Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: ATO NORMATIVO - 0004368-76.2023.2.00.0000
Requerente: RODRIGO DIEGUES CRUZ
Requerido: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

 

 

 

ATO NORMATIVO. POLÍTICA DE PREVENÇÃO E ENFRENTAMENTO DO ASSÉDIO MORAL, DO ASSÉDIO SEXUAL E DA DISCRIMINAÇÃO. RESOLUÇÃO CNJ N. 351/2020. ASSÉDIO SEXUAL. DEFINIÇÃO DA CONDUTA COMO INFRAÇÃO DISCIPLINAR DE NATUREZA GRAVE. CÓDIGO DE ÉTICA DA MAGISTRATURA. PREVISÃO DO ASSÉDIO MORAL E DO ASSÉDIO SEXUAL COMO ATOS ATENTATÓRIOS À DIGNIDADE DO CARGO. PROVIMENTO 147/2023. POLÍTICA PERMANENTE DE ENFRENTAMENTO A TODAS AS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, NO ÂMBITO DAS ATRIBUIÇÕES DA CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA. VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER. ATO ATENTATÓRIO À DIGNIDADE DO CARGO.  

 

 ACÓRDÃO

O Conselho, por unanimidade, aprovou a Resolução, nos termos do voto da Relatora. Presidiu o julgamento o Ministro Luís Roberto Barroso. Plenário Virtual, 1º de dezembro de 2023. Votaram os Excelentíssimos Conselheiros Luís Roberto Barroso, Luis Felipe Salomão, Vieira de Mello Filho, Mauro Pereira Martins, Salise Sanchotene, Jane Granzoto, Richard Pae Kim, Marcio Luiz Freitas, Giovanni Olsson, Pablo Coutinho Barreto, João Paulo Schoucair, Marcello Terto e Luiz Fernando Bandeira de Mello. Não votaram os Excelentíssimos Conselheiros Marcos Vinícius Jardim Rodrigues e, em razão da vacância do cargo, o representante da Câmara dos Deputados.

Conselho Nacional de Justiça

Autos: ATO NORMATIVO - 0004368-76.2023.2.00.0000
Requerente: RODRIGO DIEGUES CRUZ
Requerido: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

 

 

RELATÓRIO

 

 Trata-se de Ato Normativo instaurado a partir de pedido formulado por Rodrigo Diegues Cruz, por meio do qual requer avaliação acerca da necessidade de alteração do Código de Ética da Magistratura Nacional para prever, de modo expresso, a prescrição da prática de assédio moral, sexual e de todas as formas de discriminação como infrações disciplinares.

Segundo o requerente, o Estatuto da OAB foi alterado por meio da Lei n. 14.612/2023, a fim de prever o assédio moral, o assédio sexual e a discriminação como infrações ético-disciplinares, o que não ocorreu com o Código de Ética da Magistratura, que demanda atualização a contemplar o que já vem sendo decidido pelo Conselho Nacional de Justiça em diversos casos julgados.

O feito, cuja relatoria por sorteio recaiu ao e. Conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello, foi posteriormente distribuído à minha relatoria, em decorrência da Coordenação do Comitê de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral e do Assédio Sexual e da Discriminação no Poder Judiciário, colegiado que já vinha discutindo o tema postulado pelo requerente.

É o relatório.

 

 

 

Conselho Nacional de Justiça

 

Autos: ATO NORMATIVO - 0004368-76.2023.2.00.0000
Requerente: RODRIGO DIEGUES CRUZ
Requerido: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

 

 

VOTO

 

Por meio da Resolução n. 351, de 28 de outubro de 2020, o Conselho Nacional de Justiça instituiu a Política de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, do Assédio Sexual e da Discriminação, responsável por promover substancial aperfeiçoamento das relações socioprofissionais e da organização do trabalho no Poder Judiciário desde então.

O acompanhamento da implementação da política judiciária nos tribunais, a condução de atividades relacionadas à disseminação das diretrizes estabelecidas, e o desenvolvimento de estudos relacionados ao aperfeiçoamento do conteúdo normativo foram atribuídos a um Comitê nacional, instituído por meio da Portaria n. 290/2020, atualmente coordenado por esta Conselheira (Portaria n. 35/2022).

