequências de cunho administrativo-disciplinar em se tratando de concretização da violação funcional após os 06 (seis) meses que se seguiram à edição do multicitado ato normativo. Incumbe mencionar, em caráter exemplificativo, os seguintes precedentes:  

 

 

RECLAMAÇÃO DISCIPLINAR. INFRAÇÃO DISCIPLINAR IMPUTADA A JUIZ DE DIREITO. PUBLICAÇÃO NOFACEBOOK. POSTAGENS COM CONTEÚDO POLÍTICO E COMENTÁRIOS DEPRECIATIVOS EM RELAÇÃO Ã DECISÃO JUDICIAL PROFERIDA POR OUTRO MAGISTRADO. PROVIMENTO Nº 71/2018 E RESOLUÇÃO Nº 305/2019. FATOS OCORRIDOS DURANTE O PERÍODO DE TRANSIÇÃO NORMATIVA. JUÍZO DE PONDERAÇÃO. ARQUIVAMENTO, COM RECOMENDAÇÃO.  

1. A liberdade de expressão dos magistrados pode ser restringida, desde que na estrita medida do necessário à afirmação dos princípios da magistratura. 

2. Postagem feita em rede social de magistrado em 2019, que manifesta conteúdo político e faz críticas depreciativas a decisões judiciais de outro magistrado. 

3. Fatos ocorridos durante período de transição normativa, na vigência do Provimento n. 71/2018 e anteriores à edição da Resolução n. 305/2019, o que impõe uma interpretação ponderada da norma.  

4. A jurisprudência do Conselho Nacional de Justiça, no final do ano de 2018, arquivou diversos procedimentos relativos à manifestação inapropriada de magistrados nas redes sociais no período eleitoral, porquanto era recente a publicação do Provimento n. 71/2018. Precedentes.  

5. Reclamação disciplinar arquivada, com recomendação. 

(CNJ - RD - Reclamação Disciplinar - 0006108-11.2019.2.00.0000 - Rel. LUIS FELIPE SALOMÃO - 360ª Sessão Ordinária - julgado em 22/11/2022) 

 

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DPROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 4ª REGIÃO.JUIZ DO TRABALHO. PRELIMINAR DE NULIDADE POR DENÚNCIA ANÔNIMA. REJEITADA. PRELIMINAR DE NULIDADE POR ILICITUDE DA PROVA. REJEITADA. PROCEDIMENTO DISCIPLINAR PRÉVIO INSTAURADO DE OFÍCIO PELO CNJ. LEGALIDADE. MANIFESTAÇÃO EM REDE SOCIAL. CRÍTICAS DEPRECIATIVAS E OFENSIVAS DIRECIONADAS À DIVERSAS AUTORIDADES. MANIFESTAÇÃO REALIZADA NO PRAZO DE SEIS MESES CONTIDO NO ART. 10 DA RESOLUÇÃO 305 DO CNJ. PERÍODO DE ADEQUAÇÃO À NORMA. FLEXIBILIZAÇÃO. IMPROCEDÊNCIA DA IMPUTAÇÃO. 

1. Processo Administrativo Disciplinar instaurado para a apuração de imputações, nos termos da Portaria n.º 10 – PAD, de 25 de agosto de 2022 (“I – tecer críticas depreciativas, dirigindo ofensas a diversas autoridades do país, e II – exercer atividade político partidária). 

2. Preliminar de nulidade do PAD por suposta denúncia anônima rejeitada. A administração pública, notadamente a Corregedoria Nacional de Justiça, quando diante da notícia da ocorrência de possível falta funcional de um dos seus agentes, possui o poder/dever de verificar previamente a verossimilhança das alegações, podendo, para tanto, instaurar de ofício procedimento disciplinar para investigação dos fatos, nos exatos termos ocorridos neste expediente. 

3. Preliminar de ilicitude da prova por suposta violação de sigilo de correspondência e das comunicações rejeitada.A mensagem em questão foi publicada pelo magistrado processado em seu perfil de uma rede social (Facebook), ficando disponível direta e indistintamente a extenso rol de usuários da referida rede. O acesso ao conteúdo da mensagem foi direto e não ocorreu mediante apreensão de aparelho eletrônico, tampouco qualquer tipo de acesso indevido a servidor remoto, aplicativo ou caixa eletrônica privada, não havendo falar em violação ao princípio constitucional do sigilo de correspondência e das comunicações. 

4.Em que pese a Resolução nº 305 do CNJ estivesse em vigor no momento em que a mensagem foi publicada no perfil do magistrado no Facebook, ainda não havia se esgotado o prazo de seis meses concedidos pela própria resolução para que os juízes que já possuíam perfis abertos nas redes sociais pudessem adequá-las às exigências da referida resolução. 

5. Imputação julgada improcedente. 

(CNJ – PAD – Processo Administrativo Disciplinar – 0006582-11.2021.2.00.0000 – Rel. LUIZ FERNANDO BANDEIRA DE MELLO – 64ª Sessão Extraordinária – julgado em 29/11/2022) 

 

Todavia, a questão dos autos não se exaure neste ponto. 