Dentre as atividades realizadas, destacam-se a realização de duas pesquisas nacionais, aplicadas nos anos de 2021 e 2022, cujos dados funcionam como o norte das discussões realizadas no colegiado.

De acordo com o relatório da pesquisa (2022), 56,4% dos respondentes já sofreram assédios ou alguma forma de discriminação, mas ao mesmo tempo evidencia-se a subnotificação das violações sofridas, pelos seguintes motivos (p. 69, g.n.):

 

Perguntados(as) sobre os motivos de não denunciar, os(as) informantes indicam, em sua maioria, que não denunciam por considerar que a denúncia não vai prosperar (não vai dar em nada), com 59,2%, e que quem denunciar sofrerá represálias, com 58,5%.

Assim observa-se que o medo de não ser acreditado, de sofrer retaliação ou ainda por sentimento de culpa ou vergonha podem impedir a pessoa de denunciar o(a) agressor(a). Porém, o maior motivo apontado se relaciona com a falta de confiança nas autoridades competentes.

Essa percepção se corrobora quando os(as) respondentes informam que nenhuma consequência é percebida nos casos denunciados, pois o órgão não adotou providências (38,5%); mesmo diante de provas apresentadas (30%); além de alguns casos em que não havia provas (11,5%).

 

A respeito da incidência mais recorrente, extraiu-se que o assédio moral desponta como o principal desafio a ser transposto no Poder Judiciário, acompanhado de componente de assimetria de gênero que coloca as mulheres como as principais afetadas (p. 67, g.n):

 

O tipo mais frequente é o assédio moral, com 87,6%. Logo em seguida, tem-se o assédio sexual, com 14,8%; outros tipos de assédio/discriminação, com 14,7%; e a discriminação em razão do gênero, com 13,1%. Conforme descrito nos achados da pesquisa, as mulheres estão mais submetidas a essa situação: são 14,8% a mais que os homens. Além disso, apesar de o assédio moral e sexual serem formas de violência e abuso que podem ser experimentados por qualquer pessoa, independentemente de gênero, idade, raça, orientação sexual, etc., as mulheres são desproporcionalmente afetadas, repisando uma situação histórica de discriminação.

 

 

Considerando-se a inserção da prevenção e do enfrentamento às práticas de assédio e discriminação na base da gestão e da organização do trabalho, foram então promovidas alterações substanciais no texto normativo da Resolução, a fim de assegurar melhor acolhimento e enfrentamento dos casos identificados na pesquisa, e recorrentemente reportados ao colegiado.

Assim, a Resolução n. 518, de 31 de agosto de 2023, aperfeiçoou, dentre outros aspectos, a definição de assédio moral e de assédio moral organizacional, para melhor adequação à realidade do Poder Judiciário, deixando claro também, quanto ao primeiro, a desnecessidade de repetição de atos para a sua configuração.

 A partir de então, assédio e discriminação passaram a ser assim conceituados:

 

Art. 2º Para os fins desta Resolução considera-se: (redação dada pela Resolução n. 518, de 31.8.2023)

 

I – Assédio moral: violação da dignidade ou integridade psíquica ou física de outra pessoa por meio de conduta abusiva, independentemente de intencionalidade, por meio da degradação das relações socioprofissionais e do ambiente de trabalho, podendo se caracterizar pela exigência de cumprimento de tarefas desnecessárias ou exorbitantes, discriminação, humilhação, constrangimento, isolamento, exclusão social, difamação ou situações humilhantes e constrangedoras suscetíveis de causar sofrimento, dano físico ou psicológico; (redação dada pela Resolução n. 518, de 31.8.2023) 

II – Assédio moral organizacional: processo contínuo de condutas abusivas ou hostis, amparado por estratégias organizacionais e/ou métodos gerenciais que visem a obter engajamento intensivo ou excluir aqueles que a instituição não deseja manter em seus quadros, por meio do desrespeito aos seus direitos fundamentais; (redação dada pela Resolução n. 518, de 31.8.2023) 

III – Assédio sexual: conduta de conotação sexual praticada contra a vontade de alguém, sob forma verbal, não verbal ou física, manifestada por palavras, gestos, contatos físicos ou outros meios, com o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador; 

IV – Discriminação: compreende toda distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na raça, etnia, cor, sexo, gênero, religião, deficiência, opinião política, ascendência nacional, origem social, idade, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, ou qualquer outra que atente contra o reconhecimento ou exercício, em condições de igualdade, dos direitos e liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural, laboral ou em qualquer campo da vida pública; abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável;

 

 A despeito do importante avanço recentemente promovido, notadamente no que se refere à prevenção e ao acolhimento de noticiantes, assim como o destaque para o uso de abordagens restaurativas, permaneceram em discussão os desdobramentos disciplinares que se colocam em situações concretamente identificadas.