Consoante posicionamento externado pelo Colegiado, por unanimidade, em 11 de abril de 2023, quando do julgamento do Processo Administrativo Disciplinar nº 0003280-37.2022.2.00.00 (5ª Sessão Ordinária de 2023, Rel. Conselheira Jane Granzoto), a tolerância deste Conselho quanto ao uso inadequado das redes sociais, no interregno compreendido entre a edição do Provimento CNJ nº 71/2018 e até o exaurimento dos 06 (seis) meses concedidos pela Resolução CNJ n 305/2019,inseria-se especificamente ao contexto dos debates inapropriados relacionados à militância política e/ou afinidade partidária, não prescindindo, portanto, da análise individualizada de cada caso

Tal como restou bem elucidado pelos Eminentes Conselheiros Giovanni Olsson e João Paulo Schoucair, nos respectivos votos convergentes àquele apresentado pela Conselheira Relatora do supracitado  PadMag nº nº 0003280-37.2022.2.00.00, após criterioso exame da conduta específica de cada magistrado, a flexibilização, então adotada, não teria o condão de elidir eventual deflagração da persecução administrativo-disciplinar, com a aplicação da sanção correspondente, na hipótese de manifesta e afrontosa ofensa à Constituição Federal, à Lei Orgânica da Magistratura e/ou ao Código de Ética da Magistratura Nacional, independentemente da vigência do Provimento CNJ nº 71/2018 e da Resolução CNJ nº 305/2019, na medida em que os atos normativos em questão, repita-se, apenas definiram parâmetros e orientações derivados dos valores, preceitos e regras há muito estabelecidos pelos diplomas retromencionados. 

Nesse sentido, aliás, o esclarecedor trecho extraído do voto condutor apresentado pela então Corregedora Nacional de Justiça, Exma. Sra. Ministra Maria Thereza Rocha de Assis Moura, no julgamento do expediente disciplinar que levou à deflagração do  PadMag nº 0003280-37.2022.2.00.00, que, porquanto oportuno, é digno de menção: 

“[...] 

Conforme se observa do voto acompanhado por maioria dos membros deste Conselho Nacional de Justiça quando da aprovação da Resolução nº 305, de 17 de dezembro de 2019,os atos normativos editados por este Conselho apenas estabelecem parâmetros e orientações acerca do que há tempos já dispõem a Lei Orgânica da Magistratura Nacional e a Constituição Federal de 1988. 

Portanto, não está a se debater a inobservância deste ou aquele ato normativo, mas sim da legislação federal. 

Cumpre destacar que a utilização das hashtags #chegadehipocrisia,#horadeabriracaixapretadoJudiciário e #quemnãodevenãoteme possuem potencialidade para atingir direitos da personalidade de quem foi mencionado na publicação, e podem colocar em cheque (sic) a própria credibilidade do Poder Judiciário. 

Os Princípios de Conduta Judicial de Bangalore é uma consolidação de condutas judicial elaborada por um grupo de juristas constituído pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime – UNODC. 

Essas normas consolidadas propõem-se a preservar a confiança que o jurisdicionado tem sobre o Poder Judiciário de cada país, uma vez que essa confiança é de fundamental importância para que o magistrado mantenha sua independência funcional. 

Além da independência funcional, outros cinco valores foram eleitos como fundantes para a elaboração desse digesto: imparcialidade, integridade, idoneidade, igualdade e competência. 

[...] 

Com a evolução dos meios de comunicação e contato social, ponderando essa vedação com o direito fundamental dos magistrados à liberdade de expressão, foi editado pela Corregedoria Nacional de Justiça o Provimento 71/2018, de 13 de junho de 2018, pelo qual se dispôs sobre o uso do e-mail institucional pelos membros e servidores do Poder Judiciário e sobre a manifestação nas redes sociais. 

[...] 

O fundamento dessa previsão repousa no imperativo de imparcialidade e distanciamento crítico do Judiciário em relação à política partidária. A propósito: 

[...] 

Além disso, o magistrado também realizoucomentários que atingem a imagem dos membros da Suprema Corte do país e, por consequência, do Poder Judiciário. Por essa razão,sequer seria necessária a edição de um Provimento ou de uma Resolução do Conselho Nacional de Justiça para se alcançar a potencial consciência da ilicitude de suas condutas. 

[...] 

Com efeito, considerando que se trata de agente público, investido de autoridade, espera-se um comportamento exemplar de cidadania e, como membro do Poder Judiciário, que a sua atuação enseje confiança da sociedade, mesmo que em manifestação em suas redes sociais, aberta ao público jurisdicionado de maneira geral, que detém conhecimento de sua atuação como magistrado da Justiça Federal. 

Nesse sentido, a figura representativa como solucionador de conflitos sociais requer do magistrado, de fato, mais discrição, prudência e cortesia, como forma de assegurar a sua independência e imparcialidade e, por conseguinte, garantindo credibilidade ao Poder Judiciário enquanto instituição. 

E, além disso, os próprios termos utilizados indicaram que o magistrado procedeu de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções, o que deve ser controlado e combatido em âmbito administrativo. [...]. 

Destaca-se, ainda, que não se pode deixar que a linguagem cortês, respeitosa e polida caia em desusopois sua obsolescência pode, aos poucos, menoscabar o Poder Judiciário enquanto instituição perante os jurisdicionados, sendo que “a grosseria é a porta de ingresso a outros defeitos. Quem se esquece do pormenor, tende a se olvidar também do “pormaior”…” (CNJ – PP- Pedido de Providências – 0005178-90.2019.2.00.0000 – Rel. MARIA THEREZA ROCHA DE ASSIS MOURA, 104ª Sessão Virtual -finalização: 29/04/2022),  

Nessa mesma direção, enfocando o elemento de distinção apto a afastar a possibilidade de flexibilização normativa, em razão da especificidade da conduta adotada pela então magistrada processada no PADMag nº 0003379-07.2022.2.00.0000, vale registrar o seguinte trecho extraído do voto condutor do respectivo acórdão, apresentado pela Relatora, Eminente Conselheira Salise Sanchotene (64ª Sessão Extraordinária – 29/11/2022).