Embora não figure como objetivo central da política, a norma enuncia a apuração disciplinar como possível consequência da prática do assédio e da discriminação:

 

CAPÍTULO IX

DAS INFRAÇÕES, PROCEDIMENTOS DISCIPLINARES E PENALIDADES

 

Art. 17. O assédio e a discriminação definidos nesta Resolução serão processados pelas instâncias competentes para conhecer da responsabilidade disciplinar, quando constituírem violações a deveres previstos na Constituição Federal, na Lei Complementar no 35/79, no Código Civil, no Código Penal, no Código de Ética da Magistratura, na Lei no 8.112/90, na legislação estadual e distrital ou nas demais leis e atos normativos vigentes. (redação dada pela Resolução n. 413, de 23.8.2021) 

§ 1º A apuração de situação de assédio ou discriminação, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, será instaurada pela autoridade competente em razão de denúncia fundamentada, observados o devido processo legal e a ampla defesa. 

§ 2º Aplicam-se as penalidades contidas na legislação mencionada no caput deste artigo às práticas de assédio moral, assédio sexual e discriminação, consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais.

 

No entanto, a previsão normativa deve ser compreendida com a devida contextualização da realidade, que se apresenta bastante refratária à responsabilização disciplinar quando devida. De acordo com a pesquisa de 2022, há bastante desconfiança dos respondentes na apuração disciplinar (g.n):

 

Quanto à confiança na punição do(a) agressor(a), observa-se que cerca de um terço (32,5%) dos(as) respondentes não acredita que a pessoa que praticar assédio ou discriminação será punida. O percentual mais alto de todas as respostas indica que as pessoas consideram que, a depender do cargo do(a) agressor(a), haverá ou não punição (51,2%); e ainda, 18,1% acreditam que a punição poderá ocorrer ou não, a depender do cargo de quem sofreu o assédio ou a discriminação. Na série histórica 2022 e 2023, o percentual de “sim, confio na punição do(a) agressor(a)” aumentou e a opção “não” diminuiu – o que parece apontar para a confiança na instituição em que os(as) respondentes trabalham e como efeito da promulgação da Resolução CNJ n. 351/2020.

  

O resgate a processos administrativos disciplinares recentemente julgados pelo Conselho Nacional de Justiça também confirma essa realidade, indicando, ainda, a dificuldade de os tribunais promoverem o adequado enquadramento das condutas de assédio e discriminação nas normas regentes das relações funcionais.

Verifica-se, ademais, que essa dificuldade não é exclusiva do Poder Judiciário. No ano de 2021, o Tribunal de Contas da União realizou levantamento[1] com o objetivo de conhecer os sistemas de prevenção e combate ao assédio moral e sexual dos entes selecionados, para compilar boas práticas, avaliar riscos e definir critérios para futuras fiscalizações.

Em acórdão relatado pelo Ministro Walton Alencar Rodrigues relacionado ao tema (Acórdão n. 456/2022, processo TC n. 041.890/2021-3), que integra o modelo criado pelo Tribunal de Contas da União, a Corte de contas assim pontuou a respeito da apuração disciplinar (g.n):

 

Nesse ponto, convém destacar alguns números, encontrados pela Controladoria-Geral da União, em estudos sobre o tratamento correcional, dispensado ao assédio sexual, em 2020, e ao assédio moral, em 2019, no âmbito do Sistema de Correição do Poder Executivo Federal, haja vista que esses trabalhos evidenciam a dimensão e a dificuldade no enfrentamento da questão. 