Naquela sessão, o Plenário analisou a transgressão funcional caracterizada em decorrência de opiniões e comentários de Juíza Eleitoral no tocante ao cenário político-partidário nacional e à atuação de Ministros do STF, como se segue: 

“[...] 

No final do ano de 2019, a Resolução CNJ n. 305, publicada em 18 de dezembro, trouxe, de forma mais pormenorizada, os parâmetros para o uso das redes sociais pelos membros do Poder Judiciário.  Mais de um ano após a edição do Provimento n. 71, o CNJ novamente concedeu um período de adaptação, agora em decorrência do art. 10 da aludida Resolução, nos seguintes termos (g.n): 

[...] 

A despeito de os normativos do CNJ serem posteriores a 5 dos 7 fatos sob apuração, essa retomada contextual é importante para demonstrar a evolução do assunto neste Conselho, assim como a flexibilização que vem sendo feita desde então, mediante a análise de cada situação concreta, com a devida proporcionalidade. 

E é exatamente em decorrência da análise individualizada de cada caso que os fatos em apuração não merecem o mesmo tratamento dos demais, pois se trata de magistrada que exercia a função eleitoral desde o ano de 2009, e, em Guaraniaçu, desde 2013 (id. 4905271 – interrogatório, aos 6’40”). 

[...] 

O quadro acima demonstra o tratamento isonômico conferido por este Conselho a todas as linhas de pensamento político (indevidamente) expressadas, e o marco temporal a partir de quando se criou expectativa de um novo padrão de conduta dos magistrados nas redes sociais. 

Não por acaso, na última sessão Plenária, novamente determinou-se o arquivamento de procedimento preliminar contra magistrado que publicou mensagem de cunho político-partidário em sua rede social. Arquivou-se o expediente, por unanimidade, pelo fato de a publicação ter ocorrido no período de transição normativa (CNJ – RD – Reclamação Disciplinar – 0006108-11.2019.2.00.0000 – Rel. LUIS FELIPE SALOMÃO – 360ª Sessão Ordinária – julgado em 22/11/2022). 

No caso vertente,o elemento de distinção consiste exatamente na circunstância de a requerida exercer função eleitoral em comarca de vara única do interior do Estado, o que torna a figura do magistrado ainda mais representativa do Poder Judiciário, que não se dilui entre outras autoridades da Justiça na mesma localidade.O cerne da questão não está, portanto, na discussão quanto à liberdade de expressão, e sim na potencialidade de quebra da imparcialidade

[...] 

Nessa perspectiva, entendo caracterizado o cometimento de falta funcional. 

Passo à dosimetria da sanção disciplinar. 

[...]. ” 

Na hipótese vertente, sem que se perca de vista, consoante já amplamente exposto anteriormente, o traço pejorativo, preconceituoso e discriminatório que emana de algumas das publicações realizadas pela imputada, extrapolando o âmbito do mero engajamento político-partidário, certo é que a linguagem excessiva, descortês e desrespeitosa externada em algumas das sucessivas manifestações que constituem objeto de apuração neste PAD, ostentou potencial lesivo apto a atingir direitos da personalidade afetos às figuras públicas mencionadas nas publicações, uma das quais já falecida ao tempo das postagens. 

Ora, se aos vivos não raro é extremamente difícil responder à violência que atinge a honra, aos mortos isso é impossível. Assim, soma-se à dor da perda, por parte dos que ficam, a da ofensa à memória de quem partiu.

O quadro se agrava quando, como ocorreu no caso dos autos, as manifestações depreciativas foram publicizadas em rede social de largo espectro, desaguando em ampla divulgação nacional por intermédio de canais oficiais da imprensa digital, emergindo do acervo probatório o desinteresse da requerida em averiguar a veracidade ou falsidade do conteúdo replicado. Na melhor das hipóteses, de forma absolutamente temerária, a magistrada pressupôs a prática de condutas inidôneas, ilícitas por parte dos envolvidos, afirmando-as nas postagens e, assim, passando ao largo da cautela, da moderação, do decoro e do respeito que deveriam orientar a respectiva atuação, na condição de integrante da magistratura e, portanto, reconhecidamente formadora de opinião pública. 

Não é demais repisar que as indigitadas publicações, nos moldes em que efetivadas, veiculando ilações negativas quanto aos atributos morais dos destinatários, suscitando, por conseguinte, dúvidas acerca da dignidade e da lisura da conduta externada por outros agentes públicos, não refletiram mero debate político, tampouco a exteriorização de mera opinião pessoal sobre determinado tema ou assunto de interesse público. Entre outras ilações de índole discriminatória, tratou-se de efetivos ataques pessoais aos envolvidos nas postagens, os quais transbordaram inclusive para a esfera penal, relevando-se potencialmente auxiliares à deterioração da credibilidade e da isenção do Poder Judiciário, diante da relevante função exercida pela representada, o que não pode ser desconsiderado por este Conselho na apuração da conduta da emitente. 

Como se verifica, a par das sutilezas detectadas neste procedimento, as postagens efetivadas pela imputada revestiram-se de alcance mais abrangente, ultrapassando o simples engajamento político. Reside aí o traço distintivo – distinguishing – decorrente da patente agressão a postulados basilares antecedentes à própria edição do Provimento e da Resolução acima referenciados, a inviabilizar a subsunção das condutas da desembargadora processada à hipótese de flexibilização outrora aplicada por este Conselho nos precedentes anteriormente enfocados. 

Destarte, embora o Plenário tenha flexibilizado o rigor disciplinar no tocante às manifestações ocorridas em redes sociais nos períodos de transição normativa acima elencados, resulta impositiva a análise individualizada de cada procedimento, a partir da qual conclusão diversa poderá ser adotada, uma vez detectados elementos distintivos em relação aos demais casos, exatamente como se constata, in casu.  

Via de consequência, ainda que em relação àquelas publicações realizadas anteriormente à edição do Provimento CNJ nº 71/2018 não incidam as específicas vedações discriminadas em referido ato normativo e outras postagens tenham sido externadas logo após a edição do sobredito provimento e/ou no período de adequação dos perfis em redes sociais aos novos parâmetros da Resolução CNJ nº 305/2019, os traços distintivos que ecoam do caso concreto afastam a possibilidade de flexibilização no rigor da apuração disciplinar. Não passa despercebido, pois, que a magistrada se valeu de redes sociais, em sucessivas oportunidades, para veicular ofensas a pessoas, instituições e grupos, alguns historicamente discriminados. Não se tratou de fato isolado, mas sim de conduta amplamente reiterada, que afasta qualquer vislumbre de insignificância e/ou de inexistência de potencial danoso nas ações da imputada. 

Assim, reafirmo a compreensão de que a desembargadora representada não agiu em consonância com o ordenamento jurídico, tampouco com os princípios deontológicos que devem pautar a conduta de todo magistrado, inclusive fora do exercício da judicatura.

Ao revés, os atos praticados pela imputada, distanciando-se da prudência e da cautela que deveriam nortear as suas manifestações em rede social, ainda que de índole privada, na relevante condição de integrante do Poder Judiciário, consubstanciaram graves faltas funcionais, a receber a reprovação por parte deste CNJ, pois violadores dos deveres insculpidos no art. 35, VIII, da LOMAN, nos arts. 8º, 13, 16 e 26, do Código de Ética da Magistratura e nos arts. 2º, §§ 1º e 3º, e 6º, do Prov. CNJ nº 71/2018 (sucedidos pelo art. 4º, II e III, da Res. CNJ 305/2019). 

Configuradas a materialidade e a culpabilidade da desembargadora processada, julgo procedentes as imputações delineadas na portaria inaugural deste procedimento administrativo disciplinar e, por conseguinte, tenho por imperativa a aplicação da necessária, adequada e proporcional penalidade no âmbito administrativo. 

Passo, pois, à análise da dosimetria da pena. 

 

4. Dosimetria da pena 

 

De início, cabe ressaltar que, nos termos do artigo 42, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN, bem assim do artigo 3º, da Resolução CNJ nº 135/2011, podem ser aplicadas aos magistrados as seguintes sanções na seara disciplinar: advertência, censura, remoção compulsória, disponibilidade, aposentadoria compulsória e demissão (juízes não vitalícios). 

  Consoante se depreende do comando extraído das disposições retromencionadas, a negligência é passível de ser apenada com advertência, ao passo em que a censura deve ser aplicada nos casos de reiterada negligência, ou de procedimento incorreto, caso a infração não justifique punição mais grave. 

  Já a pena de  disponibilidade será aplicada residualmente, quando não aplicáveis as penas de advertência, censura e remoção compulsória, assim como quando a conduta não justificar a aplicação da pena mais severa - aposentadoria e/ou demissão (na hipótese de magistrado não vitalício). 

  remoção compulsória deve ser contextualizada às hipóteses em que a falta funcional guarde estreito liame com o local de exercício da jurisdição do (a) representado (a) – de sorte que o deslocamento do (a) magistrado (a) para outra unidade tem por escopo coibir a reiteração do ilícito, bem assim afastar o descrédito do Poder Judiciário naquela jurisdição –. 

  De outro lado, a aposentadoria compulsória se volta às infrações revestidas de maior grau de reprovabilidade, que demonstrem a efetiva incompatibilidade para o exercício da jurisdição de forma permanente. 

 Nesse sentido, colhem-se, com propriedade, as ponderações de ALEXANDRE HENRY ALVES (In: Regime Jurídico da Magistratura, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. E-book, pág. 1217), ao discorrer sobre o regime disciplinar da magistratura e a dosimetria da pena, nos seguintes termos: 

   

“(...) Assim, caberá ao colegiado, após a produção de todas as provas e a defesa do magistrado, analisar que tipo de infração ele cometeu: se foi mero descumprimento dos seus deveres, sem dolo; se houve reiteração; se a conduta consiste em um ilícito penal etc. Além disso, o colegiado deverá averiguar se o ato praticado pelo juiz não o tornou incompatível com o exercício do cargo. Se positivo e a incompatibilidade for permanente, a pena será de aposentadoria compulsória. Se essa incompatibilidade for apenas temporária, e de acordo com o ato cometido, a punição será de disponibilidade compulsória. Se a incompatibilidade é apenas em relação ao juízo em que o magistrado atua, caberá remoção compulsória. Se, por fim, embora tenha cometido uma infração de média gravidade ou uma infração leve, mas reiterada, sua postura não se mostrar absolutamente incompatível com a continuidade do exercício do cargo, em qualquer circunstância, a pena será a censura. (...)" 