Foram examinados apenas 49 processos disciplinares, instaurados para apuração de situações de assédio sexual, no período de 1/1/2015 a 31/10/2019. Cerca de 19 (38,78%) resultaram na aplicação de algum tipo de penalidade disciplinar. E, pasmem, em 100% dos casos analisados o assediador era do sexo masculino. Dentre as vítimas de assédio sexual, houve predominância do sexo feminino (96,5%). 

Em relação ao assédio moral, foram selecionados 270 processos disciplinares, instaurados no período de 1/1/2014 a 31/12/2018. Destes, apenas 54 (20%) resultaram na aplicação de algum tipo de sanção disciplinar, ao passo que expressivas 164 ocorrências (60,74%) foram arquivadas. 

Não é por acaso que os casos de assédio sexual têm sido punidos com mais frequência e com mais rigor do que os de assédio moral. O assédio moral não está expressamente previsto como ilícito disciplinar na Lei 8.112/90, nem na CLT, o que tem resultado em, ao menos, 18 enquadramentos legais distintos nesses processos, variando da não observância de deveres funcionais, ou prática de condutas proibidas, a até mesmo improbidade administrativa. 

A pequena quantidade de processos disciplinares e os poucos desfechos, em que houve aplicação de sanção, revela total descompasso com a realidade retratada em pesquisas efetuadas sobre o tema. No Brasil, estudo conduzido pelo Linkedin e pela Consultoria Think Eva concluiu que 41,12% das mulheres participantes da pesquisa afirmam que já sofreram assédio sexual no trabalho (https://thinkeva.com.br/pesquisas/assedio-no-contexto-do-mundo-corporativo/). 

Da discrepância absoluta entre as afirmações de mulheres, no sentido de que já sofreram assédio, e o reduzido número de processo, decorre a existência de profunda contenção dos assediados no retratar, formalmente, a violência que teriam sofrido. 

 

A partir dessa constatação, a Administração Pública como um todo vem envidando esforços para aperfeiçoar o tratamento dispensado ao combate ao assédio e à discriminação, a revelar que não é suficiente a preocupação com a entrega do serviço público, demandando, também, o aperfeiçoamento dos meios e condições para o implemento de bem-estar físico, mental e social dos trabalhadores.

Não por acaso, editou-se a Lei n. 14.540[2], de 3 de abril de 2023, por meio da qual o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual e demais Crimes contra a Dignidade Sexual e à Violência Sexual foi instituído no âmbito da Administração Pública, direta e indireta, federal, estadual, distrital e municipal. Posteriormente, aprovou-se parecer vinculante[3] exarado pela Advocacia-Geral da União, que assentou, em toda a Administração Pública Federal, a imposição da pena de demissão aos servidores que pratiquem assédio sexual.

De acordo com o citado parecer, configura-se a prática do assédio sexual por meio de diversas condutas, realizadas no exercício do cargo ou em razão dele, ainda que apenas uma vez. Ademais, uma vez caracterizado o assédio sexual, afasta-se a discricionariedade da Administração Pública para a aplicação de pena diversa da demissão:

 

a) A prática de assédio sexual, compreendida de forma ampla como quaisquer condutas de natureza sexual manifestadas no exercício do cargo, emprego ou função pública ou em razão dele, externada por atos, palavras, mensagens, gestos ou outros meios, propostas ou impostas a pessoas contra a sua vontade, independentemente do gênero, que causem constrangimento e violem sua liberdade sexual, sua intimidade, sua privacidade, sua honra e sua dignidade, afrontam a moralidade administrativa, o decoro, a dignidade da função pública e da instituição, caracterizando-se como transgressão disciplinar de natureza gravíssima.

b) Nesse sentido, o enquadramento da conduta no regime jurídico disciplinar do servidor público encontra fundamento no artigo 117, inciso IX, c/c artigo 132, inciso V, e artigo 137, todos da Lei n. 8.112/90; artigo 2º, inciso VIII, c/c artigo 5º, inciso I, e parágrafo único, inciso I, c/c artigo 8º, §6º, todos da Lei n. 8.027/90.

c) Para a configuração da infração administrativa como assédio sexual é necessário apenas um ato, uma única conduta, não sendo exigida a sua repetição.

d) Uma vez realizado o enquadramento da conduta nas hipóteses em que a legislação prevê a pena de demissão, não existe discricionariedade para aplicação de pena menos gravosa, conforme entendimento já pacificado pelos Pareceres vinculantes da AGU GQ 177 e GQ 183, aprovados pelo Presidente da República e vinculantes para toda a Administração Pública, nos termos do artigo 40 da Lei Complementar n. 73, de 10 de fevereiro de 1993.

e) Em face do possível enquadramento da conduta como crime deve ser providenciada, ainda, a remessa de cópia dos autos aos órgãos de persecução penal para apuração e aplicação das sanções na seara criminal, nos termos do que determina o artigo 116, inciso VI, e artigo 171, ambos da Lei 8.112/90.

 

Além desse entendimento firmado a respeito do assédio sexual, a Controladoria-Geral da União (CGU) lançou, em 2023, o Guia Lilás[4], com orientações para a prevenção e tratamento ao assédio moral e sexual e à discriminação no Governo Federal, no qual esclarece sobre a responsabilização da pessoa que assedia (p. 16):

 

Na esfera administrativa/disciplinar, o assédio sexual pode configurar a conduta de "valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública" ou “incontinência pública e conduta escandalosa” (art. 117, IX, e art. 132, V, da Lei nº 8.112/1990), infrações graves que resultam na aplicação da penalidade de demissão. 

Destaca-se que importunações e atos impróprios que não configurem assédio sexual podem caracterizar violação aos deveres de "tratar com urbanidade as pessoas" e de "manter conduta compatível com a moralidade administrativa", previstos no art. 116, IX e XI, da Lei nº 8.112/90, infrações de natureza leve, que, dependendo das circunstâncias do caso, pode gerar penas de advertência ou até mesmo de suspensão. 

Para os servidores abrangidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o assédio sexual no ambiente de trabalho pode ser considerado falta grave, podendo resultar na pena de demissão por justa causa.

  

Conforme exposto pelo requerente, o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, que já previa como infração disciplinar a incontinência pública ou escandalosa, também passou a contemplar, textualmente, o assédio moral, o assédio sexual ou a discriminação como infrações disciplinares (Lei n. 14.612/2023).

As iniciativas apresentadas demonstram a necessidade de o Poder Judiciário igualmente prever o assédio moral, o assédio sexual e a discriminação como faltas funcionais, pois, atualmente, a aplicação de sanções disciplinares são calcadas em interpretações, desenvolvidas a partir da conjugação de diversos diplomas legais e normativos.

Para além do combate ao assédio e à discriminação, importante consignar que o Conselho Nacional de Justiça desenvolve diversas ações relacionadas à prevenção e ao enfrentamento da violência contra a mulher, contemplando proteção às jurisdicionadas e também às mulheres que integram o Poder Judiciário, como magistradas, servidoras, colaboradoras e estagiárias.

De acordo com o relatório parcial do Censo do Poder Judiciário (2023), 6,9% das magistradas declararam já terem sofrido algum episódio de violência doméstica e/ou familiar, mesmo que sem formalização de denúncia, consistentes em violência psicológica (87,9%), moral (40,6%), patrimonial (29,5%), física (29,5%), sexual (5,8%) e outras (3,4%). Os índices extraídos foram similares também no que se refere às servidoras.

Dentre as normas elaboradas pelo Conselho Nacional de Justiça em proteção à mulher, podem ser citadas a Resolução n. 254/2018, que instituiu a Política Judiciária Nacional de enfrentamento à violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e o Formulário Nacional de Avaliação de Risco para a prevenção e o enfrentamento de crimes e demais atos praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher (Resolução Conjunta n. 5/2020), por exemplo.

Mais recentemente, merece destaque o Provimento n. 147 de 4/7/2023, que dispõe a respeito da política permanente de enfrentamento a todas as formas de violência contra a mulher, no âmbito das atribuições da Corregedoria Nacional de Justiça; adota protocolo específico para o atendimento a vítimas e recebimento de denúncias de violência contra a mulher envolvendo magistrados, servidores do Poder Judiciário, notários e registradores; cria canal simplificado de acesso a vítimas de violência contra a mulher na Corregedoria Nacional de Justiça.