 

 

Historiado o parâmetro normativo, também rememoro, na linha de precedente firmado por este CNJ, que “a escolha da pena disciplinar incidente é iluminada pelo princípio da proporcionalidade, ou seja, por um juízo de ponderação ancorado no caso concreto, considerada a carga retributiva da sanção, a finalidade preventiva de novos desvios e, sobretudo, o grau de reprovabilidade da ação/omissão combatida. II Deve-se levar em conta a gravidade da conduta ensejadora da imputação, a carga coativa da pena, o grau de culpabilidade e a eficácia da medida punitiva” (CNJ – RDnº 200810000018800 - Rel. Cons. Mairan Gonçalves Maia Júnior – 85ª Sessão - j. 26.05.2009 - DJU 17.06.2009 – destaques nossos). 

No caso concreto, o elevado grau de reprovabilidade das práticas configuradas tornou-se indiscutível, pois a desembargadora processada não se manifestou com reserva, cautela e discrição, de modo a evitar a própria exposição negativa do Poder Judiciário, acarretando notória ofensa a princípios e normas indissociáveis do exercício da magistratura.

Olvidou-se que, na qualidade de agente público responsável pelo desempenho de relevantes funções, suas ações e opiniões carregam indiscutível potencial de influência junto à opinião pública, o que não pode ser relegado à preterição. 

Com efeito, nos moldes anteriormente destacados, os ataques pessoais, de parte da representada, a representante de liderança política, compartilhados em rede social de largo espectro, com o claro intuito de descredenciá-lo perante a opinião pública em razão das suas ideias ou ideologias, em um cenário de polarização já conflagrado, refletiram a hipótese de militância político-partidária, vedada constitucionalmente aos magistrados, violando frontalmente o comando inserido no art. 95, parágrafo único, III, da CF/1988.

Não fosse o suficiente, sem demonstrar qualquer preocupação com a veracidade das informações veiculadas, a requerida promoveu sucessivas manifestações desrespeitosas e desabonadoras, dirigidas inclusive a integrante do poder legislativo municipal, já falecida ao tempo das imputações, à qual se atribuiu falsamente a prática de grave delito. 

Nesse passo, para além de evidenciarem a adoção de comportamentos que podem denotar preconceito, as publicações realizadas ostentaram potencial lesivo incalculável, apto a atingir atributos da personalidade afetos às figuras públicas ali referidas, descortinando a busca desmensurada e injustificada, por parte da magistrada, de reconhecimento social, em detrimento da imparcialidade e da credibilidade do próprio Poder Judiciário.

Ademais, não fossem apenas o viés político-partidário e a descabida ofensa aos atributos morais das personalidades públicas nominadas nas postagens, a imputada não se absteve de realizar outras publicações polêmicas, as quais podem ser interpretadas como discriminatórias de grupos historicamente estigmatizados (transexuais e portadores de síndrome de down), afrontando os valores caros à sociedade e, por conseguinte, à magistratura, assim como os ideais de igualdade, justiça e cidadania vertidos pela CRFB/1988. 

Como se vê, na condição de membro da Corte de Justiça Estadual, a representada desbordou os limites inerentes ao exercício do livre direito de expressão de pensamento, sendo certo que as faltas praticadas, a teor das postagens analisadas, à toda evidência refletem a manifesta, reiterada e grave negligência frente aos deveres de decoro, prudência e cautela que deveriam pautar a conduta da requerida, no uso de sua rede social, à luz de todo o regramento normativo e principiológico supra enfocado. 

Trata-se, portanto, de transgressões disciplinares suficientemente graves, que não podem ser consideradas como simples negligência, mero procedimento incorreto e/ou falta pontual. Portanto,  não merecem a complacência deste Conselho. 

Por outro lado, vale lembrar que o parágrafo único do art. 42, da LOMAN é taxativo ao estabelecer que as penas de advertência censura somente são aplicáveis aos juízes de primeiro grau. Nesse passo, a teor da interpretação sistemática do art. 95, I, da Carta Magna, da LOMAN (arts. 42, 45, 46, 47, 56, 57 e 58) e da Resolução CNJ nº 135/2011 (arts. 3º, 5º, 6º e 7º), bem assim considerando a condição da representada de Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a penalidade aplicável, na prática, restringir-se-ia às hipóteses de remoção compulsória, disponibilidade e aposentadoria compulsória, cuja aplicação pós-Emenda Constitucional nº 103/2019 tem sido placitada pelo Supremo Tribunal Federal (MS 37074/DF, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Decisão: 31/05/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-105 DIVULG 01/06/2021 PUBLIC 02/06/2021).  

  Faz-se mister notar que a requerida, na condição de magistrada de 2º grau, atua em toda a jurisdição da Corte de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, de sorte que a pena de remoção compulsória não se mostra pertinente à hipótese dos autos. 

  De todo modo, sem mitigar e/ou atenuar o caráter reprovável e o potencial ofensivo das faltas funcionais patenteadas, não se extraem dos autos evidências de incompatibilidade permanente da processada para exercício da judicatura, mas sim de natureza temporária, não se justificando no caso a sanção máxima (aposentadoria compulsória). 

Rememore-se, no tocante ao caso da Vereadora Marielle Franco, que a processada retratou-se por meio da sua rede social – particularidade que acabou por afastar a responsabilidade criminal da desembargadora. Tal circunstância, na seara disciplinar, sinaliza o compromisso da representada no sentido de não voltar a praticar condutas do mesmo jaez, não se detectando, do acervo probatório, dados sugestivos de que tenham ocorrido práticas análogas após o lapso temporal em exame neste PAD, o que também vai ao encontro da asserção acima exposta, relativamente à incompatibilidade temporária da requerida para o desempenho da magistratura. 

 

Nessa perspectiva, expostas todas as premissas anteriormente assinaladas, além de sopesados o elevado grau de reprovabilidade das condutas, revestidas de gravidade suficiente a indicar a incompatibilidade temporária para o exercício das funções jurisdicionais, os resultados e prejuízos daí advindos, a carga coativa da pena, o caráter pedagógico e a eficácia da medida punitiva, bem assim os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, por medida de interesse público, assoma adequada e pertinente a aplicação da sanção de disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço à processada, consoante previsão inserida no art. 93, VIII, da Carta Magna, nos arts. 42, inc. IV, e 57, parágrafo 1º, da LOMAN, e no art.6º, da Resolução CNJ nº 135/2011. 

 

Sem embargo, a questão exposta não se esgota por aí. Uma vez estabelecido que a pena aplicável à representada é a de  disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço, resta definir, também em conformidade com os citados postulados da razoabilidade e proporcionalidade, o correspondente prazo da correspondente duração. 

 

Com efeito, ao dispor sobre a pena de disponibilidade, tanto o inciso VIII, do art. 93, do Texto Magno, quanto o inciso IV, do art. 42, e o caput, do art. 57 da LOMAN, de antemão, não especificam prazo mínimo ou máximo quanto à extensão temporal da penalidade. Na forma do já citado art. 57, da LOMAN, é certo que, voluntariamente, o magistrado apenado com tal modalidade de sanção somente poderá pleitear seu aproveitamento quando decorridos, no mínimo,2 (dois) anos de afastamento, nos termos do parágrafo primeiro do precitado dispositivo, o que, nem de longe, se assemelha a qualquer limitação temporal para efeito de aplicação da pena em referência, abrindo-se caminho, à luz da interpretação teleológica e sistemática, à possibilidade de delimitação de prazo inferior. 

A meu sentir, a redação dos já mencionados arts. 93, VIII, da Lei Maior, 42, IV e 57, da LOMAN, desloca a questão à margem de discricionariedade do Órgão Julgador, conferindo, a este último, a liberdade necessária para fixar o termo final do período de afastamento compulsório, de modo a viabilizar a integral observância dos princípios constitucionais que norteiam do Direito Administrativo Sancionador, dentre os quais estão a proporcionalidade, a razoabilidade e a individualização da pena. 

  Nessa ordem, para efetivo cumprimento dos princípios que estão nos limites da Constituição e do Estado Democrático de Direito, é necessário que o prazo mínimo de duração das penas de disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço, aplicadas pelo Conselho Nacional de Justiça, possa ser adequado às particularidades das condutas apuradas nos processos administrativos disciplinares julgados por esta Corte Administrativa. 

  Cumpre ressaltar, ainda, que se encontra em trâmite perante o E. STF a ADPF 677, de Relatoria do Exmo. Sr. Ministro Cristiano Zanin, por intermédio da qual a Associação dos Magistrados Brasileiros, entidade notoriamente representativa da magistratura, veiculou, entre outros pedidos, a possibilidade de os Órgãos Censores fixarem a pena de disponibilidade em qualquer quantidade de dias, meses ou anos, desde que limitada a 2 (dois) anos, o que referenda a penalidade ora aplicada. 

  Nessa mesma direção, em julgamento recente envolvendo caso análogo de postagem ofensiva revestida de conteúdo político-partidário, efetivada por magistrado de 2º Grau, o Plenário deste Conselho deliberou pela aplicação da disponibilidade, fixando, desde logo, prazo inferior a 2 (dois) anos para o cumprimento da sanção. Eis o precedente: 

 

 

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. DESEMBARGADOR DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 15ª REGIÃO. VIOLAÇÃO AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA NÃO CARACTERIZADA. REPOSTAGEM E MANIFESTAÇÃO EM REDE SOCIAL. CONTEÚDO REVESTIDO DE ÍNDOLE POLÍTICO-PARTIDÁRIA. OFENSA AOS DEVERES INSCULPIDOS NO ART. 95, PARÁGRAFO ÚNICO, III, DA CARTA MAGNA/1988, NO ART. 35, VIII, DA LEI COMPLEMENTAR Nº 35/79 (LOMAN), NOS ARTS. 1º, 2º, 7º, 13, 15, 16 E 37 DO CÓDIGO DE ÉTICA DA MAGISTRATURA, NO ART. 3º, I, DO PROVIMENTO Nº 135 DA CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA, BEM COMO NOS ARTS. 3º, II, “A” E “F”, E 4º, II, DA RESOLUÇÃO CNJ Nº 305/2019 DEMONSTRADA. PROCEDÊNCIA DA IMPUTAÇÃO.GRAVIDADE DA CONDUTA. INCOMPATIBILIDADE TEMPORÁRIA PARA O EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO. PENA DE DISPONIBILIDADE FIXADA POR 60 (SESSENTA) DIAS

 

1. Tanto na fase embrionária e apuratória, quanto no âmbito do presente procedimento administrativo disciplinar, restou assegurada ao processado a perfeita compreensão dos fatos, dos dispositivos constitucionais, legais e normativos tidos por violados e da possível falta funcional que lhe foi imputada, o que propiciou plenamente o exercício do contraditório e da ampla defesa. Preliminar repelida. 
 