O normativo supracitado enuncia a preocupação com o tema também em sede correcional, conforme se extrai dos princípios que orientam a atuação:

 

Art. 2º A política permanente de enfrentamento a todas as formas de violência contra a mulher será guiada pelos seguintes princípios:

I – respeito aos direitos fundamentais da vítima, em especial à sua privacidade, o que impõe o sigilo das informações constantes em procedimentos que versem sobre violência contra a mulher;

II – consentimento livre e esclarecido da mulher vítima de qualquer forma de violência;

III – eliminação de todas as noções preconcebidas e estereotipadas sobre as respostas esperadas da mulher à violência sofrida e sobre o padrão de prova exigido para sustentar a ocorrência da agressão;

IV – acesso desburocratizado da vítima aos procedimentos de competência da Corregedoria Nacional de Justiça e atendimento humanizado condizente com as condições peculiares da mulher em situação de violência;

V – não revitimização da ofendida, evitando-se sucessivas inquirições sobre o mesmo fato, bem como questionamentos desnecessários sobre sua vida privada;

VI – enfrentamento da subnotificação dos casos de violência contra a mulher quando a apuração se inserir na competência da Corregedoria Nacional de Justiça, o que impõe ampla publicidade dos canais de acesso disponíveis à vítima e das diversas redes de proteção à mulher;

VII – capacitação de magistrados e servidores da Corregedoria Nacional de Justiça com vistas ao enfrentamento de todas as formas de violência contra a mulher e à atuação segundo o protocolo de julgamento com perspectiva de gênero; e

VIII – interlocução permanente com ouvidorias, fóruns, núcleos e comitês correlatos do CNJ e dos tribunais da Federação.

 

Mais adiante, o provimento deixa clara a possibilidade de responsabilização disciplinar pela prática da violência contra a mulher quando a conduta for praticada por magistrados, servidores e delegatários:

 

Art. 3º Sem prejuízo da atuação dos respectivos Tribunais e Corregedorias locais, poderão ser reportadas à Corregedoria Nacional de Justiça, na forma estabelecida por este Provimento, situações de violência contra a mulher praticadas por: 

I – magistrados, relacionadas ou não com o exercício do cargo; 

II – servidores do Poder Judiciário, quando violadoras de deveres e proibições funcionais ( arts. 116 e 117 da Lei n. 8.112/1990); 

III – prestadores de serviços notariais e de registro, quando relacionadas ao exercício do serviço delegado.

Parágrafo único. Aplicam-se as disposições deste artigo a outras situações de violência quando: 

a) embora não tenham sido praticadas diretamente por magistrados, haja indicativo de omissão quanto aos deveres de cuidado pela integridade física e psicológica da vítima, na forma da Lei n. 14.245/2021 e da Lei n. 14.321/2022 (violência institucional); e

b) de alguma forma, possam repercutir no pleno exercício das atribuições de magistradas e servidoras do Poder Judiciário, observado o previsto no § 3º do artigo 4º.

 

Essas iniciativas atendem à necessidade evidenciada nas pesquisas realizadas pelo CNJ, que indicam que a violência contra a mulher está presente nas relações sociais como um todo, afetando também os profissionais do Poder Judiciário, que ora figuram como autores das condutas, ora como vítimas, o que não se pode tolerar sem intervenções para oferecimento do devido acolhimento, como também da imposição de responsabilização disciplinar.

Nesse ponto, é essencial enfatizar que a prática de violência contra a mulher por membros do Poder Judiciário, em todas as suas formas, é intolerável independentemente de estar ou não relacionada ao ambiente profissional.  

De fato, ações dessa natureza, ainda que dissociadas do exercício profissional, constituem evidente descrédito não só para a figura do(a) magistrado(a), mas igualmente, e de maneira mais grave, para o próprio Poder Judiciário, refletindo uma violação direta ao art. 35, VIII, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), que estipula como dever dos(as) magistrados(as) manter conduta irrepreensível na vida pública e particular.