2. O indeferimento das diligências reveladas impertinentes, meramente protelatórias e de nenhum interesse para o deslinde do feito encontra pleno respaldo na dicção do art. 25, incs. I, IV e VIII, do RICNJ e do art. 26 da Resolução CNJ nº 135/2011 c/c o art. 156, § 1º, da Lei nº 8.112/1990. Nulidade não pronunciada. 
 
 

3. A liberdade de manifestação, consagrada no Texto Constitucional (art. 5º, incisos IV e IX, da Carta Magna), não ostenta conotação absoluta, nem tampouco ilimitada, porquanto passível de submissão a certas restrições, compatíveis com os pilares do Estado Democrático de Direito, implicando deveres e responsabilidades que visam resguardar, no caso dos magistrados, a necessária afirmação dos postulados e demais princípios norteadores da magistratura. Precedentes do STF e deste CNJ. 
 

4. Na hipótese, para além de replicar em rede social de amplo espectro conteúdo intuitivamente apto a descredenciar candidato à Presidência da República perante a opinião pública, o requerido manifestou expressamente apoio a candidato e partido político, evidenciando militância político-partidária, ou seja, dada a condição de membro do Poder Judiciário, ultrapassou os limites inerentes ao exercício do livre direito de expressão de pensamento. 
 

5. Os atos praticados pelo magistrado processado, distanciando-se da prudência e da cautela que deveriam nortear as suas manifestações em rede social, ainda que de índole privada, consubstanciaram falta funcional, a receber reprovação por parte deste Conselho, pois violadores dos deveres insculpidos no art. 95, parágrafo único, III, da Carta Magna/1988, no art. 35, VIII, da Lei Complementar nº 35/79 (LOMAN), nos arts. 1º, 2º, 7º, 13, 15, 16 e 37 do Código de Ética da Magistratura, no art. 3º, I, do Provimento nº 135 da Corregedoria Nacional de Justiça, bem como nos arts. 3º, II, “a” e “f”, e 4º, II, da Resolução CNJ nº 305/2019. 

 

6. Sopesados o elevado grau de reprovabilidade da conduta, o potencial lesivo dali decorrente e o efeito pedagógico/dissuasório da sanção, à luz da razoabilidade e da proporcionalidade, revela-se pertinente a aplicação dadisponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço, pelo prazo de 60 (sessenta) dias (art. 93, VIII, da Carta Magna, arts. 42, inc. IV, e 57, parágrafo 1º, da LOMAN, c.c art. 6º, da Resolução CNJ nº 135/2011). 

 

7. Imputação que se julga procedente para aplicar ao magistrado processado a pena de disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço por 60 (sessenta) dias. (CNJ - PAD – Processo Adm. Disciplinar - 0002268-51.2023.2.00.0000 – Rel. Jane Granzoto - 19ª Sessão Ordinária de 2023 – julgado em 12/12/2023). 

 

 
 

Uma vez definido que a pena adequada para reprimir as condutas apuradas nos autos é a disponibilidade com proventos proporcionais ao tempo de serviço, reputo imprescindível que este Colegiado, com fulcro no inciso VIII do art. 93 da Constituição Federal e no caput do art. 57 da LOMAN e diante das singularidades do caso vertente, fixe o correspondente prazo por 90 dias. 

  De rigor, assim, aplicação da disponibilidade com proventos proporcionais ao tempo de serviço em desfavor da desembargadora processada forte no comando extraído do art. 93, VIII, da Carta Magna, dos arts. 42, inc. IV, e 57,caput e parágrafo 1º, da LOMAN, e do art. 6º, da Resolução CNJ nº 135/2011. 

 

5. Dispositivo 

Ante todo o acima exposto, 

REJEITO as questões prejudiciais suscitadas na defesa e, no mérito, julgo PROCEDENTES as imputações delineadas na Portaria PAD nº 13, de 18 de dezembro de 2020, por ofensa ao art. 35, VIII, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, aos arts. 8º, 13, 16 e 26, do Código de Ética da Magistratura, e aos arts. 2º, §§ 1º e 3º, e 6º, do Provimento CNJ nº 71/2018, sucedidos pelo art. 4º, incisos II e III, da Resolução CNJ nº 305/2019, para aplicar à processada, Exma. Sra. Desembargadora MARÍLIA DE CASTRO NEVES VIEIRA, vinculada ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a sanção de DISPONIBILIDADE COM PROVENTOS PROPORCIONAIS AO TEMPO DE SERVIÇO, pelo período de 90 dias, com espeque no art. 93, VIII, da Carta Magna, nos arts. 42, inc. IV, e 57,caput e parágrafo 1º, da LOMAN, e no art. 6º, da Resolução CNJ nº 135/2011. 

Tendo em vista a aprovação da questão de ordem submetida previamente ao Plenário, determino o levantamento do sigilo na tramitação do feito. Providencie a Secretaria Processual as anotações e demais providências de praxe junto ao sistema informatizado. 

Dê-se ciência à magistrada representada, à respectiva defesa, à terceira interessada e ao MPF quanto ao inteiro teor da presente. 

Oficie-se ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro para ciência quanto ao inteiro teor da presente e adoção das providências cabíveis no tocante à concretização da sanção disciplinar. 

Expeça-se, ainda, ofício à Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (art. 22, parágrafo único, da Resolução CNJ nº 135/2011). 

Tudo cumprido, em não havendo qualquer outro incidente ou pendência, arquivem-se os autos. 

Intimem-se. 

 

É o voto que submeto ao Plenário. 

Brasília, data registrada no sistema. 

 
 

Conselheiro ALEXANDRE TEIXEIRA 

Relator 

 

GCAT/2 

 

 
 

______________________________________ 

 

[1] – Código de Ética da Magistratura Nacional 

Art. 1º O exercício da magistratura exige conduta compatível com os preceitos deste Código e do Estatuto da Magistratura, norteando-se pelos princípios da independência, da imparcialidade, do conhecimento e capacitação, da cortesia, da transparência, do segredo profissional, da prudência, da diligência, da integridade profissional e pessoal, da dignidade, da honra e do decoro. 

Art. 2º Ao magistrado impõe-se primar pelo respeito à Constituição da República e às leis do País, buscando o fortalecimento das instituições e a plena realização dos valores democráticos. 

(...) 

Art. 7º A independência judicial implica que ao magistrado é vedado participar de atividade político-partidária. 

Art. 8º O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito. 

(...) 

Art. 13. O magistrado deve evitar comportamentos que impliquem a busca injustificada e desmesurada por reconhecimento social, mormente a autopromoção em publicação de qualquer natureza. 

(...) 

Art. 15. A integridade de conduta do magistrado fora do âmbito estrito da atividade jurisdicional contribui para uma fundada confiança dos cidadãos na judicatura. 

Art. 16. O magistrado deve comportar-se na vida privada de modo a dignificar a função, cônscio de que o exercício da atividade jurisdicional impõe restrições e exigências pessoais distintas das acometidas aos cidadãos em geral. 

(...) 

Art. 26. O magistrado deve manter atitude aberta e paciente para receber argumentos ou críticas lançados de forma cortês e respeitosa, podendo confirmar ou retificar posições anteriormente assumidas nos processos em que atua. 

(...) 

Art. 37.Ao magistrado é vedado procedimento incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções. 

 

[2] - Provimento CNJ nº 71/2018 

Art. 2º A liberdade de expressão, como direito fundamental, não pode ser utilizada pela magistratura para afastar a proibição constitucional do exercício de atividade político-partidária (CF/88, art. 95, parágrafo único, III). 

§ 1º A vedação de atividade político-partidária aos membros da magistratura não se restringe à prática de atos de filiação partidária, abrangendo a participação em situações que evidenciem apoio público a candidato ou a partido político. 

§ 2º A vedação de atividade político-partidária aos magistrados não os impede de exercer o direito de expressar convicções pessoais sobre a matéria prevista no caput deste artigo, desde que não seja objeto de manifestação pública que caracterize, ainda que de modo informal, atividade com viés político-partidário. 

§ 3º Não caracteriza atividade político-partidária a crítica pública dirigida por magistrado, entre outros, a ideias, ideologias, projetos legislativos, programas de governo, medidas econômicas. São vedados, contudo, ataques pessoais a candidato, liderança política ou partido político com a finalidade de descredenciá-los perante a opinião pública, em razão de ideias ou ideologias de que discorde o magistrado, o que configura violação do dever de manter conduta ilibada e decoro. 

Art. 3º É dever do magistrado ter decoro e manter ilibada conduta pública e particular que assegure a confiança do cidadão, de modo que a manifestação de posicionamento, inclusive em redes sociais, não deve comprometer a imagem do Poder Judiciário nem violar direitos ou garantias fundamentais do cidadão (da CF/88, art. 37, caput, e Lei Complementar n. 35, de 14 de março de 1979, art. 35, VIII). 

Art. 4º O magistrado deve agir com reserva, cautela e discrição ao publicar seus pontos de vista nos perfis pessoais nas redes sociais, evitando a violação de deveres funcionais e a exposição negativa do Poder Judiciário. 

 
 

[3] - Resolução CNJ nº 305/2019 

Art. 4º Constituem condutas vedadas aos magistrados nas redes sociais: 

(...) 

II – emitir opinião que demonstre atuação em atividade político-partidária ou manifestar-se em apoio ou crítica públicos a candidato, lideranças políticas ou partidos políticos (art. 95, parágrafo único, inciso III, da Constituição Federal; art. 7º do Código de Ética da Magistratura Nacional); 

(...) 

§ 1º Para os fins do inciso II deste artigo, a vedação de atividade político-partidária não abrange manifestações, públicas ou privadas, sobre projetos e programas de governo, processos legislativos ou outras questões de interesse público, de interesse do Poder Judiciário ou da carreira da magistratura, desde que respeitada a dignidade do Poder Judiciário.