Ante o exposto, proponho as seguintes alterações:

 

Na Resolução n. 351/2020:

 

Redação Atual

Nova Redação Proposta

Art. 17. O assédio e a discriminação definidos nesta Resolução serão processados pelas instâncias competentes para conhecer da responsabilidade disciplinar, quando constituírem violações a deveres previstos na Constituição Federal, na Lei Complementar nº 35/79, no Código Civil, no Código Penal, no Código de Ética da Magistratura, na Lei no 8.112/90, na legislação estadual e distrital ou nas demais leis e atos normativos vigentes. (redação dada pela Resolução n. 413, de 23.8.2021)

Idem

§ 1º A apuração de situação de assédio ou discriminação, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, será instaurada pela autoridade competente em razão de denúncia fundamentada, observados o devido processo legal e a ampla defesa.

Idem

§ 2º Aplicam-se as penalidades contidas na legislação mencionada no caput deste artigo às práticas de assédio moral, assédio sexual e discriminação, consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais.

§ 2º A prática do assédio sexual é considerada infração disciplinar de natureza grave.

 

(Renumeração do § 2º)

§ 3º Aplicam-se as penalidades contidas na legislação mencionada no caput deste artigo às práticas de assédio moral, assédio sexual e discriminação, consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais.

 

No Código de Ética da Magistratura:

 

Redação Atual 

Nova Redação Proposta 

CAPÍTULO XI

 

DIGNIDADE, HONRA E DECORO

  

Art. 39. É atentatório à dignidade do cargo qualquer ato ou comportamento do magistrado, no exercício profissional, que implique discriminação injusta ou arbitrária de qualquer pessoa ou instituição.

CAPÍTULO XI

 

DIGNIDADE, HONRA E DECORO

  

Art. 39. É atentatório à dignidade do cargo qualquer ato ou comportamento do(a) magistrado(a), no exercício profissional ou em razão dele, que configure assédio moral, assédio sexual ou implique discriminação injusta ou arbitrária. 

 

Parágrafo único: enquadra-se na conduta descrita no caput a violência contra a mulher praticada por magistrado, ainda que dissociada do exercício profissional.

 

É como voto.


Publique-se. Intime-se. Ao final, arquivem-se os autos. 

 

Brasília, 21 de novembro de 2023. 

 

 

Conselheira Salise Sanchotene

Relatora 

  

 

 

MINUTA

 

             RESOLUÇÃO XXX, DE XXXX DE 2023

 

Altera a Resolução CNJ n. 351/2020, que institui, no âmbito do Poder Judiciário, a Política de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, do Assédio Sexual e da Discriminação, e o Código de Ética da Magistratura.  

 

PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ), no uso de suas atribuições legais e regimentais,

 

CONSIDERANDO o deliberado pelo Plenário do CNJ na 17ª Sessão Virtual, realizada em 23 de novembro de 2023, 

 

RESOLVE: 

 

Art. 1º o art. 17 da Resolução CNJ n. 351/2020 passa a vigorar com as seguintes alterações:

 

Art. 17...........

§ 1º .................

§ 2º A prática do assédio sexual é considerada infração disciplinar de natureza grave.

§ 3º Aplicam-se as penalidades contidas na legislação mencionada no caput deste artigo às práticas de assédio moral, assédio sexual e discriminação, consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais.

 

Art. 2º o Art. 39 do Código de Ética da Magistratura passa a vigorar com a seguinte redação:

 

Art. 39. É atentatório à dignidade do cargo qualquer ato ou comportamento do(a) magistrado(a), no exercício profissional ou em razão dele, que configure assédio moral, assédio sexual ou implique discriminação injusta ou arbitrária. 

 

Parágrafo único: enquadra-se na conduta descrita no caput a violência contra a mulher praticada por magistrado, ainda que dissociada do exercício profissional.

 

 

Art. 3º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação. 

 

 

Ministro Luís Roberto Barroso

Presidente 



[1] Disponível em https://portal.tcu.gov.br/prevencao-e-combate-ao-assedio-praticas-e-modelo-para-implantacao.htm

[2] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14540.htm

[3] Disponível em: https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/parecer-da-agu-fixa-pena-de-demissao-para-casos-de-assedio-sexual-nas-autarquias-e-fundacoes-publicas-federais/Parecern.01.2023.PGASSEDIO.SUBCONSU.PGF.AGUUniformizaenquadramentojurdicodoassdioparafinsdaresponsabilidadedisciplinar.pdf

[4] Disponível em: https://repositorio.cgu.gov.br/bitstream/1/16385/4/Guia_para_prevencao_assedio.pdf